19 setembro, 2016

Violência matou 891 índios em treze anos no Brasil, diz relatório do Cimi

Brasília (DF) – O relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil”, divulgado nesta quinta-feira (15) pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), apontou que uma média de 68 índios são assassinados por ano no país. De 2003 a 2015 foram registradas 891 homicídios contra os índios brasileiros, sendo que na maioria dos casos a autoria é desconhecida, portanto, são crimes na impunidade.

Só no ano de 2015, segundo o relatório, foram mortos 137 indígenas no Brasil, um a menos do que o registrado em 2014, quando morreram 138 pessoas. Apesar dos números esse dados não representam a realidade.

A antropóloga Lúcia Helena Rangel, coordenadora do relatório, explicou que as informações do documento foram coletadas pelas equipes de trabalho do Cimi e principalmente da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde. Os dados do governo, porém, foram obtidos por meio de ações jurídicas, com base no direito constitucional de acesso às informações públicas (Lei 12.527/2011). Também estão defasados.  “Acesso cada vez mais difícil, pois eles enrolam para evitar a divulgação”, destacou Rangel.

“Estes dados, no entanto, não permitem uma análise mais aprofundada, visto que não foram apresentadas pela Sesai informações detalhadas das ocorrências, tais como faixa etária das vítimas, localidade, povo, etc.  A fragilidade destes dados dificulta uma clara percepção da autoria dos homicídios, se eles tiveram como pano de fundo a disputa pela terra ou, nesse sentido, se são consequência do fato dos indígenas não estarem vivendo em seus territórios tradicionais”, diz o relatório.

O estado do Mato Grosso do Sul, mais uma vez, aparece como líder das mortes no relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil”. No período de treze anos foram 426 assassinatos, o que representa 47% do total, com uma média de 32 índios mortos por ano.

Em 2015 foram 36 mortes no Mato Grosso do Sul. É uma média de três homicídios a cada mês do ano, sendo que 38% ocorreram em Dourados e 8% em Caarapó, no sudoeste do estado.

Segundo informações do Dsei do Mato Grosso do Sul, 94% das 36 vítimas de homicídio eram do sexo masculino e 6% do sexo feminino.

Foi em Caarapó que em 14 de junho deste ano foi assassinato o indígena Guarani Kaiowá Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, de 26 anos. Ele foi morto a tiros durante um ataque de fazendeiros na fazenda Yvu, município de Caarapó, região retomada pelos índios no mês de junho. Cinco fazendeiros estão presos por determinação da Justiça Federal sob acusação de envolvimento na morte do indígena, conforme investigação da Polícia Federal.

Ainda não há uma estatística preliminar dos casos de violência em 2016, mas o secretário-executivo do Cimi, Cleber Buzatto, destacou que foram registrados 35 ataques contra os índios Guarani-Kaiowá só no Mato Grosso do Sul, no período de aproximadamente um ano, entre 2015 e 2016.
 
A omissão do poder público 

O Cimi lançou o relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil” na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília. O evento contou com as participações do padre Ernanne Pinheiro, secretário-executivo do Centro de Formação, Fé e Política, representando a CNBB, e do vice-presidente do Cimi, Roberto Liebgott. Ele frisou que o ano de 2015 foi marcado por aspectos recorrentes: “A omissão do poder público em relação à assistência aos índios, às demarcações de territórios tradicionais, as perversidades e práticas de tortura e ainda a devastação do meio ambiente”, disse Liebgott.

Ele afirmou que, desde 2012, há uma tendência explícita do governo federal de não demarcar as terras dos índios. “Por esse motivo, eles [os indígenas] vivem em condições de refugiados de guerra, acampados às margens de estradas, em situações estimuladas especialmente por setores do agronegócio”, afirmou Roberto Liebgott.

"Na esteira da tramitação da PEC 215 e de outras proposições legislativas anti-indígenas, parlamentares da bancada ruralista e dirigentes de sindicatos rurais patronais e de associações de produtores de commodities agrícolas espalharam o ódio e o terror contra os povos e as suas comunidades”, diz texto do relatório.
    
