30 outubro, 2020

Sinodalidade em um mundo socialmente distanciado. Artigo de Massimo Faggioli

"Não pode haver sinodalidade viável na Igreja Católica que continue a ignorar ou adiar as questões fundamentais dos ministérios eclesiais e do papel das mulheres na liderança da Igreja."


“Não pode haver sinodalidade viável na Igreja Católica que continue a ignorar ou adiar as questões fundamentais dos ministérios eclesiais e do papel das mulheres na liderança da Igreja”, escreve Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, em artigo publicado por La Croix, 29-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Eis o artigo.

O caminho para o Sínodo de 2022 perpassa pelos caminhos sinodais da Alemanha e Austrália.

A preparação de uma assembleia internacional do Sínodo dos Bispos é uma operação complexa.

Esse é especialmente o caso do papa Francisco, para quem essas reuniões não são apenas para exibição. E é particularmente difícil planejar a próxima assembleia geral, que está marcada para outubro de 2022 em Roma e se concentrará sobre o próprio tema da sinodalidade.

Os preparativos para esta assembleia são cruciais, especialmente porque – neste caso – o meio é realmente a mensagem. Mas o planejamento está ocorrendo em meio a algo como uma paralisia institucional, se não em Roma, pelo menos em muitas igrejas locais.

É difícil imaginar o mundo voltando ao seu padrão normal de reuniões e viagens internacionais antes do segundo semestre de 2021. Os executivos das companhias aéreas até alertam que não é provável que seja até 2024, quando então voltaremos a algum tipo de situação pré-covid.

Isso criou um paradoxo no atual pontificado – como reconciliar a ideia do Papa de sinodalidade como um povo caminhando junto na Igreja com as medidas antipandêmicas de distanciamento obrigatório, quarentena e isolamento.

Durante um discurso em outubro de 2015, que poderia ser considerado a “carta magna” da sinodalidade eclesial, Francisco descreveu a Igreja sinodal como sendo “como um estandarte erguido pelas nações”.


Uma história ainda se desenrolando em várias fases

Mas ficou mais difícil imaginar como realmente ser uma Igreja sinodal nesses sete meses desde que ele anunciou o tema da assembleia sinodal de 2022.

Quando ele fez o anúncio, na primeira semana de março, muitos países já estavam entrando no lockdown da pandemia.

A sinodalidade tornou-se parte do vocabulário da Igreja de uma forma que dificilmente poderia ser imaginada antes de Jorge Mario Bergoglio ser eleito Papa.

No entanto, a ênfase do Papa argentino na sinodalidade é uma história ainda em desenvolvimento com fases distintas e claramente identificáveis.


Das assembleias sinodais consecutivas ao intermezzo

A Fase Um veio nos anos decisivos de 2013-2015. Foi marcada pelas duas assembleias sinodais sobre o casamento e a família – primeiro em 2014 e depois em 2015. Francisco anunciou estes encontros consecutivos sem precedentes apenas alguns meses após a sua eleição em 2013.

A segunda fase foi o intermezzo entre 2016-2018. Essa foi caracterizada por uma série de episódios.

Primeiro, houve a reação dos tradicionalistas a Amoris Laetitia, a exortação pós-sinodal do Papa de 2016 sobre o casamento e a vida familiar. Em seguida, houve a publicação em setembro de 2018 de Episcopalis Communio, uma constituição apostólica para reformar o Sínodo dos Bispos.

Poucas semanas depois, foi emitida uma instrução sobre a celebração do Sínodo, seguida quase imediatamente pela assembleia do Sínodo dos Bispos sobre os jovens (3-28 de outubro).

A Fase Três está tomando forma e pode ser identificada com as crescentes preocupações que Francisco expressou desde o início de 2019 sobre os riscos da sinodalidade e a necessidade de distingui-la do funcionalismo parlamentar.

Ele articulou suas apreensões em uma carta à Igreja da Alemanha (junho de 2019), em discursos que proferiu durante o chamado Sínodo Pan-Amazônico (outubro de 2019) e até na exortação pós-sinodal, Querida Amazônia.


A sinodalidade não funciona como um parlamento

Finalmente, o Papa também expressou sua preocupação sobre a falta de entendimento sobre o Sínodo e a sinodalidade em um escrito nunca publicado, mas que foi revelado pelo jesuíta Antonio Spadaro em um artigo da La Civiltà Cattolica, de setembro passado.

Nos últimos dois anos, Francisco tem sido cada vez mais persistente no alerta contra o perigo de permitir que a sinodalidade caia nas mãos de elites eclesiais que a colocarão uma política idiossincrática e tocarão mudanças canônicas.

Ele também está obstinado para que o procedimento sinodal não se torne em algo similar a debates parlamentares.

O que isso significa para agora e 2022, como uma visão do Papa para uma Igreja sinodal que se encaminha para a Fase Quatro?


O “caminho sinodal” da Alemanha

Os próximos dois anos devem revelar se a nova ênfase do Papa sobre a sinodalidade é meramente uma mudança no vocabulário ou algo que aspira ou pretende criar raízes a nível institucional e em documentos do magistério.

São poucos os processos sinodais que já se iniciaram. Dois deles estão a nível nacional e eles devem ser completados entre agora e o início da próxima assembleia do Sínodo dos Bispos, em 2022.

O primeiro é na Alemanha, onde o “caminho sinodal” iniciado em 2019 tem chamado a atenção de muitos e causado ansiedade em Roma.

Nos últimos meses tem ocorrido algumas procissões de líderes da Igreja alemã para audiências com o Papa e oficiais da Cúria Romana.

O Sínodo nacional da Alemanha é um evento para todos os católicos do país, mas não é separado de outros processos locais.

Por exemplo, a diocese de Trier tem trabalhado para reestruturar o sistema paroquial, não somente reduzindo o número de paróquias, mas também repensando o papel do clero nos “times paroquiais” feitos por leigos.

No início deste ano, as autoridades em Roma rejeitaram o projeto apresentado pelo bispo de Trier, que na verdade foi fruto de um sínodo diocesano de 2016.

Outras dioceses na Alemanha estão planejando reformas semelhantes. O papa Francisco exortou sua Igreja a buscar uma “descentralização saudável” e promover uma maior sinodalidade. Mas o que isso significa para as igrejas locais, e quanto espaço Roma lhes permitirá manobrar, ainda não está claro.


Um Conselho Plenário “Austral”


O segundo lugar onde a sinodalidade está sendo testada em nível nacional é a Austrália.

