09 outubro, 2020

Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social Capítulo I - continuação

 


Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social 
Capítulo I - continuação 

Leitura da Carta Encíclica FRATELLI TUTTI do Santo Padre FRANCISCO sobre a Fraternidade e Amizade Social. 

Capítulo I: As sombras dum mundo fechado. 

nn. 29-31, Título 7: Globalização e progresso sem um rumo comum. 
nn. 32-36, Título 8: As pandemias e outros flagelos da história. 
nn. 37-41, Título 9: Sem dignidade humana nas fronteiras. 


CARTA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI DO SANTO PADRE FRANCISCO 
SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL 

Capítulo I 
AS SOMBRAS DUM MUNDO FECHADO 

Globalização e progresso sem um rumo comum 

29. O Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb e eu não ignoramos os avanços positivos que se verificaram na ciência, na tecnologia, na medicina, na indústria e no bem-estar, sobretudo nos países desenvolvidos. Todavia «ressaltamos que, juntamente com tais progressos históricos, grandes e apreciados, se verifica uma deterioração da ética, que condiciona a atividade internacional, e um enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido de responsabilidade. Tudo isto contribui para disseminar uma sensação geral de frustração, solidão e desespero, (…) nascem focos de tensão e se acumulam armas e munições, numa situação mundial dominada pela incerteza, pela decepção e pelo medo do futuro e controlada por míopes interesses económicos». Assinalamos também «as graves crises políticas, a injustiça e a falta duma distribuição equitativa dos recursos naturais (…). A respeito de tais crises que fazem morrer à fome milhões de crianças, já reduzidas a esqueletos humanos por causa da pobreza e da fome, reina um inaceitável silêncio internacional».[27] Perante tal panorama, embora nos fascinem os inúmeros avanços, não descortinamos um rumo verdadeiramente humano. 

30. No mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia doutros tempos. Vemos como reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilusão que se esconde por detrás desta ilusão enganadora: considerar que podemos ser omnipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco. Esta desilusão, que deixa para trás os grandes valores fraternos, conduz «a uma espécie de cinismo. Esta é a tentação que temos diante de nós, se formos por este caminho do desengano ou da desilusão. (…) O isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas é a proximidade, a cultura do encontro. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim».[28] 

31. Neste mundo que corre sem um rumo comum, respira-se uma atmosfera em que «a distância entre a obsessão pelo próprio bem-estar e a felicidade da humanidade partilhada parece aumentar: até fazer pensar que entre o indivíduo e a comunidade humana já esteja em curso um cisma. (...) Porque uma coisa é sentir-se obrigado a viver juntos, outra é apreciar a riqueza e a beleza das sementes de vida em comum que devem ser procuradas e cultivadas em conjunto».[29] A tecnologia regista progressos contínuos, mas «como seria bom se, ao aumento das inovações científicas e tecnológicas, correspondesse também uma equidade e uma inclusão social cada vez maior! Como seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor!»[30] 

As pandemias e outros flagelos da história 

32. É verdade que uma tragédia global como a pandemia do Covid-19 despertou, por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos. Recordamo-nos de que ninguém se salva sozinho, que só é possível salvar-nos juntos. Por isso, «a tempestade – dizia eu – desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. (…) Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso “eu” sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, esta (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos».[31] 

33. O mundo avançava implacavelmente para uma economia que, utilizando os progressos tecnológicos, procurava reduzir os «custos humanos»; e alguns pretendiam fazer-nos crer que era suficiente a liberdade de mercado para garantir tudo. Mas, o golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controle obrigou, por força, a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que nos benefícios de alguns. Hoje podemos reconhecer que «alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade. Buscamos o resultado rápido e seguro, e encontramo-nos oprimidos pela impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da realidade».[32] A tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência. 

