"Em tua cúria romana, irmão Francisco, há uma legião de presbíteros que vivem em celibato e não tem praticamente trabalho ministerial algum. Seria tão absurdo enviar todos esses padres da Cúria a regiões perdidas do Brasil, Peru, Chade ou Tehuantepec, para que aqueles cristãos pudessem ver cumprido seu direito a celebrar a eucaristia?. A cúria romana poderia ficar ocupada por leigos fieis, (“viri probati” também), casados e pais de famílias. Porque nenhuma lei eclesiástica exige o celibato para trabalhar em escritório, nem por importante ou sagrado seja o escritório. Seriam alguns excelentes “burocratas cristãos” (nessa expressão resignada e bem-humorada de um irmão nosso jesuíta, que passou toda sua vida como secretário)".
A pergunta é de José Ignácio González Faus, espanhol, teólogo e jesuíta, em carta aberta ao papa Francisco sobre os críticos do Sínodo Pan-Amazônico, publicada por Religión Digital, 17-02-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Concluindo a carta, o teólogo escreve: "E voltando ao que é sério: todos cremos estar buscando aqui a vontade de Deus. Por que então não colocar toda a Igreja em estado de oração para pedir o que queriaSanto Inácio: “que conheçamos e cumpramos a Sua santa vontade”? Quando pedimos isso na oração, está comprovado que essa petição sim que é escutada"
Eis a carta.
Nem sequer sei se lerás esta carta. O estilo epistolar tornou-se para mim um gênero literário: porque imaginar um interlocutor me ajuda a se expressar.
Em qualquer caso, quis comentar um pouco tua recente decisão sobre a ordenação presbiteral de homens casados, a propósito do Sínodo da Amazônia. Mais que uma negativa, trata-se de uma não-decisão: não abriu a porta, porém tampouco a trancou. Suponho que por temor de um cisma nesta Igreja onde há um setor que não se cansa de te colocar travas nas rodas e que se viu ajudada esta vez por todo esse clamor midiático que dava a impressão de que isso era a única coisa que importava no tema da Amazônia. E também por todos aqueles aos quais já se referia Engels, em uma célebre carta sobre o socialismo nascente, onde dizia que enquanto aparece uma empresa nova, todos os frustrados recorrem a ela para usá-la em benefício próprio e não em favor dos destinatários dessa empresa.
Por todas essas razões tento te compreender. Posso presumir ademais de ter escrito algumas páginas de elogio ao celibato, reconhecendo também o enorme perigo de perseguição e concluindo que somente poderá dar um bom testemunho sobre o celibato aquele que humildemente se atreva a confessar que seu celibato lhe ensinou a amar.
A partir desta postura quis contribuir com algumas reflexões com a pretensão – tão estranha hoje – de que não valham pela autoridade das quais as disse (que neste caso é nula), mas sim pela verdade do que dizem.
1. Há uma frase do Evangelho que creio levar gravada na alma e são aquelas duras palavras de Jesus: “Hipócritas! Quebrantais a vontade de Deus porque vos apegais às tradições dos homens” (Mc 7, 6-8). Quando era jovem, e gostava mais de provocar, escrevi que essas palavras deveriam estar escritas na fachada de São Pedro do Vaticano, no lugar daquela “tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja”...
Pois bem, quando releio essas palavras de Jesus, duas coisas me parecem evidentes: é vontade de Deus que todos os cristãos (também os da Amazônia) possam celebrar a eucaristia. O encargo aquele: “fazei isso em memória de mim” (Lc 22, 19) vale para todos os cristãos, sejam corubos ou piripkurasou romanos. Por outro lado, a lei do celibato não é um mandato divino, mas sim uma tradição humana: venerável, mas uma tradição humana.
2. Também penso no conselho que te deu um bispo brasileiro quando te confiou o ministério de Pedro: “Não te esqueça dos pobres”. E vale agora o argumento que outras vezes se deram das posições mais conservadoras: lembrar-se dos pobres não é somente lembrar-se de seus direitos humanos pisoteados, mas também de que possam receber a Cristo. Se a norma do celibato é distinta no mundo dos pobres do que é em nosso mundo rico, não parecerá isso uma aplicação daquele celebérrimo discurso do bispo Bossuet sobre a eminente dignidade dos pobres na Igreja? Ali dizia o famosos orador: “no mundo os primeiros são os ricos, na Igreja os primeiros são os pobres; no mundo os favores e privilégios são para os ricos, enquanto que na Igreja de Jesus Cristo as graças e bênçãos são para os pobres”...
Estamos muito longe disso, infelizmente. Porém ao menos não viria mal que algum gesto bem sonoro nos recordasse.
3. E senão, em plano um pouco mais esquisito e bem-humorado, resta outra solução para que aqueles pobres não fiquem privados da eucaristia. Em tua cúria romana, irmão Francisco, há uma legião de presbíteros que vivem em celibato e não tem praticamente trabalho ministerial algum. Inclusive vários deles são bispos sem igreja, contra a proibição expressa do Concílio da Caledônia (já no 451). Tenta-se eludir essa proibição assinalando a uma Igreja inexistente. A qual parece uma verdadeira hipocrisia, que já Bento XVI quis eliminar, porém a cúria não permitiu.
Pois bem: seria tão absurdo enviar todos esses padres da Cúria a regiões perdidas do Brasil, Peru, Chade ou Tehuantepec, para que aqueles cristãos pudessem ver cumprido seu direito de celebrar a eucaristia? A cúria romana poderia ficar ocupada por leigos fieis, (“viri probati” também), casados e pais de famílias. Porque nenhuma lei eclesiástica exige o celibato para trabalhar em escritório, nem por importante ou sagrado seja o escritório. Seriam alguns excelentes “burocratas cristãos” (nessa expressão resignada e bem-humorada de um irmão nosso jesuíta, que passou toda sua vida como secretário).
Parece tudo isso um disparate? Talvez sim. Porém o melhor é que onde há problemas extremos há de se buscar soluções extremas, e onde as coisas estão mal repartidas há que se procurar reparti-las bem. Em qualquer caso poderia ser uma excelente ocasião para que homens como o cardeal Sarah ou o cardeal Müller demonstrassem o sentido ministerial do celibato.
4. E voltando ao que é sério: todos cremos estar buscando aqui a vontade de Deus. Por que então não colocar toda a Igreja em estado de oração para pedir o que queriaSanto Inácio: “que conheçamos e cumpramos a Sua santa vontade”? Quando pedimos isso na oração, está comprovado que essa petição sim que é escutada.
Um abraço bem fraterno e bem reverente, por virtual que seja.
"As paróquias precisam se tornar redes de pequenas Comunidades Eclesiais de Base. As CEB's aproximam as pessoas, uma se envolve com as outras, assumem compromissos e partilha acontece." (Dom Anuar Battisti - Arcebispo de Maringá)