A Igreja Católica começou a planejar um Conselho Plenário em 2018, realizando pequenas reuniões locais. O processo representa um dos exemplos mais interessantes de tentar aproveitar o “momento Francisco” – embora as primeiras propostas para um sínodo na Austrália tenham precedido a eleição do atual Papa.

No caso australiano, a preparação do Conselho Plenário foi moldada por um forte papel dos leigos, inclusive no nível de liderança no comitê executivo e na equipe de facilitação.

Uma característica fundamental dos preparativos é um relatório de 208 páginas, intitulado “A Luz da Cruz Austral: promovendo corresponsabilidade na Igreja Católica na Austrália”.

Foi compilado por 18 homens e mulheres católicos – um bispo, três padres e 14 leigos que representam um campo amplo e variado de especialização (para divulgação completa: fui membro dessa força-tarefa que trabalhou no relatório).

A Conferência Episcopal Australiana e os Religiosos Católicos da Austrália pediram ao grupo para basear seu relatório nas recomendações que a Comissão Real para Respostas Institucionais ao Abuso Sexual Infantil (2013-2017) fez sobre a governança da Igreja local – mas, obviamente, de uma forma compatível com a eclesiologia católica.

Este relatório pode se tornar um modelo de como uma Igreja pode proceder na reforma de sua estrutura de governo em resposta à crise de abusos. Nenhuma igreja no catolicismo global está isenta dessa tarefa.


Um exemplo e um desafio


Não é exagero dizer que o caminho para a assembleia do Sínodo dos Bispos de 2022 em Roma passa pelos processos sinodais na Alemanha e na Austrália.

Esses dois processos também servem de exemplo e desafio para outros países, como Itália e Estados Unidos, cujas hierarquias negam a sinodalidade ou simplesmente a ignoram.

Mas não se trata apenas do futuro da sinodalidade nas Igrejas locais, e não se trata de um aspecto particular do pontificado de Francisco separável do todo.

Tanto o processo sinodal alemão quanto o australiano são uma resposta direta à trágica história de abuso sexual na Igreja. O fracasso desses eventos eclesiais seria catastrófico, porque seria mais um fracasso na resposta institucional da Igreja à crise dos abusos.


Mensagens confusas de Roma


Nos próximos dois anos, há muito em jogo para o pontificado de Francisco, especialmente porque o Vaticano tem enviado mensagens contraditórias nos últimos meses.

Apesar de toda a grande contribuição do Papa sobre a sinodalidade, a Cúria Romana ainda fala uma linguagem muito diferente.

Por exemplo, a Congregação para o Clero emitiu em julho passado uma nova instrução sobre “a conversão pastoral da comunidade paroquial”. Entre outras omissões que chamam a atenção, nunca menciona a crise dos abusos.

E simplesmente repropõe o modelo tradicional de governo paroquial, centrado no sacerdócio monocrático. Isso é simplesmente irreal em muitas igrejas hoje.

Cabe comparar isso com a nomeação do cardeal Mario Grech como secretário-geral do Sínodo dos Bispos, que assumiu o cargo em outubro.

É um compromisso crucial e envia um sinal claro de que a sinodalidade pode reavivar o potencial evangelizador e missionário das igrejas locais.

Decididamente, não é outra forma de perpetuar uma forma clerical de governar a Igreja, que é claramente insustentável tanto do ponto de vista teológico quanto prático.


O risco de frustrar as esperanças sinodais


Não pode haver sinodalidade viável na Igreja Católica que continue a ignorar ou adiar as questões fundamentais dos ministérios eclesiais e do papel das mulheres na liderança da Igreja.

Teólogos latino-americanos e líderes da Igreja ficaram muito desapontados com a maneira como o Papa interpretou o Sínodo da Amazônia em sua exortação apostólica Querida Amazônia. Mas eles expressaram sua decepção em particular.

Os latino-americanos sabem que não podem decepcionar seu próprio Papa, um filho nativo.

Mas se as esperanças sinodais forem frustradas na Alemanha e na Austrália, deixando os católicos desses dois países profundamente decepcionados, a história pode ser totalmente diferente.

É muito arriscado esperar que essas duas Igrejas locais, as quais estão entre as mais atingidas pela crise de abusos, reagiriam de formas polidas como seus irmãos e irmãs da América Latina.

Dessa vez uma variação sobre o tema “la synodalitè – c’est moi”, ou “a sinodalidade sou eu”, não basta.

Fonte: IHU

Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social Capítulo III (5)


Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social 

Leitura da Carta Encíclica FRATELLI TUTTI do Santo Padre FRANCISCO sobre a Fraternidade e Amizade Social. 

Capítulo III: Pensar e gerar um mundo aberto. 

nn.118-120. Título 11: Repropor a função social da propriedade. 
nn. 121-123. Título 11: Repropor a função social da propriedade. Subtítulo 1: Direitos sem fronteiras. 
nn.124-127. Título 11: Repropor a função social da propriedade. Subtítulo 2: Direitos dos povos. 

 
CARTA ENCÍCLICA  FRATELLI TUTTI  DO SANTO PADRE  FRANCISCO  SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL 

Final do Capítulo III 

PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO 

Repropor a função social da propriedade 

118. O mundo existe para todos, porque todos nós, seres humanos, nascemos nesta terra com a mesma dignidade. As diferenças de cor, religião, capacidade, local de nascimento, lugar de residência e muitas outras não podem antepor-se nem ser usadas para justificar privilégios de alguns em detrimento dos direitos de todos. Por conseguinte, como comunidade, temos o dever de garantir que cada pessoa viva com dignidade e disponha de adequadas oportunidades para o seu desenvolvimento integral. 

119. Nos primeiros séculos da fé cristã, vários sábios desenvolveram um sentido universal na sua reflexão sobre o destino comum dos bens criados.[91] Isto levou a pensar que, se alguém não tem o necessário para viver com dignidade, é porque outrem se está a apropriar do que lhe é devido. São João Crisóstomo resume isso, dizendo que, «não fazer os pobres participar dos próprios bens, é roubar e tirar-lhes a vida; não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos».[92] E São Gregório Magno di-lo assim: «Quando damos aos indigentes o que lhes é necessário, não oferecemos o que é nosso; limitamo-nos a restituir o que lhes pertence».[93] 

120. Faço minhas e volto a propor a todos algumas palavras de São João Paulo II, cuja veemência talvez tenha passado despercebida: «Deus deu a terra a todo género humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém».[94] Nesta linha, lembro que «a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada».[95] O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social»,[96] é um direito natural, primordial e prioritário.[97] Todos os outros direitos sobre os bens necessários para a realização integral das pessoas, quaisquer que sejam eles incluindo o da propriedade privada, «não devem – como afirmava São Paulo VI – impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização».[98] O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, e isto tem consequências muito concretas que se devem refletir no funcionamento da sociedade. Mas acontece muitas vezes que os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática. 