Integrando a mesa do evento que lançou o relatório em Brasília, Elson Canteiro, líder Guarani-Kaiowá, chorou durante a exposição do vídeo de dois minutos que retratou consequências do massacre em que morreu Clodiodi, em 14 de junho, em Caarapó. Ele próprio foi um sobrevivente do ataque. Ele explicou por que os índios têm retomado as terras tradicionais. “A retomada não é apenas da terra, mas dos alimentos tradicionais, de nossa cultura, do nosso estado de bem viver. Nossa organização também é garantida por lei e é isso que fazemos”, disse.

Em entrevista exclusiva à agência Amazônia Real, Kunumi Jeroky Iteva Mitan Mogaraivy, pai do indígena Clodiodi de Souza, falou sobre a morte de seu filho. Para ele, revolver a memória não tem sido fácil para a família do agente de saúde assassinado.
 
“Perder um filho é um pesadelo de olhos abertos”, diz. Kunumi tem o rosto abatido, que revela os três meses da morte de Clodiodi, em 14 de junho. “Se eu estivesse aqui aquele dia teria salvado a vida do meu filho”, revela.
  
Clodiodi morreu durante o ataque a fazenda Yvu, que é incrustada na Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá 1. Um dia antes, os índios Guarani Kaiowá tinham retomado a posse da área, reconhecida como território tradicional um mês antes, em 12 de maio, pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

Segundo a investigação, os agentes da Polícia Federal em Dourados estiveram na fazenda Yvu, no dia 13 de junho, e foram notificados da retomada da área pelos fazendeiros, que queriam a expulsão dos índios da fazenda. Sem mandado de reintegração de posse, os policiais retornaram a Dourados.

Conforme relatório do Ministério Público Federal em Dourados, os cinco fazendeiros que foram presos e mais 200 ou 300 pessoas ainda não identificadas, munidas de armas de fogo e rojões, organizaram-se para expulsar os índios à força do local em 14 de junho. De acordo com testemunhas, foram mais de 40 caminhonetes que cercaram os índios, com auxílio de uma pá-carregadeira, e começaram a disparar contra a comunidade. De um grupo de 40 a 50 índios, oito ficaram feridos e um veio a óbito [Clodiodi]”, diz o órgão.

Entre os feridos estava um irmão de Clodiodi, Jesus de Souza.  O pai Kunumi Jeroky Iteva Mitan Mogaraivy relembra com tristeza desse dia:

“Não tenho mais mãe, pai, irmãos, irmãs. Só minha esposa. Jesus ainda está doente. Quase o perdemos também. E aquelas pessoas que mataram meu filho? Eles têm dinheiro no banco, tem roça. Se você tem sono, dorme uma noite e o sono passa. E eu? Eu fico acordado com a minha mulher, pensando: Quando meu filho vai voltar para mim?”, indagou.

Kunumi se diz angustiado com tantas agressões a seu povo. “Se o meu filho chegasse aqui hoje, eu o pegava e diria: Vamos embora. Mas a minha família está enterrada no Kunumi agora. Clodiodi e Denilson Pindorakã são as chaves dessa terra”, lamenta. Ele se refere ao sobrinho, um garoto de 15 anos, que saíra para pescar quando foi encontrado morto em uma estrada vicinal que separa a aldeia onde morava de fazendas do agronegócio, em Caarapó, em fevereiro de 2013. À época, um fazendeiro assumiu a participação no crime, mas não foi preso.

Marçal Tupã-Y foi assassinado em 1983. Nos anos 1970 era ele que realizava assembleias nas aldeias, convocando os parentes para a luta. “Nós temos que ser malcriados”, dizia. Em telegrama, cobrando Justiça ao governo, Darcy Ribeiro disse que a imagem do estado estava emporcalhada se ficasse impune “o assassinato do mais alto intelectual de Mato Grosso do Sul”. Era assim que o antropólogo se referia ao guerreiro Kaiowá.

Simeão Vilhalva, também citado por Kunumi Jeguakai, foi assassinado em agosto de 2015. O crime é um dos destaques do relatório sobre a violência do Cimi, e foi cometido depois que fazendeiros e políticos promoveram um ato público na região do município de Antônio João, convocando a população a se rebelar contra a comunidade Ñhanderu Marangatu. Na ocasião, um bebê foi ferido, atingido por uma bala de borracha. “O decreto de homologação desta área foi assinado há mais de dez anos, mas ela ainda permanece sob a posse dos não-índios”, ressalta o documento. “Simeão tombou. Marçal tombou”, diz Kunumi Jeguakai, uma das lideranças que também sofrem ameaças de morte, citando também a morte de Marçal ocorrida há 30 anos.

