15 outubro, 2020

Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social Capítulo III


 



Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social 


Capítulo III 
PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO 
[nn.87-127] 

Visão geral do capítulo 

1. Mais além [88-90] 
2. O valor único do amor [91-94] 
3. A progressiva abertura ao amor [95-96] 
4. Sociedades abertas que integram a todos [97-98] 
5. Noções inadequadas de amor universal [99-100] 
6. Superar um mundo de sócios [101-102] 
7. Liberdade, igualdade e fraternidade [103-105] 
8. Amor universal que promove as pessoas [106-111] 
9. Promover o bem moral [112-113] 
10. O valor da solidariedade [114-117] 
11. Repropor a função social da propriedade [118-121] 
12. Direitos sem fronteiras [121-123] 
13. Direitos dos povos [124-127] 

Leitura da Carta Encíclica FRATELLI TUTTI do Santo Padre FRANCISCO sobre a Fraternidade e Amizade Social. 

Capítulo III: Pensar e gerar um mundo aberto. 

nn.87-99. Título 1: Mais além. 
nn.91-94. Título 2: O valor únicodo amor. 
nn. 95-96. Título 3: A progressiva abertura ao amor. 


CARTA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI DO SANTO PADRE FRANCISCO SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL 

Capítulo III 

PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO 


87. O ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude «a não ser no sincero dom de si mesmo»[62] aos outros. E não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros: «Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que comunico com o outro».[63] Isso explica por que ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já que «a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte».[64] 

Mais além 

88. A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro.[65] Feitos para o amor, existe em cada um de nós «uma espécie de lei de “êxtase”: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser».[66] Por isso, «o homem deve conseguir um dia partir de si mesmo, deixar de procurar apoio em si mesmo, deixar-se levar».[67] 

89. Mas não posso reduzir a minha vida à relação com um pequeno grupo, nem mesmo à minha própria família, porque é impossível compreender-me a mim mesmo sem uma teia mais ampla de relações: e não só as do momento atual, mas também as relações dos anos anteriores que me foram configurando ao longo da minha vida. A minha relação com uma pessoa, que estimo, não pode ignorar que esta pessoa não vive só para a sua relação comigo, nem eu vivo apenas relacionando-me com ela. A nossa relação, se é sadia e autêntica, abre-nos aos outros que nos fazem crescer e enriquecem. O mais nobre sentido social hoje facilmente fica anulado sob intimismos egoístas com aparência de relações intensas. Pelo contrário, o amor autêntico, que ajuda a crescer, e as formas mais nobres de amizade habitam em corações que se deixam completar. O vínculo de casal e de amizade está orientado para abrir o coração em redor, para nos tornar capazes de sair de nós mesmos até acolher a todos. Os grupos fechados e os casais autorreferenciais, que se constituem como um «nós» contraposto ao mundo inteiro, habitualmente são formas idealizadas de egoísmo e mera autoproteção. 

90. Não é sem razão que muitas populações pequenas e sobrevivendo em áreas desérticas conseguiram desenvolver uma generosa capacidade de acolhimento dos peregrinos que passavam, dando assim um sinal exemplar do dever sagrado da hospitalidade. Viveram-no também as comunidades monásticas medievais, como se verifica na Regra de São Bento. Embora pudessem perturbar a ordem e o silêncio dos mosteiros, Bento exigia que se tratasse os pobres e os peregrinos «com toda a consideração e carinho possíveis».[68] A hospitalidade é uma maneira concreta de não se privar deste desafio e deste dom que é o encontro com a humanidade mais além do próprio grupo. Aquelas pessoas reconheciam que todos os valores por elas cultivados deviam ser acompanhados por esta capacidade de se transcender a si mesmas numa abertura aos outros. 

O valor único do amor 

91. As pessoas podem desenvolver algumas atitudes que apresentam como valores morais: fortaleza, sobriedade, laboriosidade e outras virtudes. Mas, para orientar adequadamente os atos das várias virtudes morais, é necessário considerar também a medida em que eles realizam um dinamismo de abertura e união para com outras pessoas. Este dinamismo é a caridade, que Deus infunde. Caso contrário, talvez tenhamos só uma aparência de virtudes, que serão incapazes de construir a vida em comum. Por isso, dizia São Tomás de Aquino – citando Santo Agostinho – que a temperança duma pessoa avarenta nem sequer era virtuosa.[69] Com outras palavras, explicava São Boaventura que as restantes virtudes, sem a caridade, não cumprem estritamente os mandamentos «como Deus os compreende».[70] 

92. A estatura espiritual duma vida humana é medida pelo amor, que constitui «o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana».[71] Todavia há crentes que pensam que a sua grandeza está na imposição das suas ideologias aos outros, ou na defesa violenta da verdade, ou em grandes demonstrações de força. Todos nós, crentes, devemos reconhecer isto: em primeiro lugar está o amor, o amor nunca deve ser colocado em risco, o maior perigo é não amar (cf. 1 Cor 13, 1-13). 