Direitos sem fronteiras 

121. Por conseguinte, ninguém pode ser excluído; não importa onde tenha nascido, e menos ainda contam os privilégios que outros possam ter porque nasceram em lugares com maiores possibilidades. Os confins e as fronteiras dos Estados não podem impedir que isto se cumpra. Assim, como é inaceitável que uma pessoa tenha menos direitos pelo simples facto de ser mulher, de igual modo é inaceitável que o local de nascimento ou de residência determine, de por si, menores oportunidades de vida digna e de desenvolvimento. 

122. O desenvolvimento não deve orientar-se para a acumulação sempre maior de poucos, mas há de assegurar «os direitos humanos, pessoais e sociais, económicos e políticos, incluindo os direitos das nações e dos povos».[99] O direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres; nem acima do respeito pelo ambiente, pois «quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos».[100] 

123. É verdade que a atividade dos empresários «é uma nobre vocação, orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos».[101] Deus incita-nos, esperando que desenvolvamos as capacidades que Ele nos deu, bem como as potencialidades de que encheu o universo. Nos seus desígnios, cada homem é chamado a promover o seu próprio desenvolvimento,[102] e isto inclui a implementação das capacidades económicas e tecnológicas para fazer crescer os bens e aumentar a riqueza. Mas estas capacidades dos empresários, que são um dom de Deus, deveriam em todo o caso orientar-se claramente para o desenvolvimento das outras pessoas e a superação da miséria, especialmente através da criação de oportunidades de trabalho diversificadas. A par do direito de propriedade privada, sempre existe o princípio mais importante e antecedente da subordinação de toda a propriedade privada ao destino universal dos bens da terra e, consequentemente, o direito de todos ao seu uso.[103] 

Direitos dos povos 

124. Hoje requer-se que a convicção do destino comum dos bens da terra se aplique também aos países, aos seus territórios e aos seus recursos. Se o olharmos não só a partir da legitimidade da propriedade privada e dos direitos dos cidadãos duma determinada nação, mas também a partir do primeiro princípio do destino comum dos bens, então podemos dizer que cada país é também do estrangeiro, já que os bens dum território não devem ser negados a uma pessoa necessitada que provenha doutro lugar. Pois, como ensinaram os bispos dos Estados Unidos, há direitos fundamentais que «precedem qualquer sociedade, porque derivam da dignidade concedida a cada pessoa enquanto criada por Deus».[104] 

125. Isto supõe também outra maneira de compreender as relações e o intercâmbio entre países. Se toda a pessoa possui uma dignidade inalienável, se todo o ser humano é meu irmão ou minha irmã e se, na realidade, o mundo pertence a todos, não importa se alguém nasceu aqui ou vive fora dos confins do seu próprio país. Também a minha nação é corresponsável pelo seu desenvolvimento, embora possa cumprir tal responsabilidade de várias maneiras: acolhendo-o generosamente quando o requeira uma necessidade imperiosa, promovendo-o na sua própria terra, não desfrutando nem esvaziando de recursos naturais a países inteiros, e não favorecendo sistemas corruptos que impedem o desenvolvimento digno dos povos. Isto que é válido para as nações, aplica-se às diferentes regiões de cada país, entre as quais se verificam muitas vezes graves desigualdades. Entretanto a incapacidade de reconhecer a igual dignidade humana leva às vezes a que as regiões mais desenvolvidas dalguns países aspirem por libertar-se do «fardo» das regiões mais pobres para aumentar ainda mais o seu nível de consumo. 

126. Falamos duma nova rede nas relações internacionais, porque não é possível resolver os graves problemas do mundo, pensando apenas em termos de mútua ajuda entre indivíduos ou pequenos grupos. Lembremo-nos que «a desigualdade não afeta apenas os indivíduos mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações internacionais».[105] E a justiça exige reconhecer e respeitar não só os direitos individuais, mas também os direitos sociais e os direitos dos povos.[106] Quanto afirmamos implica que se assegure «o direito fundamental dos povos à subsistência e ao progresso»,[107] que às vezes é fortemente dificultado pela pressão resultante da dívida externa. Em muitos casos, o pagamento da dívida não só não favorece o desenvolvimento, mas limita-o e condiciona-o intensamente. Embora se mantenha o princípio de que toda a dívida legitimamente contraída deve ser paga, a maneira de cumprir este dever que muitos países pobres têm para com países ricos não deve levar a comprometer a sua subsistência e crescimento. 

127. Trata-se, sem dúvida, doutra lógica. Se não se fizer esforço para entrar nesta lógica, as minhas palavras parecerão um devaneio. Mas, se se aceita o grande princípio dos direitos que brotam do simples facto de possuir a inalienável dignidade humana, é possível aceitar o desafio de sonhar e pensar numa humanidade diferente. É possível desejar um planeta que garanta terra, teto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz, e não a estratégia insensata e míope de semear medo e desconfiança perante ameaças externas. Com efeito, a paz real e duradoura é possível só «a partir de uma ética global de solidariedade e cooperação ao serviço de um futuro modelado pela interdependência e a corresponsabilidade na família humana inteira».[108] 

______________ 

[91] Cf. São Basílio, Homilia 21. Quod rebus mundanis adhaerendum non sit, 3 e 5: PG 31, 545-549; Regulae brevius tractatae, 92: PG 31, 1145-1148; São Pedro Crisólogo, Sermo 123: PL 52, 536-540; Santo Ambrósio, De Nabuthe 27.52: PL 14, 738-739; Santo Agostinho, In Iohannis Evangelium 6, 25: PL 35, 1436-1437. 

[92] De Lazarum Concio 2, 6: PG 48, 992D. 

[93] Regula pastoralis 3, 21: PL 77, 87. 

[94] Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 31: AAS 83 (1991), 831. 

[95] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 93: AAS 107 (2015), 884. 

[96] São João Paulo II, Carta enc. Laborem exercens (14 de setembro de 1981), 19: AAS 73 (1981), 626. 

[97] Cf. Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 172. 

[98] Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 22: AAS 59 (1967), 268. 

[99] São João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de dezembro de 1987), 33: AAS 80 (1988), 557. 