Segundo o Cimi, a principal causa da violência são os conflitos por terra e a omissão do governo brasileiro em relação à demarcação dos territórios tradicionais indígenas.

“Vivemos grande violação de nossos direitos”, afirma Kunumi Jeguakai. “Somos como um pássaro numa gaiola. A reserva [áreas provisórias concedidas pelo governo] não nos dá condições para nossa vida, e por isso lutamos por nossos territórios tradicionais. O agronegócio se beneficia de uma terra manchada pelo sangue do povo Guarani Kaiowá. Não aceitamos mais viver dessa forma. Eu também sou ameaçado de morte. Mas, se morrer, renascerei na memória do meu povo, e meu sangue será semente de liberdade. Não sofremos confrontos com fazendeiros, sofremos massacres”, enfatiza o líder indígena.

Na época em que Simeão foi morto, o Cimi denunciou que já havia “um verdadeiro estado paramilitar no Mato Grosso do Sul”. O relatório divulgado nesta quinta-feira acentua que, em 2015, foi realizado pelo menos uma dezena de ataques paramilitares contra várias comunidades, desferidos por milícias comandadas por fazendeiros em que ficaram feridos, inclusive, crianças e idosos.

O documento do Cimi também registrou que Mato Grosso do Sul lidera em tentativas de homicídio, com 12, em 31 registradas no país. O estado está ainda em primeiro lugar nos homicídios culposos (considerados sem intenção de matar). Foram cinco, em 18 acontecidos no Brasil – a maioria por atropelamento.

Kunumi Poty Verá Dyju, um dos feridos que sobreviveram ao massacre do dia 14 de junho, lamenta o histórico de barbárie: “Muitos tombaram e não viram sua terra de volta. A gente espera ver realizado o nosso sonho. Ter a nossa liberdade, o nosso espaço de convivência. A natureza não volta mais. Com o desmatamento, não tem mais caça, não tem mais pesca. Perdemos esse companheiro de luta, que também era agente de saúde e cuidava do nosso povo. Clodiodi está junto com a gente nesta luta. O pessoal deita em cima do túmulo dele. Ama-o. Vamos continuar lutando.”

Além dos dados da Sesai, a estatística do próprio Conselho Indigenista Missionário (Cimi) registrou no ano de 2015 outros 52 casos de violência contra indígenas, que resultaram em 54 assassinatos.

Veja os casos nos estados do Acre (1, etnia Kaxinawá), Amapá (3, etnias Galibi e Karipuna), Amazonas (4, etnias Apurinã, Mura e Tikuna), Bahia (5, etnias Tumbalalá e Tupinambá), Maranhão (3, etnias Guajajara, Ka’apor e Timbira), Mato Grosso do Sul (20, etnias Guarani-Kaiowá e Guarani-Nhandeva), Minas Gerais (1, etnia Pataxó), Pará (2, etnias Arapium e Munduruku), Paraná (5, etnias Guarani e Kaingang), Pernambuco (1, etnia Xukuru), Rondônia (1, etnia Oro Waram (Oro Wari)), Roraima (etnia Yanomami 1) Santa Catarina (1, etnia Kaingang) e Tocantins (6, etnias Apinajé, Karajá, Krahô e Xerente). Estes dados foram levantados a partir de informações das equipes que atuam nos onze regionais do Cimi e de diversos meios de comunicação.

Desses 54 assassinatos apontados pelo Cimi, oito foram de índios do sexo feminino com idades entre 9 e 82 anos. Uma criança do sexo feminino, de 9 anos, está entre as vítimas. As outras 46 pessoas, do sexo masculino, tinham idade entre 2 e 75 anos.

Do total de vítimas, incluindo homens e mulheres, nove eram menores, e tinham idade entre 2 e 17 anos. “Pelo menos quinze mortes ocorreram em decorrência de brigas e/ou consumo de álcool. Em cinco casos, observou-se que as mortes ocorreram, diretamente, em virtude de conflito fundiário. Predominou nos assassinatos o uso de armas brancas, com 21 casos, e armas de fogo, com quinze ocorrências”, diz o relatório.
 
*Por Ana Mendes e Cristina Ávila, especial para a Amazônia Real.

Fonte: http://amazoniareal.com.br

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