34. Se tudo está interligado, é difícil pensar que este desastre mundial não tenha a ver com a nossa maneira de encarar a realidade, pretendendo ser senhores absolutos da própria vida e de tudo o que existe. Não quero dizer que se trate duma espécie de castigo divino. Nem seria suficiente afirmar que o dano causado à natureza acaba por se cobrar dos nossos atropelos. É a própria realidade que geme e se rebela… Vem à mente o conhecido verso do poeta Virgílio evocando as lágrimas das coisas, das vicissitudes da história.[33] 

35. Contudo rapidamente esquecemos as lições da história, «mestra da vida».[34] Passada a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e em novas formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam «os outros», mas apenas um «nós». Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de aprender. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de respiradores, em parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano após ano. Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos. 

36. Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio. Além disso, não se deveria ignorar, ingenuamente, que «a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca».[35] O princípio «salve-se quem puder» traduzir-se-á rapidamente no lema «todos contra todos», e isso será pior que uma pandemia. 

Sem dignidade humana nas fronteiras 

37. Tanto na propaganda dalguns regimes políticos populistas como na leitura de abordagens económico-liberais, defende-se que é preciso evitar a todo o custo a chegada de pessoas migrantes. Simultaneamente argumenta-se que convém limitar a ajuda aos países pobres, para que toquem o fundo e decidam adotar medidas de austeridade. Não se dão conta que, atrás destas afirmações abstratas difíceis de sustentar, há muitas vidas dilaceradas. Muitos fogem da guerra, de perseguições, de catástrofes naturais. Outros, com pleno direito, «andam à procura de oportunidades para si e para a sua família. Sonham com um futuro melhor, e desejam criar condições para que se realize».[36] 

38. Infelizmente, outros são «atraídos pela cultura ocidental, nutrindo por vezes expetativas irrealistas que os expõem a pesadas decepções. Traficantes sem escrúpulos, frequentemente ligados a cartéis da droga e das armas, exploram a fragilidade dos imigrantes, que, ao longo do seu percurso, muitas vezes encontram a violência, o tráfico de seres humanos, o abuso psicológico e mesmo físico e tribulações indescritíveis».[37] As pessoas que emigram «experimentam a separação do seu contexto de origem e, muitas vezes, também um desenraizamento cultural e religioso. A fratura tem a ver também com as comunidades de origem, que perdem os elementos mais vigorosos e empreendedores, e as famílias, particularmente quando emigra um ou ambos os progenitores, deixando os filhos no país de origem».[38] Por conseguinte, também deve ser «reafirmado o direito a não emigrar, isto é, a ter condições para permanecer na própria terra».[39] 

39. Ainda por cima, «nalguns países de chegada, os fenómenos migratórios suscitam alarme e temores, frequentemente fomentados e explorados para fins políticos. Assim se difunde uma mentalidade xenófoba, de clausura e retraimento em si mesmos».[40] Os migrantes não são considerados suficientemente dignos de participar na vida social como os outros, esquecendo-se que têm a mesma dignidade intrínseca de toda e qualquer pessoa. Consequentemente, têm de ser eles os «protagonistas da sua própria promoção».[41] Nunca se dirá que não sejam humanos, mas na prática, com as decisões e a maneira de os tratar, manifesta-se que são considerados menos valiosos, menos importantes, menos humanos. É inaceitável que os cristãos partilhem esta mentalidade e estas atitudes, fazendo às vezes prevalecer determinadas preferências políticas em vez das profundas convicções da sua própria fé: a dignidade inalienável de toda a pessoa humana, independentemente da sua origem, cor ou religião, e a lei suprema do amor fraterno. 

40. «As migrações constituirão uma pedra angular do futuro do mundo».[42] Hoje, porém, são afetadas por uma «perda daquele sentido de responsabilidade fraterna, sobre o qual assenta toda a sociedade civil».[43] A Europa, por exemplo, corre sérios riscos de ir por este caminho. Entretanto, «ajudada pelo seu grande património cultural e religioso, possui os instrumentos para defender a centralidade da pessoa humana e encontrar o justo equilíbrio entre estes dois deveres: o dever moral de tutelar os direitos dos seus cidadãos e o dever de garantir a assistência e o acolhimento dos imigrantes».[44] 



41. Compreendo que alguns tenham dúvidas e sintam medo à vista das pessoas migrantes; compreendo-o como um aspeto do instinto natural de autodefesa. Mas também é verdade que uma pessoa e um povo só são fecundos, se souberem criativamente integrar no seu seio a abertura aos outros. Convido a ultrapassar estas reações primárias, porque «o problema surge quando [estas dúvidas e este medo] condicionam de tal forma o nosso modo de pensar e agir, que nos tornam intolerantes, fechados, talvez até – sem disso nos apercebermos – racistas. E assim o medo priva-nos do desejo e da capacidade de encontrar o outro».[45] 

______________ 

[27] Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 21. 