[100] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 95: AAS 107 (2015), 885. 

[101] Ibid., 129: o. c., 899. 

[102] Cf. São Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 15: AAS 59 (1967), 265; Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 16: AAS 101 (2009), 652. 

[103] Cf. Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 93: AAS 107 (2015), 884-885; Idem, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 189-190: AAS 105 (2013), 1099-1100. 

[104] Conferência dos Bispos católicos dos Estados Unidos, Open wide our Hearts: The enduring Call to Love. A Pastoral Letter against Racism (novembro de 2018). 

[105] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 51: AAS 107 (2015), 867. 

[106] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 6: AAS 101 (2009), 644. 

[107] São João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 35: AAS 83 (1991), 838. 

[108] Francisco, Discurso sobre as armas nucleares (Nagasáqui - Japão 24 de novembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 03/XII/2019), 9.

“Não subestimem o populismo de esquerda”. Artigo de Chantal Mouffe





"A crise atual exige uma estratégia populista de esquerda capaz de criar uma força popular coletiva que estruture uma nova hegemonia, para recuperar e aprofundar a democracia. Uma estratégia populista de esquerda reconhece que a política é uma atividade partidária na qual os afetos desempenham um papel importante. Traçando uma fronteira política entre 'nós' e 'eles', o 'povo' e a 'oligarquia', é capaz de mobilizar a dimensão afetiva que está em jogo na construção de formas coletivas de identificação", escreve Chantal Mouffe, cientista política pós-marxista belga, desenvolve trabalhos na área da teoria política, estudou em Lovaina, Paris e Essex e tem trabalhado em várias universidades na Europa, América do Norte e América Latina, em artigo publicado por Open Democracy e reproduzido por Outras Palavras, 28-10-2020. A tradução é de Simone Paz Hernández.

Leia o artigo AQUI

“Hoje a esperança vem dos jovens.” Entrevista com Tahar Ben Jelloun

Tahar Ben Jelloun está convencido: “Há outro inimigo circulando pelo mundo, invisível e traiçoeiro como o coronavírus, mas que não pode ser combatido com gel nem usando a máscara. Não existe um desinfetante eficaz contra a barbárie do terrorismo. É preciso vigiar, é preciso ter a coragem de enfrentar a realidade”.

No próximo sábado, às 17h30 [hora de Roma], o escritor se conectará de sua casa em Paris com os Eventos Literários Monte Verità, na Suíça, para realizar um encontro que enfoca o círculo vicioso entre racismos e novas escravidões.

Nascido em Fez, Marrocos, em 1944, Ben Jelloun sempre se confrontou com a complexidade e as injustiças do nosso tempo, seja por meio de romances memoráveis ​​como “O menino de areia” (Ed. Nova Fronteira) ou o recente “Insônia” (Ed. Galera), seja com livros voltados principalmente aos leitores mais jovens, entre os quais se destaca o muito exitoso “O racismo explicado à minha filha” (Via Lettera Editora).

Pela editora La Nave di Teseo, que está repropondo toda a sua obra ao público italiano, está prestes a ser publicado o livro “La filosofia spiegata ai bambini” [A filosofia explicada às crianças].

“Na França, ele foi um sucesso”, explica o autor. “Durante o confinamento, muitos o compraram para tentar entender o que estava acontecendo. A filosofia sempre começa a partir daí: das perguntas que nos fazemos. E as crianças são muito boas em fazer perguntas, além de serem muito exigentes nas suas respostas.”

A reportagem é de Alessandro Zaccuri, publicada em Avvenire, 29-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.


Confira a entrevista AQUI

29 outubro, 2020

Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social Capítulo III (4)


Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social 

Leitura da Carta Encíclica FRATELLI TUTTI do Santo Padre FRANCISCO sobre a Fraternidade e Amizade Social. 

Capítulo III: Pensar e gerar um mundo aberto. 


Ainda estamos no capítulo III. Reapresento a visão do capítulo para facilitar que cada um se localize. 

Capítulo III 
PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO 
[nn.87-127] 


Visão geral do capítulo 

1. Mais além [88-90] 
2. O valor único do amor [91-94] 
3. A progressiva abertura ao amor [95-96] 
4. Sociedades abertas que integram a todos [97-98] 
5. Noções inadequadas de amor universal [99-100] 
6. Superar um mundo de sócios [101-102] 
7. Liberdade, igualdade e fraternidade [103-105] 
8. Amor universal que promove as pessoas [106-111] 
9. Promover o bem moral [112-113] 
10. O valor da solidariedade [114-117] 
11. Repropor a função social da propriedade [118-120] 
12. Direitos sem fronteiras [121-123] 
13. Direitos dos povos [124-127] 

Leitura da Carta Encíclica FRATELLI TUTTI do Santo Padre FRANCISCO sobre a Fraternidade e Amizade Social. Capítulo III: Pensar e gerar um mundo aberto. Áudio 10, nn.114-117. Título 10: O valor da solidariedade. Quinta, dia 29. 


CARTA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI DO SANTO PADRE FRANCISCO SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL 


Capítulo III 
PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO 

O valor da solidariedade 

114. Quero destacar a solidariedade, que «como virtude moral e comportamento social, fruto da conversão pessoal, exige empenho por parte duma multiplicidade de sujeitos que detêm responsabilidades de carácter educativo e formativo. Penso em primeiro lugar nas famílias, chamadas a uma missão educativa primária e imprescindível. Constituem o primeiro lugar onde se vivem e transmitem os valores do amor e da fraternidade, da convivência e da partilha, da atenção e do cuidado pelo outro. São também o espaço privilegiado para a transmissão da fé, a começar por aqueles primeiros gestos simples de devoção que as mães ensinam aos filhos. Quanto aos educadores e formadores que têm a difícil tarefa de educar as crianças e os jovens, na escola ou nos vários centros de agregação infantil e juvenil, devem estar cientes de que a sua responsabilidade envolve as dimensões moral, espiritual e social da pessoa. Os valores da liberdade, respeito mútuo e solidariedade podem ser transmitidos desde a mais tenra idade. (…) Também os agentes culturais e dos meios de comunicação social têm responsabilidades no campo da educação e da formação, especialmente na sociedade atual onde se vai difundindo cada vez mais o acesso a instrumentos de informação e comunicação».[87] 