93. Procurando especificar em que consiste a experiência de amar, que Deus torna possível com a sua graça, São Tomás de Aquino explicava-a como um movimento que centra a atenção no outro «considerando-o como um só comigo mesmo».[72] A atenção afetiva prestada ao outro provoca uma orientação que leva a procurar o seu bem gratuitamente. Tudo isto parte duma estima, duma apreciação que, em última análise, é o que está por detrás da palavra «caridade»: o ser amado é «caro» para mim, ou seja, é estimado como de grande valor.[73] E «do amor, pelo qual uma pessoa me agrada, depende que lhe dê algo grátis».[74] 

94. Sendo assim o amor implica algo mais do que uma série de ações benéficas. As ações derivam duma união que propende cada vez mais para o outro, considerando-o precioso, digno, aprazível e bom, independentemente das aparências físicas ou morais. O amor ao outro por ser quem é, impele-nos a procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando esta forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos. 

A progressiva abertura do amor 

95. Enfim, o amor coloca-nos em tensão para a comunhão universal. Ninguém amadurece nem alcança a sua plenitude, isolando-se. Pela sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, maior capacidade de acolher os outros, numa aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um sentido pleno de mútua pertença. Disse-nos Jesus: «Vós sois todos irmãos» (Mt 23, 8). 

96. Esta necessidade de ir além dos próprios limites vale também para as diferentes regiões e países. De facto, «o número sempre crescente de ligações e comunicações que envolvem o nosso planeta torna mais palpável a consciência da unidade e partilha dum destino comum entre as nações da terra. Assim, nos dinamismos da história – independentemente da diversidade das etnias, das sociedades e das culturas –, vemos semeada a vocação a formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros».[75] 

______________ 

[62] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 24. 

[63] Gabriel Marcel, Du refus à l’invocation (Paris 1940), 50. 

[64] Francisco, Alocução do Angelus (10 de novembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 12/XI/2019), 3. 

[65] Cf. São Tomás de Aquino, Scriptum super Sententiis, lib. III, dist. 27, q. 1, a. 1, ad 4: «Dicitur amor extasim facere, et fervere, quia quod fervet extra se bullit et exhalat – diz-se que o amor produz êxtase e efervescência, contanto que o efervescente ferva fora de si e expire» 

[66] Karol Wojtila, Amore e responsabilità (Casale Monferrato 1983), 90. 

[67] Karl Rahner, Kleines Kirchenjahr. Ein Gang durch den Festkreis (Friburgo 1981), 30. 

[68] Regula, 53, 15: «Pauperum et peregrinorum maxime susceptioni cura sollicite exhibeatur». 

[69] Cf. Summa theologiae II-II, q. 23, art. 7; Santo Agostinho, Contra Julianum, 4, 18: PL 44, 748: «De quantos prazeres se privam os avarentos, para aumentar os seus tesouros ou com medo de os ver diminuir!» 

[70] «Secundum acceptionem divinam»: São Boaventura, Scriptum super Sententiis, lib. III, dist. 27, a. 1, q. 1, concl. 4. 

[71] Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de dezembro de 2005), 15: AAS 98 (2006), 230. 

[72] Summa theologiae II-II, q. 27, art. 2, resp. 

[73] Cf. ibid. I-II, q. 26, art. 3, resp. 

[74] Ibid., q. 110, art. 1, resp. 

[75] Francisco, Mensagem para o 47º Dia Mundial da Paz de 2014 (8 de dezembro de 2013), 1: AAS 106 (2014), 22.

Pandemia expõe as desigualdades socioeconômicas e raciais no Brasil

 A desigualdade no acesso a direitos básicos como saúde, saneamento e trabalho tornou a população negra e periférica mais vulnerável à pandemia de covid-19.

A reportagem é de Vinícius Lisboa, publicada por Agência Brasil, 14-10-2020.

Análise publicada em forma de ensaio científico nos Cadernos de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e assinado por pesquisadoras de unidades da fundação e do Núcleo de Pesquisas Urbanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) diz que a desigualdade no acesso a direitos básicos como saúdesaneamento e trabalho tornou a população negra e periférica mais vulnerável à pandemia de covid-19, desmentindo ideia inicial de que as consequências da doença seriam igualmente sentidas na sociedade.

O ensaio tem como principal autora a pesquisadora Roberta Gondim, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz, e é creditado também às pesquisadoras Ana Paula da CunhaAna Giselle dos Santos GadelhaChristiane Goulart CarpioRachel Barros de Oliveira e Roseane Maria Corrêa.

Com a análise de dados de abril e maio, o texto cita o mito da democracia racial para comparar que uma ideia semelhante circulou quando foi repetido nos primeiros meses que a pandemia seria “democrática”, representando o mesmo risco a todos os que não fizessem parte dos grupos em que a doença tem mais chances de apresentar suas formas mais graves, como idosos e doentes crônicos.