[28] Francisco, Discurso ao mundo académico e cultural (Cagliari – Itália 22 de setembro de 2013): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/IX/2013), 8. 

[29] Idem, Carta «Humana communitas» ao Presidente da Academia Pontifícia para a Vida por ocasião do XXV aniversário da sua instituição (6 de janeiro de 2019), 2.6: L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 22/I/2019), 8-9. 

[30] Idem, Vídeo-mensagem ao encontro internacional TED2017 em Vancouver (26 de abril de 2017): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 04/V/2017), 16. 

[31] Homilia durante o Momento extraordinário de oração em tempos de epidemia (27 de março de 2020): L´Osservatore Romano (29/III/2020), 10. 

[32] Francisco, Homilia durante a Santa Missa (Skopje – Macedónia do Norte 7 de maio de 2019): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 14/V/2019), 11. 

[33] Cf. Eneida I, 462: «Sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt – são lágrimas das coisas, as peripécias dos mortais confrangem a alma». 

[34] «Historia (…) magistra vitae» (Cícero, De Oratore, 2, 36). 

[35] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 204: AAS 107 (2015), 928. 

[36] Idem, Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit (25 de março de 2019), 91. 

[37] Ibid., 92. 

[38] Ibid., 93. 

[39] Bento XVI, Mensagem para o 99º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado em 2013 (12 de outubro de 2012): AAS 104 (2012), 908. 

[40] Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit (25 de março de 2019), 92. 

[41] Idem, Mensagem para o 106º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado em 2020 (13 de maio de 2020): L’Osservatore Romano (16/V/2020), 8. 

[42] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (11 de janeiro de 2016): AAS 108 (2016), 124. 

[43] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (13 de janeiro de 2014): AAS 106 (2014), 84. 

[44] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (11 de janeiro de 2016): AAS 108 (2016), 123. 

[45] Francisco, Mensagem para o 105º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado em 2019 (27 de maio de 2019): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 04/VI/2019), 12. 

Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social Capítulo I

Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social Capítulo I 

Leitura da Carta Encíclica FRATELLI TUTTI do Santo Padre FRANCISCO sobre a Fraternidade e Amizade Social. 

Capítulo I: As Sombras dum fechado. 

nn. 18-21, Título 4: O descarte mundial. 
nn. 22-24, Título 5: Direitos Humanos nãosuficientemente universais. 
nn. 25-28, Título 6: Conflito e medo. 

CARTA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI DO SANTO PADRE FRANCISCO SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL 


Capítulo I 
AS SOMBRAS DUM MUNDO FECHADO 

O descarte mundial 

18. Partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção que favorece a um setor humano digno de viver sem limites. No fundo, «as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem” (como os nascituros) ou “já não servem” (como os idosos). Tornamo-nos insensíveis a qualquer forma de desperdício, a começar pelo alimentar, que aparece entre os mais deploráveis».[13] 

19. A falta de filhos, que provoca um envelhecimento da população, juntamente com o abandono dos idosos numa dolorosa solidão, exprimem implicitamente que tudo acaba connosco, que só contam os nossos interesses individuais. Assim, «objeto de descarte não são apenas os alimentos ou os bens supérfluos, mas muitas vezes os próprios seres humanos».[14] Vimos o que aconteceu com as pessoas de idade nalgumas partes do mundo por causa do coronavírus. Não deviam morrer assim. Na realidade, porém, tinha já acontecido algo semelhante devido às ondas de calor e noutras circunstâncias: cruelmente descartados. Não nos damos conta de que isolar os idosos e abandoná-los à responsabilidade de outros sem um acompanhamento familiar adequado e amoroso mutila e empobrece a própria família. Além disso, acaba por privar os jovens daquele contacto que lhes é necessário com as suas raízes e com uma sabedoria que a juventude, sozinha, não pode alcançar. 