115. Nestes momentos em que tudo parece diluir-se e perder consistência, faz-nos bem invocar a solidez,[88] que deriva do facto de nos sabermos responsáveis pela fragilidade dos outros na procura dum destino comum. A solidariedade manifesta-se concretamente no serviço, que pode assumir formas muito variadas de cuidar dos outros. O serviço é, «em grande parte, cuidar da fragilidade. Servir significa cuidar dos frágeis das nossas famílias, da nossa sociedade, do nosso povo». Nesta tarefa, cada um é capaz «de pôr de lado as suas exigências, expetativas, desejos de omnipotência, à vista concreta dos mais frágeis (…). O serviço fixa sempre o rosto do irmão, toca a sua carne, sente a sua proximidade e, em alguns casos, até “padece” com ela e procura a promoção do irmão. Por isso, o serviço nunca é ideológico, dado que não servimos ideias, mas pessoas».[89] 

116. Os últimos, em geral, «praticam aquela solidariedade tão especial que existe entre quantos sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido, ou pelo menos tem grande vontade de esquecer. Solidariedade é uma palavra que nem sempre agrada; diria que algumas vezes a transformamos num palavrão, que não se pode dizer; mas é uma palavra que expressa muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais. É fazer face aos efeitos destrutivos do império do dinheiro (...). A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma forma de fazer história e é isto que os movimentos populares fazem».[90] 

117. Quando falamos em cuidar da casa comum, que é o planeta, fazemos apelo àquele mínimo de consciência universal e de preocupação pelo cuidado mútuo que ainda possa existir nas pessoas. De facto, se alguém tem água de sobra mas poupa-a pensando na humanidade, é porque atingiu um nível moral que lhe permite transcender-se a si mesmo e ao seu grupo de pertença. Isto é maravilhosamente humano! Requer-se este mesmo comportamento para reconhecer os direitos de todo o ser humano, incluindo os nascidos fora das nossas próprias fronteiras. 

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[87] Francisco, Mensagem para o 49º Dia Mundial da Paz de 2016 (8 de dezembro de 2015), 6: AAS 108 (2016), 57-58. 

[88] A solidez está na raiz etimológica da palavra solidariedade. Esta, segundo o significado ético-político assumido nos últimos dois séculos, gera uma construção social segura e firme. 

[89] Francisco, Homilia na Santa Missa (Havana – Cuba 20 de setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 24/IX/2015), 6.8. 

[90] Idem, Discurso aos participantes no Enco

Estudo revela como BNDES e BlackRock financiam a violência contra indígenas no Brasil

"Segundo o relatório da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, a pecuária ocupa 80% da área desmatada da Amazônia. A floresta dá lugar ao pasto, que alimenta um rebanho em franca ascensão. O número de animais na região passou de 47 milhões em 2000 para cerca de 85 milhões atualmente. Das 215 milhões de cabeça de gado contabilizadas hoje em todo o Brasil, quase 40% pastam na Amazônia – muitos deles dentro de terras indígenas, o que é ilegal, mas abastece a indústria."


Entre janeiro de 2017 e junho de 2020, nove empresas associadas à invasão ou pressão sobre terras indígenas na Amazônia receberam 63,2 bilhões de dólares em investimentos. Aplicado nas companhias com a perspectiva de rentabilidade, o dinheiro acaba incentivando violações de direitos dos povos nativos da floresta, como disputa por terras, contaminação de rios, desmatamento e até violência física.

Leia a reportagem AQUI


29 É missão de todos nós Ir Eliane

Projeto "Caminhos de Santidade": São Narciso

28 outubro, 2020

De volta às Bases - Por Celso Pinto Carias

Segue um ótimo texto do meu amigo Celso Pinto Carias




De volta às Bases

Celso Pinto Carias, “mendigo de Deus”

Com esta coluna iniciamos uma trajetória no Portal da CEBs. Tentaremos dialogar com situações que perpassam a vida das Comunidades Eclesiais de Base. Queremos começar por uma questão que tem sido recorrente nos últimos anos. Em muitos espaços nos quais se reflete sobre “projeto de sociedade” tem aparecido a questão do abandono das bases. No entanto, tudo indica que não há consenso quanto ao significado de tal afirmação.

As variantes que permitam tentar entender o que se está se querendo afirmar são muitas. Desde a negação, isto é, não houve saída das bases, até a afirmação do completo abandono. Porém, iremos problematizar e oferecer perspectivas críticas. Iremos continuar, mesmo que de forma transversal, nas próximas colunas. Certamente tudo estará no campo do debate. O que não podemos é colocar a poeira debaixo do tapete.

Ao longo das últimas décadas do século vinte muitas iniciativas para ir ao encontro do povo aconteceram. No presente momento outras tantas continuam acontecendo. Contudo, a questão que acreditamos ser chave, é como a opção de um caminho solidário de construção da dignidade fundamental da pessoa humana se realizou, se de fato tem conseguido tornar as pessoas sujeitos da própria história.

Não se trata de fazer um juízo de valor quanto à sinceridade, honestidade, ou mesmo a santidade, daqueles e daquelas que se colocaram nesta direção, mas sim de constatar um fato: por que boa parte da população mais à margem da sociedade, em nossos dias, não se encontra predominantemente nas CEBs e em outros setores da sociedade que procuram defender a eles próprios?

Tem-se feito muitas avaliações para responder a pergunta acima. Podem-se levar em consideração muitos fatores, como a aliança da mídia com uma estrutura de poder opressora, ou perseguição direta, entre outros. Mas a complexidade da vida em sociedade e a forma como o poder se movimenta não permite que cheguemos a conclusões rápidas sem levar em consideração outras possibilidades.

Quais possibilidades? Por exemplo: será que nossa cultura racionalista (cartesiana) não tem nos colocado em uma postura arrogante quando vamos aos pobres? O Papa Francisco tem insistido que não podemos pensar a ação pastoral, diríamos qualquer ação em sociedade, PARA o povo, mas sim COM o povo. Uma reflexão que tem crescido nos últimos anos é a da postura colonialista de estruturas articuladoras da vida nas regiões mais pobres do planeta, como a América Latina, que acabam por utilizar as mesmas categorias dos colonizadores. Assim, pode-se alcançar algum avanço na capacidade de consumo dos pobres, até na melhoria de indicadores sociais de inclusão, mas o protagonismo, a autoafirmação de si mesmo como portador fundamental de dignidade e o crescimento da consciência de que só podemos ser juntos e com capacidade de se colocar no lugar do/a outro/a (empatia), ainda está por ser aprofundado.

