17 novembro, 2014

Pacto das Catacumbas por uma Igreja Serva e Pobre

Em 1965, os bispos assinaram o Pacto das Catacumbas para ajudar a Igreja a se converter e se transformar em uma Igreja pobre e servidora de todos. 

“Como eu gostaria de uma Igreja pobre, para os pobres", afirmou o Papa Francisco poucos dias depois de sua eleição a centenas de jornalistas de todo o mundo recebidos em audiência no Vaticano. As palavras do Papa Francisco revivem a mensagem de João XXIII na qual, cerca de um mês antes da abertura do Concílio Vaticano II, afirmou: “a Igreja se apresenta e quer realmente ser a Igreja de todos, em particular, a Igreja dos pobres”. 

Durante o Concílio, em resposta ao sonho de João XXIII, um grupo de bispos, entre os quais se encontravam dom Helder Camara, constituiu o movimento “Igreja dos Pobres”. Ao final do Concílio, em 16 de novembro de 1965, este grupo celebrou uma missa na Catacumba de Santa Domitila, em Roma, e firmou o documento que se tornou conhecido como “Pacto das Catacumbas por uma Igreja Serva e Pobre”. 

Eis o texto do Pacto das Catacumbas

Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre

Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue:

1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.

2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata.

3) Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33s.

4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At. 6,1-7.

5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.

6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.

7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.

8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.

9) Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de "beneficência" em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33s.

10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At. 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.

11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral - dois terços da humanidade - comprometemo-nos:

a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres;

a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o Papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.

12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim:
esforçar-nos-emos para "revisar nossa vida" com eles;

suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo;

procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores...;

mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1Tim 3,8-10.

13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.

Ajude-nos Deus a sermos fiéis.

49 anos do Pacto das Catacumbas: um apelo aos bispos da Igreja Católica

No dia 16 de novembro de 1965, portanto, há 49 anos, poucos dias antes do encerramento do Concílio Vaticano II, cerca de 40 padres conciliares celebraram uma Eucaristia nas catacumbas de Domitila, em Roma. Após a celebração, assinaram o “Pacto das Catacumbas”. Trata-se de um documento histórico, que dispensa maiores comentários porque por si mesmo fala com clareza e objetividade de uma proposta original, evangélica, audaciosa e profética.  

Entre os signatários estava Dom Helder Câmara, um dos grandes profetas da história da Igreja no Brasil. O documento é dirigido aos bispos da Igreja Católica, um convite para que todos possam se colocar no caminho de Jesus: caminho de pobreza e de serviço ao povo de Deus. Os bispos que assinaram e que viveram este importante pacto entraram para a história da Igreja como homens despojados e livres, pastores zelosos do povo de Deus, que viveram na radicalidade evangélica a opção pelos pobres.

Todos os bispos da Igreja Católica, se quiserem, de fato, ser fieis ao evangelho de Jesus e ao espírito do Vaticano II, precisam observar as orientações deste pacto. Há, certamente, na Igreja de hoje bispos que praticam este pacto, com humildade, simplicidade, zelo e discrição; mas é verdade também que há inúmeros bispos que estão longe de praticá-lo, pois vivem apegados ao poder, ao prestígio e à riqueza; vivem salvando a própria vida em detrimento da vida do povo de Deus.

A estes bispos, o pacto abaixo transcrito e as veementes exortações do papa Francisco são um forte apelo à conversão episcopal. Os pobres do povo de Deus clamam por autênticos pastores, que a exemplo de Jesus, deem a vida pelas grandes causas do Reino de Deus. Muitos bispos precisam abraçar com humildade e perseverança a cruz de Cristo nas lutas por justiça, na solidariedade com os pobres. Precisam renunciar as amizades e alianças com os poderosos da sociedade e seus projetos de morte. Precisam anunciar a Boa Notícia do Reino e denunciar os crimes que ceifam a vida do povo.

Na América Latina, dom Oscar Romero e tantos outros são exemplos inspiradores de verdadeiros pastores, que assumem a promoção da justiça até as últimas consequências. Gente do povo continua sendo perseguida, explorada e morta, onde estão os pastores dessa gente? Como Jesus, é preciso que se busquem as “ovelhas perdidas da casa de Israel”. Para isto, a opção pelos pobres deve ser uma realidade na vida dos bispos. Sem ela não há conversão episcopal.

Por fim, é hora de renunciar a “psicologia de príncipes” (expressão do papa Francisco), assim como as manias de gente rica para se revestir do espírito de Cristo, o bom pastor. Estão fazendo falta à Igreja do Brasil homens como dom Helder Câmara, dom Luciano Mendes de Almeida, dom Aloísio Lorscheider, dom Antônio Fragoso, dom Waldyr Calheiros, dom Tomás Balduíno, entre outros grandes profetas do Senhor. Estes homens não viveram para si mesmos, mas viveram como Jesus: no anúncio do evangelho, servindo os pobres do povo de Deus.

Que nossa prece chegue a Deus neste dia feliz da memória deste pacto, a fim de que nossos bispos escutem a voz do Espírito do Senhor e se tornem, afetiva e efetivamente, pastores do povo santo e fiel, segundo o coração do nosso bom Deus. A necessária e urgente conversão das estruturas da Igreja está intimamente ligada à conversão dos bispos, sendo estes chamados a serem os primeiros a darem testemunho do Cristo ressuscitado no meio do povo.

Tiago de França