30 outubro, 2020

Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social Capítulo III (5)


Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social 

Leitura da Carta Encíclica FRATELLI TUTTI do Santo Padre FRANCISCO sobre a Fraternidade e Amizade Social. 

Capítulo III: Pensar e gerar um mundo aberto. 

nn.118-120. Título 11: Repropor a função social da propriedade. 
nn. 121-123. Título 11: Repropor a função social da propriedade. Subtítulo 1: Direitos sem fronteiras. 
nn.124-127. Título 11: Repropor a função social da propriedade. Subtítulo 2: Direitos dos povos. 

 
CARTA ENCÍCLICA  FRATELLI TUTTI  DO SANTO PADRE  FRANCISCO  SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL 

Final do Capítulo III 

PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO 

Repropor a função social da propriedade 

118. O mundo existe para todos, porque todos nós, seres humanos, nascemos nesta terra com a mesma dignidade. As diferenças de cor, religião, capacidade, local de nascimento, lugar de residência e muitas outras não podem antepor-se nem ser usadas para justificar privilégios de alguns em detrimento dos direitos de todos. Por conseguinte, como comunidade, temos o dever de garantir que cada pessoa viva com dignidade e disponha de adequadas oportunidades para o seu desenvolvimento integral. 

119. Nos primeiros séculos da fé cristã, vários sábios desenvolveram um sentido universal na sua reflexão sobre o destino comum dos bens criados.[91] Isto levou a pensar que, se alguém não tem o necessário para viver com dignidade, é porque outrem se está a apropriar do que lhe é devido. São João Crisóstomo resume isso, dizendo que, «não fazer os pobres participar dos próprios bens, é roubar e tirar-lhes a vida; não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos».[92] E São Gregório Magno di-lo assim: «Quando damos aos indigentes o que lhes é necessário, não oferecemos o que é nosso; limitamo-nos a restituir o que lhes pertence».[93] 

120. Faço minhas e volto a propor a todos algumas palavras de São João Paulo II, cuja veemência talvez tenha passado despercebida: «Deus deu a terra a todo género humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém».[94] Nesta linha, lembro que «a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada».[95] O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o «primeiro princípio de toda a ordem ético-social»,[96] é um direito natural, primordial e prioritário.[97] Todos os outros direitos sobre os bens necessários para a realização integral das pessoas, quaisquer que sejam eles incluindo o da propriedade privada, «não devem – como afirmava São Paulo VI – impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização».[98] O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, e isto tem consequências muito concretas que se devem refletir no funcionamento da sociedade. Mas acontece muitas vezes que os direitos secundários se sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática. 

Direitos sem fronteiras 

121. Por conseguinte, ninguém pode ser excluído; não importa onde tenha nascido, e menos ainda contam os privilégios que outros possam ter porque nasceram em lugares com maiores possibilidades. Os confins e as fronteiras dos Estados não podem impedir que isto se cumpra. Assim, como é inaceitável que uma pessoa tenha menos direitos pelo simples facto de ser mulher, de igual modo é inaceitável que o local de nascimento ou de residência determine, de por si, menores oportunidades de vida digna e de desenvolvimento. 

122. O desenvolvimento não deve orientar-se para a acumulação sempre maior de poucos, mas há de assegurar «os direitos humanos, pessoais e sociais, económicos e políticos, incluindo os direitos das nações e dos povos».[99] O direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres; nem acima do respeito pelo ambiente, pois «quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos».[100] 

123. É verdade que a atividade dos empresários «é uma nobre vocação, orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos».[101] Deus incita-nos, esperando que desenvolvamos as capacidades que Ele nos deu, bem como as potencialidades de que encheu o universo. Nos seus desígnios, cada homem é chamado a promover o seu próprio desenvolvimento,[102] e isto inclui a implementação das capacidades económicas e tecnológicas para fazer crescer os bens e aumentar a riqueza. Mas estas capacidades dos empresários, que são um dom de Deus, deveriam em todo o caso orientar-se claramente para o desenvolvimento das outras pessoas e a superação da miséria, especialmente através da criação de oportunidades de trabalho diversificadas. A par do direito de propriedade privada, sempre existe o princípio mais importante e antecedente da subordinação de toda a propriedade privada ao destino universal dos bens da terra e, consequentemente, o direito de todos ao seu uso.[103] 

Direitos dos povos 

124. Hoje requer-se que a convicção do destino comum dos bens da terra se aplique também aos países, aos seus territórios e aos seus recursos. Se o olharmos não só a partir da legitimidade da propriedade privada e dos direitos dos cidadãos duma determinada nação, mas também a partir do primeiro princípio do destino comum dos bens, então podemos dizer que cada país é também do estrangeiro, já que os bens dum território não devem ser negados a uma pessoa necessitada que provenha doutro lugar. Pois, como ensinaram os bispos dos Estados Unidos, há direitos fundamentais que «precedem qualquer sociedade, porque derivam da dignidade concedida a cada pessoa enquanto criada por Deus».[104] 