20. Este descarte exprime-se de variadas maneiras como, por exemplo, na obsessão por reduzir os custos laborais sem se dar conta das graves consequências que provoca, pois o desemprego daí resultante tem como efeito direto alargar as fronteiras da pobreza.[15] Além disso, o descarte assume formas abjetas, que julgávamos já superadas, como o racismo que se dissimula mas não cessa de reaparecer. De novo nos envergonham as expressões de racismo, demonstrando assim que os supostos avanços da sociedade não são assim tão reais nem estão garantidos duma vez por todas. 

21. Há regras económicas que foram eficazes para o crescimento, mas não de igual modo para o desenvolvimento humano integral.[16] Aumentou a riqueza, mas sem equidade, e assim «nascem novas pobrezas».[17] Quando dizem que o mundo moderno reduziu a pobreza, fazem-no medindo-a com critérios doutros tempos não comparáveis à realidade atual. Pois noutros tempos, por exemplo, não ter acesso à energia elétrica não era considerado um sinal de pobreza nem causava grave incómodo. A pobreza sempre se analisa e compreende no contexto das possibilidades reais dum momento histórico concreto. 

Direitos humanos não suficientemente universais 

22. Muitas vezes constata-se que, de facto, os direitos humanos não são iguais para todos. O respeito destes direitos «é condição preliminar para o próprio progresso económico e social de um país. Quando a dignidade do homem é respeitada e os seus direitos são reconhecidos e garantidos, florescem também a criatividade e a audácia, podendo a pessoa humana explanar suas inúmeras iniciativas a favor do bem comum».[18] Mas, «observando com atenção as nossas sociedades contemporâneas, deparamos com numerosas contradições que induzem a perguntar-nos se deveras a igual dignidade de todos os seres humanos, solenemente proclamada há 70 anos, é reconhecida, respeitada, protegida e promovida em todas as circunstâncias. Persistem hoje no mundo inúmeras formas de injustiça, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um modelo económico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o homem. Enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, outra parte vê a própria dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados».[19] Que diz isto a respeito da igualdade de direitos fundada na mesma dignidade humana? 

23. De modo análogo, a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra. Com efeito, «duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos».[20] 

24. Reconhecemos igualmente que, «apesar de a comunidade internacional ter adotado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este fenómeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura. (…) Hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma conceção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objeto. (…) Com a força, o engano, a coação física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim». As redes criminosas «utilizam habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo».[21] E a aberração não tem limites quando são subjugadas mulheres, forçadas depois a abortar; um ato abominável que chega mesmo ao sequestro da pessoa, para vender os seus órgãos. Isto torna o tráfico de pessoas e outras formas atuais de escravatura num problema mundial que precisa de ser tomado a sério pela humanidade no seu conjunto, porque «assim como as organizações criminosas usam redes globais para alcançar os seus objetivos, assim também a ação para vencer este fenómeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes atores que compõem a sociedade».[22] 

Conflito e medo 

25. As guerras, os atentados, as perseguições por motivos raciais ou religiosos e tantas afrontas contra a dignidade humana são julgados de maneira diferente, segundo convenham ou não a certos interesses fundamentalmente económicos: o que é verdade quando convém a uma pessoa poderosa, deixa de o ser quando já não a beneficia. Estas situações de violência vão-se «multiplicando cruelmente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir os contornos daquela que se poderia chamar uma “terceira guerra mundial por pedaços”».[23] 

26. Isto não surpreende, se atendermos à falta de horizontes capazes de nos fazer convergir para a unidade, pois em qualquer guerra o que acaba destruído é «o próprio projeto de fraternidade, inscrito na vocação da família humana», pelo que «toda a situação de ameaça alimenta a desconfiança e a retirada».[24] Assim, o nosso mundo avança numa dicotomia sem sentido, pretendendo «garantir a estabilidade e a paz com base numa falsa segurança sustentada por uma mentalidade de medo e desconfiança».[25] 