A pessoa não é um boneco de barro que se possa moldar, por melhor que sejam as intenções. Há saber em todos os seres humanos, em todas as culturas, mesmo que aparentemente, sob a nossa avaliação, eles estejam num grau inferior de compreensão da realidade, e por isso, nós, os “conscientizadores”, não temos o direito de fazer a nossa ação heróica de libertá-los sem a participação deles. Muitas vezes o que acontece é liberação e não libertação. É preciso ajudar as pessoas se libertarem não somente da escravidão, mas de se tornarem, uma vez libertos, escravagistas.

A crítica ao sistema pode apresentar os fatores subjetivos da existência humana como algo sem valor. A rede de configuração simbólica da existência humana é um fator determinante na lógica da sobrevivência. Cursos e palestras, seminários e encontros, não são suficientes, por si mesmo, para obter força de resistência diante da dura peleja pela vida.

Assim sendo, voltar as bases exige de nós conversão. Precisamos ir ao povo dispostos a ver, ouvir e encontrá-lo dentro de sua lógica cultural, e, se possível, propor outras possibilidades. Sem preconceitos, sem arrogância, sem a lógica messiânica de um salvador, de um herói que irá resgatar o povo de sua miserabilidade.

Fonte: Portal das CEBs

28 - É missão de todos nós Amanda Carletto da Silva

Projeto "Caminhos de Santidade": São Simão é São Judas Tadeu

27 outubro, 2020

Catequese Permanente 27/10/2020

Catequese Permanente Primeira Catequese com o tema Teologia que sustenta a Jornada Mundial dos Pobres Celso Pinto Carias De Duque de Caxias, RJ Assessor das CEBs do Brasil e do Setor CEBs da Comissão Pastoral Episcopal para o Laicato da CNBB.

26 outubro, 2020

“Teologia que sustenta a Jornada Mundial dos Pobres"

Canal das CEBs de Maringá



"Catequese Permanente"

Na próxima terça-feira, dia 27 de outubro de 2020, o tema da Catequese Permanente “Teologia que sustenta a Jornada Mundial dos Pobres".

Serão cinco catequeses. 

As três primeira com assessoria de Celso Pinto Carias e as duas últimas assessoria do Padre Vileci Vidal.

- Celso Pinto Carias, de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, assessor das CEBs do Brasil e do Setor CEBs da Comissão Pastoral Episcopal para o Laicato da CNBB. 

- Padre Vileci Vidal, da Diocese de Crato, Ceará, assessor Nacional das CEBs
Na última terça feira, encerramos o tema "Missão". Agradecemos ao Padre Genivaldo Ubinge que desenvolveu a temática em três catequeses.

Plano de expansão de barragens hidrelétricas na Bacia Amazônica coloca em risco populações locais e a biodiversidade

Entrevista especial com Philip M. Fearnside
Para o pesquisador, planos do governo federal são insustentáveis tanto do ponto de vista da produção de energia quanto no que toca aos direitos das populações locais.

Mulheres munduruku na ocupação da Usina São Manoel | Foto: Juliana Rosa - Fórum Teles Pires

Philip M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan, EUA, e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - Inpa, em Manaus, AM, onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas - IPCC, em 2007.

Confira a entrevista AQUI

26 É missão de todos nós Alasse Lourenço

24 outubro, 2020

Francisco e as uniões homossexuais


“Se uma pessoa é gay e busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?” A afirmação do Papa Francisco durante a sua viagem ao Brasil em 2013 se tornou viral e se impôs no contexto midiático. Algo semelhante poderia acontecer com a expressão usada por ele no documentário do diretor russo Evgeny Afineevsky, intitulado "Francesco": “As pessoas homossexuais têm o direito de estar em uma família. São filhas de Deus e têm direito a uma família. Ninguém deveria ser expulso ou ficar infeliz com isso. O que devemos criar é uma lei sobre as uniões civis. Desse modo, elas são cobertas legalmente. Eu lutei por isso”.

A reportagem é de Gabriele Passerini, publicada por Settimana News, 22-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A legitimidade e a oportunidade de uma legislação civil que regule um fenômeno social sem confundir a dimensão do matrimônio com a simples união não é nova no pensamento do papa. Foi isso que ele defendeu na Argentina em 2010, quando se discutia o casamento gay.

Muito crítico ao projeto de lei, considerado um “grave dano”, ele considerava aceitável uma normativa com um perfil jurídico próprio. Em termos tradicionais da teologia moral, “um mal menor”.

A posição de Francisco certamente é diferente do fechamento “a todo reconhecimento legal das uniões homossexuais” do documento da Congregação para a Doutrina da Fé de 2003 (“Considerações sobre os projetos para o reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais”), mas não representa um passe livre para a equiparação entre união e casamento civil, muito menos a abertura ao matrimônio religioso dos homossexuais. Ela expressa uma mudança de abordagem da questão e um olhar que privilegia os dados positivos e evangélicos sobre os normativos, sem renegar estes últimos.
Reconhecer o amor generoso

Ao longo dos anos do pontificado, não faltaram sinais. Lembremos alguns. Em 2014, durante o primeiro Sínodo sobre a família, houve um momento de forte discussão ao término da Relatio post disceptationem, ou seja, do relatório após o debate na sala e antes dos trabalhos em grupo [disponível aqui, em português].

No n. 52, dizia-se: “Sem negar as problemáticas morais ligadas às uniões homossexuais, tomamos consciência de que há casos nos quais o apoio recíproco até ao sacrifício constitui um apoio precioso para a vida dos parceiros. Além disso, a Igreja dedica atenção especial às crianças que vivem com casais do mesmo sexo, reafirmando que devem ser sempre postas em primeiro lugar as exigências e os direitos dos filhos”.

Os números 50-52 não alcançaram a maioria de dois terços, e o tema caiu, mas, entre os contrários, havia também aqueles que os consideravam muito cautelosos. De todos os modos, o papa, ao se encontrar com o redator dos textos, encorajou-o sem se mostrar preocupado com o revés.

A exortação pós-sinodal Amoris laetitia (2016), no n. 297, tem esta passagem: “Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho! Não me refiro só aos divorciados que vivem numa nova união, mas a todos seja qual for a situação em que se encontrem”.

Em uma das respostas do livro entrevista a Dominique Wolton, lê-se: “O que pensar do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo? O ‘matrimônio’ é um termo histórico. Desde sempre, na humanidade e não só na Igreja, ele é composto por um homem e uma mulher. Isso não pode ser mudado. É a natureza das coisas. É assim”.

E continua: “O matrimônio, isto é, um homem com uma mulher. Esses são os termos precisos. Chamemos a convivência homossexual de união civil... mas não é um matrimônio, é uma união civil”.