125. Isto supõe também outra maneira de compreender as relações e o intercâmbio entre países. Se toda a pessoa possui uma dignidade inalienável, se todo o ser humano é meu irmão ou minha irmã e se, na realidade, o mundo pertence a todos, não importa se alguém nasceu aqui ou vive fora dos confins do seu próprio país. Também a minha nação é corresponsável pelo seu desenvolvimento, embora possa cumprir tal responsabilidade de várias maneiras: acolhendo-o generosamente quando o requeira uma necessidade imperiosa, promovendo-o na sua própria terra, não desfrutando nem esvaziando de recursos naturais a países inteiros, e não favorecendo sistemas corruptos que impedem o desenvolvimento digno dos povos. Isto que é válido para as nações, aplica-se às diferentes regiões de cada país, entre as quais se verificam muitas vezes graves desigualdades. Entretanto a incapacidade de reconhecer a igual dignidade humana leva às vezes a que as regiões mais desenvolvidas dalguns países aspirem por libertar-se do «fardo» das regiões mais pobres para aumentar ainda mais o seu nível de consumo. 

126. Falamos duma nova rede nas relações internacionais, porque não é possível resolver os graves problemas do mundo, pensando apenas em termos de mútua ajuda entre indivíduos ou pequenos grupos. Lembremo-nos que «a desigualdade não afeta apenas os indivíduos mas países inteiros, e obriga a pensar numa ética das relações internacionais».[105] E a justiça exige reconhecer e respeitar não só os direitos individuais, mas também os direitos sociais e os direitos dos povos.[106] Quanto afirmamos implica que se assegure «o direito fundamental dos povos à subsistência e ao progresso»,[107] que às vezes é fortemente dificultado pela pressão resultante da dívida externa. Em muitos casos, o pagamento da dívida não só não favorece o desenvolvimento, mas limita-o e condiciona-o intensamente. Embora se mantenha o princípio de que toda a dívida legitimamente contraída deve ser paga, a maneira de cumprir este dever que muitos países pobres têm para com países ricos não deve levar a comprometer a sua subsistência e crescimento. 

127. Trata-se, sem dúvida, doutra lógica. Se não se fizer esforço para entrar nesta lógica, as minhas palavras parecerão um devaneio. Mas, se se aceita o grande princípio dos direitos que brotam do simples facto de possuir a inalienável dignidade humana, é possível aceitar o desafio de sonhar e pensar numa humanidade diferente. É possível desejar um planeta que garanta terra, teto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz, e não a estratégia insensata e míope de semear medo e desconfiança perante ameaças externas. Com efeito, a paz real e duradoura é possível só «a partir de uma ética global de solidariedade e cooperação ao serviço de um futuro modelado pela interdependência e a corresponsabilidade na família humana inteira».[108] 

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[91] Cf. São Basílio, Homilia 21. Quod rebus mundanis adhaerendum non sit, 3 e 5: PG 31, 545-549; Regulae brevius tractatae, 92: PG 31, 1145-1148; São Pedro Crisólogo, Sermo 123: PL 52, 536-540; Santo Ambrósio, De Nabuthe 27.52: PL 14, 738-739; Santo Agostinho, In Iohannis Evangelium 6, 25: PL 35, 1436-1437. 

[92] De Lazarum Concio 2, 6: PG 48, 992D. 

[93] Regula pastoralis 3, 21: PL 77, 87. 

[94] Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 31: AAS 83 (1991), 831. 

[95] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 93: AAS 107 (2015), 884. 

[96] São João Paulo II, Carta enc. Laborem exercens (14 de setembro de 1981), 19: AAS 73 (1981), 626. 

[97] Cf. Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 172. 

[98] Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 22: AAS 59 (1967), 268. 

[99] São João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de dezembro de 1987), 33: AAS 80 (1988), 557. 

[100] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 95: AAS 107 (2015), 885. 

[101] Ibid., 129: o. c., 899. 

[102] Cf. São Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 15: AAS 59 (1967), 265; Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 16: AAS 101 (2009), 652. 

[103] Cf. Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 93: AAS 107 (2015), 884-885; Idem, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 189-190: AAS 105 (2013), 1099-1100. 

[104] Conferência dos Bispos católicos dos Estados Unidos, Open wide our Hearts: The enduring Call to Love. A Pastoral Letter against Racism (novembro de 2018). 

[105] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 51: AAS 107 (2015), 867. 

[106] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 6: AAS 101 (2009), 644. 

[107] São João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991), 35: AAS 83 (1991), 838. 

[108] Francisco, Discurso sobre as armas nucleares (Nagasáqui - Japão 24 de novembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 03/XII/2019), 9.

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