“Ocorre que a realidade da classe trabalhadora de baixa renda, majoritariamente negra e moradora de territórios vulnerabilizados, é outra. São predominantemente trabalhadores precarizados, que não têm o privilégio de ficar em casa, em regime de trabalho remoto; que utilizam os transportes públicos superlotados; têm acesso precário ao saneamento básico; e estão na linha de frente do atendimento ao público no setor de serviços, incluindo os de saúde”, descreve o ensaio.

Como resultado desse quadro, a análise mostra que, depois de chegar ao país com viajantes das classes média e alta, o vírus se disseminou de modo a afetar mais a população negra. Na Semana Epidemiológica 15 (4 a 10 de abril), a população branca representava 73% das internações e 62,9% dos óbitos. Cerca de um mês e meio depois, na Semana Epidemiológica 21, os dados mostram proporções semelhantes de brancos e negros em relação às hospitalizações. Nos óbitos, entretanto, a população negra passa a representar 57%, enquanto a branca representa 41%.

O ensaio alerta que o fato de a proporção de negros ser mais expressiva entre os óbitos que entre as hospitalizações “reforça a análise sobre a dificuldade de acesso dessa população aos serviços de saúde, principalmente os de maior complexidade, como os leitos de cuidados intensivos”. Além disso, a pesquisa também aponta que há um alto percentual de ausência de registro de raça e cor nos casos confirmados e óbitos por covid-19, apesar de a Portaria n° 344 de 2017 do Ministério da Saúde determinar que essa informação deve ser preenchida obrigatoriamente nos atendimentos em serviços de saúde. “A ausência do registro dessa variável também revela o racismo, nos moldes institucionais, pois impede que vejamos a verdadeira magnitude da exclusão da população negra”.

O texto acrescenta que “a pandemia apresenta sua face mais cruel” nas periferias e favelas, e cita como um dos exemplos o bairro de Brasilândia, em São Paulo, onde taxas de contaminação e óbitos superaram as regiões centrais da cidade no fim de maio.

Já em Fortaleza, no Ceará, a dinâmica de contágio se intensificou em bairros pobres como Grande Pirambu e Barra do Ceará, depois da disseminação em bairros ricos turísticos.

Cenário

As pesquisadoras relacionam esse cenário com o enfrentado pela população negra nos Estados Unidos, país que também teve uma história marcada pela escravização de povos africanos. O estudo cita a cidade de Chicago, onde os negros representavam 29% da população e 70% das mortes por covid-19 até a primeira semana de abril.

“A população negra norte-americana, em comparação à branca, tem os piores indicadores de saúde: menor expectativa de vida ao nascer, maior proporção de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, maiores taxas de mortalidade infantil, maior taxa de mortalidade relacionada à diabetes, dentre outros”, cita o ensaio, que aponta uma diferença: “O Brasil conta com um sistema universal de saúde, com o pressuposto de cobrir as necessidades de saúde de toda a população. Entretanto, também apresenta grandes disparidades nos indicadores sociais, em face das desigualdades sociorraciais”.

O ensaio também traz dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que mostram a desigualdade socioeconômica entre negros e brancos no país, como o acesso ao saneamento básico, fundamental para os cuidados de higiene necessários para prevenir a covid-19: 12,5% dos negros e 6% dos brancos vivem em locais sem coleta de lixo no país; 17,9% dos negros e e 11,5% dos brancos não tem abastecimento de água por rede geral; e 42,8% dos negros e 26,5% dos brancos não possuem esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial em casa.

Governo

Em setembro, uma portaria do governo federal instituiu um incentivo financeiro para o fortalecimento das equipes e serviços da atenção primária no cuidado à saúde de populações específicas, no valor total de R$ 319,4 milhões. A verba é do Fundo Nacional de Saúde (FNS) se destina à distribuição para municípios e Distrito Federal, em parcela única.

O incentivo financeiro tem a finalidade de apoiar a gestão local na qualificação da identificação precoce, do acompanhamento e monitoramento de populações específicas com síndrome gripal, suspeita ou confirmação da covid-19.

Em nota, o Ministério da Saúde explica que a portaria nº 344, de 1º de fevereiro de 2017, prevê o preenchimento obrigatório do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informação em saúde. “Como se trata de uma variável autodeclarada, caso não seja possível a categorização deste campo para preenchimento, o notificador não pode deixar em branco. Para esses casos, existe a opção de inserir a informação ‘ignorado’. Ressaltamos que essa opção é apenas para as exceções, e não deve ser utilizado como regra. Os resultados de testes diagnóstico para detecção da Covid-19, realizados por laboratórios da rede pública, rede privada, universitários e quaisquer outros, em todo território nacional devem ser, obrigatoriamente, notificados ao ministério conforme a portaria 1.792/20 do Ministério da Saúde”.

* Matéria atualizada às 20h10 para acréscimo de informações do Ministério da Saúde

Fonte: IHU

15 É missão de todos nós Lúcia Piza