Na exortação pós-sinodal Christus vivit (2019), no n. 81, diz-se: “Os jovens reconhecem que o corpo e a sexualidade são essenciais para a sua vida e para o crescimento da sua identidade. Mas, num mundo que destaca excessivamente a sexualidade, é difícil manter uma boa relação com o próprio corpo e viver serenamente as relações afetivas. Por esta e outras razões, a moral sexual é frequentemente causa de incompreensão e alheamento da Igreja, pois é sentida como um espaço de julgamento e condenação. Ao mesmo tempo, os jovens expressam de maneira explícita o desejo de se confrontar sobre as questões relativas à diferença entre identidade masculina e feminina, à reciprocidade entre homens e mulheres, e à homossexualidade”
Deslocamentos teológicos

Indireta, mas de um certo peso, é a interpretação que a Pontifícia Comissão Bíblica, no documento “O que é o homem?” (2019), no número 195, fez do relato do pecado de Sodoma, em Gênesis 19,1-29.

Esse texto é sempre citado na tradição para sustentar a desaprovação bíblica da orientação e da prática homossexuais (também no Catecismo da Igreja Católica). A Comissão demonstra que, na realidade, a exegese da passagem deve ser revisada.

O verdadeiro pecado de Sodoma é a falta de hospitalidade ao forasteiro, representado pelos dois anjos. “A rejeição do diferente, do estranho, do necessitado e indefeso é princípio de desagregação social, tendo em si mesma uma violência mortífera que merece uma pena adequada”.

Em um recente encontro com os pais de homossexuais da associação Tenda di Gionata, o Papa Francisco disse: “O papa ama os filhos de vocês assim como são, porque são filhos de Deus. A Igreja não os exclui, porque os ama profundamente”.

No episódio, não surgiu uma segunda questão, ligada à bênção da união homossexual. Excluída do Catecismo da Igreja Católica, ela é praticado nas Igrejas reformadas e congrega muitas discussões entre os teólogos. Um exemplo disso é o livro “ Benediktion von gleichgeschlectlichen Partnerschaften” (Bênção de casais do mesmo sexo), publicado pela Pustet na Alemanha, que reúne as atas de uma congresso promovido pela Conferência dos Bispos da Áustria.

Também nesse caso, não está em questão o matrimônio religioso, mas sim a possibilidade de uma união homossexual ser acompanhada por um gesto de bênção no nível das orações contidas no Ritual de Bênçãos.

Voltando à ocasião que suscitou a discussão, é preciso lembrar que o documentário de Evgeny Afineevsky é o relato dos desafios e da missão da Igreja hoje. Muitas das emergências atuais são reconstruídas por meio de documentos, trechos de vídeos e entrevistas (de Bento XVI aos familiares de Bergoglio, do cardeal Tagle a Dom Scicluna) e algumas respostas do próprio Francisco.

O diretor disse que o filme não é sobre o papa, mas sobre os desastres do mundo: “Fiquei impressionado com ele não como papa, mas como pessoa. Ele é um verdadeiro jesuíta, um homem de ação, mas também um verdadeiro líder. Algo que faz muita falta hoje”.

Fonte: IHU

24 - “É Missão de Todos Nós” – Testemunho Missionário Pe Obelino

23 outubro, 2020

Para refletir

“Viver indiferentes à dor não é uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído «nas margens da vida». Isto deve indignar-nos de tal maneira que nos faça descer da nossa serenidade alterando-nos com o sofrimento humano. Isto é dignidade.” (Fratelli Tutti)

O que é a declaração antiaborto que Brasil e EUA articulam e qual seu impacto

O Brasil assina nesta quinta-feira (22), junto com os Estados Unidos e outros 4 países, um documento que consolida uma aliança antiaborto. Chamado de ‘Consenso de Genebra’ por seus autores, a declaração tem como objetivo restringir os direitos reprodutivos, assim como o entendimento sobre família. O conteúdo do texto não tem efeitos jurídicos imediatos, mas a atuação política da diplomacia brasileira abre caminho para retrocessos nas normas nacionais e pode fragilizar a influência da diplomacia brasileira.

A reportagem é de Marcella Fernandes, publicada por HuffPost, 22-10-2020.

De acordo com a declaração, a promoção do acesso à saúde sexual e reprodutiva não deve incluir procedimentos de interrupção da gravidez e “o aborto não deve ser promovido como um método de planejamento familiar em nenhum caso”. O texto também diz que “quaisquer medidas ou mudanças relacionadas ao acesso ao abortamento no sistema de saúde só podem ser determinadas em nível nacional ou local de acordo com o processo legislativo nacional”.

O documento sustenta que “a família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado”; que “a maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais”, que “as mulheres desempenham um papel crítico na família”, além de destacar a “contribuição das mulheres para o bem-estar da família e para o desenvolvimento da sociedade”.

Em outro trecho, a declaração afirma que a criança “precisa de salvaguardas e cuidados especiais antes e depois do nascimento” e que medidas de proteção e de assistência devem ser tomadas “com base no princípio do melhor interesse da criança”. Além do Brasil e dos Estados Unidos, Egito, Hungria, Indonésia e Uganda também são signatários.

Diretora de programas da Conectas Direitos Humanos, Camila Asano destaca o papel ativo do Brasil nessa articulação. “Não tem valor jurídico, mas é uma declaração política forte. O Brasil faz isso no âmbito internacional e ainda vai atrás de assinaturas. Ele não é só um signatário. É um coautor”, afirma.

“A força preocupante dessa declaração é que ela vai dar uma certa argumentação política buscando um respaldo internacional para mudanças legais ou administrativas internas”, completa a especialista, em referência à portaria publicada pelo Ministério da Saúde sobre aborto legal em caso de estupro.
Mais sobre a Portaria

A coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) Sonia Corrêa afirma que a fórmula da Declaração de Genebra é o direito à vida desde a concepção. “O núcleo é essa pauta, que é a pauta do Vaticano desde o final do século XIX”, diz. “O Vaticano aproveitou as reformas constitucionais a partir dos anos 1980 - e foram muitas porque o mundo estava em processo de redemocratização - para pressionar para introduzir o direito à vida desde a concepção nos textos constitucionais”, ressalta.