27. Paradoxalmente, existem medos ancestrais que não foram superados pelo progresso tecnológico; mais ainda, souberam esconder-se e revigorar-se por detrás das novas tecnologias. Também hoje, atrás das muralhas da cidade antiga está o abismo, o território do desconhecido, o deserto. O que vier de lá não é fiável, porque desconhecido, não familiar, não pertence à aldeia. Trata-se do território do que é «bárbaro», do qual há que defender-se a todo o custo. Consequentemente, criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o «meu» mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser apenas «os outros». Reaparece «a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer os muros, muros no coração, muros na terra, para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas. E quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes. Porque lhe falta esta alteridade».[26] 

28. A solidão, os medos e a insegurança de tantas pessoas que se sentem abandonadas pelo sistema, fazem com que se crie um terreno fértil para as máfias. Com efeito, estas impõem-se apresentando-se como «protetoras» dos esquecidos, muitas vezes através de vários tipos de ajuda, enquanto perseguem os seus interesses criminosos. Há uma pedagogia tipicamente mafiosa que, com um falso espírito comunitário, cria laços de dependência e subordinação, dos quais é muito difícil libertar-se. 

______________ 

[13] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (11 de janeiro de 2016): AAS 108 (2016), 120. 

[14] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (13 de janeiro de 2014): AAS 106 (2014), 83 84. 

[15] Cf. Idem, Discurso à Fundação «Centesimus annus pro Pontifice» (25 de maio de 2013): Insegnamenti I,1 (2013), 238. 

[16] Cf. São Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 14: AAS 59 (1967), 264. 

[17] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 22: AAS 101 (2009), 657. 

[18] Francisco, Discurso no encontro com as autoridades e o corpo diplomático (Tirana – Albânia 21 de setembro de 2014): AAS 106 (2014), 773. 

[19] Idem, Mensagem aos participantes na Conferência internacional sobre «Os direitos humanos no mundo contemporâneo: conquistas, omissões, negações» (10 de dezembro de 2018): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 11/XII/2018), 16. 

[20] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 212: AAS 105 (2013), 1108. 

[21] Idem, Mensagem para o 48º Dia Mundial da Paz de 2015 (8 de dezembro de 2014), 3-4: AAS 107 (2015), 69-71. 

[22] Ibid., 5: o. c., 72. 

[23] Idem, Mensagem para o 49º Dia Mundial da Paz de 2016 (8 de dezembro de 2015), 2: AAS 108 (2016), 49. 

[24] Idem, Mensagem para o 53º Dia Mundial da Paz de 2020 (8 de dezembro de 2019), 1: L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 17-24/XII/2019), 8. 

[25] Francisco, Discurso sobre as armas nucleares (Nagasáqui – Japão 24 de novembro de 2019): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 03/XII/2019), 9. 

[26] Idem, Discurso aos professores e estudantes do Colégio São Carlos de Milão (6 de abril de 2019): L´Osservatore Romano (08-09/IV/2019), 6. 

Dom Severino - abertura dos trabalhos - conscientização - Eleições Municipais - Paróquias Santo Cura d'Ars e Jesus Bom Pastor - Equipe Paroquial de Intervenção Social – Paiçandu.

Por uma maior integração dos fiéis leig@s

Por uma maior integração dos fiéis leig@s, especialmente das mulheres, nas instâncias de responsabilidade da Igreja. 

“Ninguém foi batizado como padre ou bispo. Todos nós fomos batizados como leigos (...) leigos e leigas são protagonistas da Igreja. Rezemos para que, em virtude do batismo, os fiéis leigos, em especial as mulheres, participem mais nas instâncias de responsabilidade da Igreja, sem cair em clericalismos que anulam o carisma laical. (...) Devemos promover a integração das mulheres em lugares onde são tomadas decisões importantes”. (Papa Francisco)

09 É Missão de todos Nós Gustavo Aguerra

Mulheres nas instâncias de responsabilidade da Igreja - O Vídeo do Papa ...