No Brasil, esse esforço foi derrotado, mas se seguiram uma série de tentativas nos anos seguintes, como a proposta de emenda à Constituição 25/1995, o ‘PL da pílula’, que provocou manifestações em 2015, e a ‘PEC Cavalo de Tróia’, em 2017. “No caso do Brasil, essa proposição [da Declaração de Genebra] está em contradição com a definição constitucional porque não temos uma definição de direito à vida desde a concepção”, afirma a especialista.
Influência diplomática do Brasil

Para Camila Asano, é preciso avaliar quantos países vão aderir à Declaração de Genebra para saber o peso político. “Está com muito mais cara de um dissenso de Genebra. Dependendo do número e da representatividade dos países, a gente vai ver se vai ter força ou não para mover estruturas maiores para emplacar essa visão do papel conservador da mulher na família e esse ataque aos direitos reprodutivos num eventual tratado novo em discussões na ONU [Organização das Nações Unidas]”, afirma.

Na avaliação da especialista, esse desdobramento é importante também para avaliar “quanto o governo Bolsonaro está corroendo essa capacidade diplomática do Brasil”. “O Brasil sempre foi capaz de puxar voto em diferentes partes do mundo”, argumenta Asano.

Desde 2019, há uma virada na atuação da diplomacia brasileira em questões de gênero. De acordo com a integrante da Conectas, a atuação do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU é vista com ressalvas por países europeus e da América Latina. “As outras delegações têm percebido essa atuação do Brasil com preocupação e até com uma certa chacota internacional”, afirma.

A influência política internacional impacta em agendas além do âmbito de direitos humanos, como a intenção do governo Bolsonaro de que o Brasil faça parte da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

“A destruição da Amazônia já tem mostrado um distanciamento cada vez maior entre países europeus - que têm peso enorme nessa decisão sobre a entrada na OCDE - e agora com essas decisões relacionadas a direitos das mulheres, vai tensionar ainda mais países do clube que o Brasil quer entrar. O Brasil quer entrar nesse grupo econômico, mas está nesse perfil de uma cruzada contra direitos das mulheres se alinhando cada vez mais a outros grupos e, com isso, criando cada vez mais um abismo nas repercussões internacionais”, afirma Asano.

O protagonismo do Estados Unidos na iniciativa tem relação direta com o cenário eleitoral do País. Em uma tentativa de se reeleger, Donald Trump tem apostado na bandeira antiaborto e fomentado a revisão do direto à interrupção à gravidez decidido pela Suprema Corte americana no caso Roe versus Wade, em 1973.

Já os outros países signatários da Declaração de Genebra, como Egito, Uganda e Hungria, são conhecidos pelas violações de direitos humanos e pela adoção de regimes antidemocráticos.

A postura desse grupo do qual o Brasil se aproximou em relação aos direitos reprodutivos vai na contramão da posição majoritária da comunidade internacional. Neste ano, 82 países assinaram uma declaração de apoio à Conferência de Pequim, um dos marcos dos direitos das mulheres. O documento foi publicado em uma reunião da Assembleia Geral da ONU em comemoração aos 25 anos do tratado.

“Vinte e cinco anos de ganhos duramente conquistados estão agora seriamente ameaçados por intensas resistências contra esses direitos. Muitas mulheres e meninas ainda têm o direito de tomar decisões sobre suas próprias vidas negado e estão sujeitas à violência sexual e de gênero”, diz o texto que não foi assinado pela delegação brasileira.
Direito internacional ao aborto

Um trecho da Declaração de Genebra afirma que “não há direito internacional ao aborto”, nem “qualquer obrigação internacional por parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto”.

Ao longo dos últimos anos, contudo, há uma construção jurídica internacional de ampliação dos direitos das mulheres. Dois marcos são a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo, em 1994, e a Conferência Mundial Sobre a Mulher, em 1995, em Pequim.

A Conferência do Cairo traz uma definição expandida de direitos reprodutivos, define o aborto como grave problema de saude pública e afirma que onde ele é legal deve ser seguro. “Esses direitos se baseiam no reconhecido direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de seus filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais alto padrão de saúde sexual e de reprodução. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos”, diz um trecho.

Já na Conferência de Pequim é adicionada a ideia de direitos sexuais e uma recomendação aos países que revisem as legislações punitivas sobre interrupção da gravidez. “Começa a transportar o tema do aborto do campo da saúde para o campo da lei, de mudanças legislativas”, a pesquisadora Sonia Corrêa.

A especialista ressalta a importância da inclusão dos direitos sexuais nesse contexto. “Foi adotada uma definição de que os direitos humanos das mulheres comportam o direito de exercer sua sexualidade livre de discriminação, coerção e violência. É uma definição muito importante quando você pensa que uma parcela importante das gestações indesejadas provém das relações sexuais coercitivas e violentas. Essa não é uma definição dissociada do aborto”, destaca.

De acordo com o 13ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2018, foram 66 mil vítimas de estupro – em média 180 violações por dia. De cada dez estupros, 8 ocorrem contra meninas e mulheres e a maioria das vítimas (53,8%) tinham até 13 anos.

Embora as conferências de Cairo e Pequim não sejam vinculativas, “essas definições que emergem das conferências vão se transmutando em definições de caráter mais normativo, com maior densidade legal”, de acordo com Corrêa. Os dois marcos têm peso político devido à forma como foram construídos, a partir de um amplo debate e desdobraram em definições emitidas pelos comitês de vigilância do sistema internacional de direitos humanos e nos sistemas regionais, como a Corte Europeia de DireItos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Uma das principais referências é o caso Artavia Murillo. Em 2012, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que o direito à vida desde concepção não é de caráter absoluto, ao interpretar um trecho da Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida também como Pacto de San José da Costa Rica. O artigo diz que ”toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida” e “esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção”.

O julgamento começou a partir de um casal que pediu acesso a serviço público de saúde da Costa Rica para fazer reprodução assistida e o Estado costarriquenho negou com o argumento de que a eliminação de embriões que feria o artigo do Pacto de San José. ”Essa é uma definição jurisprudencial muito importante que vale para América Latina inteira”, destaca Corrêa.

Além disso, em 2015, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas emitiu uma declaração que reforça esse entendimento. “Embora os Estados partes possam adotar medidas destinadas a regulamentar as interrupções voluntárias da gravidez, tais medidas não devem resultar em violação do direito à vida de uma mulher ou menina grávida, ou de seus outros direitos segundo o Pacto [de San José da Costa Rica]. Dessa forma, as restrições à capacidade de mulheres ou meninas buscarem o aborto não devem colocar em risco suas vidas, submetê-las a dor ou sofrimento físico ou mental”, diz o texto.

Fonte: IHU