O Brasil assina nesta quinta-feira (22), junto com os Estados Unidos e outros 4 países, um documento que consolida uma aliança antiaborto. Chamado de ‘Consenso de Genebra’ por seus autores, a declaração tem como objetivo restringir os direitos reprodutivos, assim como o entendimento sobre família. O conteúdo do texto não tem efeitos jurídicos imediatos, mas a atuação política da diplomacia brasileira abre caminho para retrocessos nas normas nacionais e pode fragilizar a influência da diplomacia brasileira.
A reportagem é de Marcella Fernandes, publicada por HuffPost, 22-10-2020.
De acordo com a declaração, a promoção do acesso à saúde sexual e reprodutiva não deve incluir procedimentos de interrupção da gravidez e “o aborto não deve ser promovido como um método de planejamento familiar em nenhum caso”. O texto também diz que “quaisquer medidas ou mudanças relacionadas ao acesso ao abortamento no sistema de saúde só podem ser determinadas em nível nacional ou local de acordo com o processo legislativo nacional”.
O documento sustenta que “a família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado”; que “a maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais”, que “as mulheres desempenham um papel crítico na família”, além de destacar a “contribuição das mulheres para o bem-estar da família e para o desenvolvimento da sociedade”.
Em outro trecho, a declaração afirma que a criança “precisa de salvaguardas e cuidados especiais antes e depois do nascimento” e que medidas de proteção e de assistência devem ser tomadas “com base no princípio do melhor interesse da criança”. Além do Brasil e dos Estados Unidos, Egito, Hungria, Indonésia e Uganda também são signatários.
Diretora de programas da Conectas Direitos Humanos, Camila Asano destaca o papel ativo do Brasil nessa articulação. “Não tem valor jurídico, mas é uma declaração política forte. O Brasil faz isso no âmbito internacional e ainda vai atrás de assinaturas. Ele não é só um signatário. É um coautor”, afirma.
“A força preocupante dessa declaração é que ela vai dar uma certa argumentação política buscando um respaldo internacional para mudanças legais ou administrativas internas”, completa a especialista, em referência à portaria publicada pelo Ministério da Saúde sobre aborto legal em caso de estupro.
Mais sobre a Portaria
A coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) Sonia Corrêa afirma que a fórmula da Declaração de Genebra é o direito à vida desde a concepção. “O núcleo é essa pauta, que é a pauta do Vaticano desde o final do século XIX”, diz. “O Vaticano aproveitou as reformas constitucionais a partir dos anos 1980 - e foram muitas porque o mundo estava em processo de redemocratização - para pressionar para introduzir o direito à vida desde a concepção nos textos constitucionais”, ressalta.
No Brasil, esse esforço foi derrotado, mas se seguiram uma série de tentativas nos anos seguintes, como a proposta de emenda à Constituição 25/1995, o ‘PL da pílula’, que provocou manifestações em 2015, e a ‘PEC Cavalo de Tróia’, em 2017. “No caso do Brasil, essa proposição [da Declaração de Genebra] está em contradição com a definição constitucional porque não temos uma definição de direito à vida desde a concepção”, afirma a especialista.
Influência diplomática do Brasil
Para Camila Asano, é preciso avaliar quantos países vão aderir à Declaração de Genebra para saber o peso político. “Está com muito mais cara de um dissenso de Genebra. Dependendo do número e da representatividade dos países, a gente vai ver se vai ter força ou não para mover estruturas maiores para emplacar essa visão do papel conservador da mulher na família e esse ataque aos direitos reprodutivos num eventual tratado novo em discussões na ONU [Organização das Nações Unidas]”, afirma.
Na avaliação da especialista, esse desdobramento é importante também para avaliar “quanto o governo Bolsonaro está corroendo essa capacidade diplomática do Brasil”. “O Brasil sempre foi capaz de puxar voto em diferentes partes do mundo”, argumenta Asano.
Desde 2019, há uma virada na atuação da diplomacia brasileira em questões de gênero. De acordo com a integrante da Conectas, a atuação do Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU é vista com ressalvas por países europeus e da América Latina. “As outras delegações têm percebido essa atuação do Brasil com preocupação e até com uma certa chacota internacional”, afirma.
A influência política internacional impacta em agendas além do âmbito de direitos humanos, como a intenção do governo Bolsonaro de que o Brasil faça parte da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
“A destruição da Amazônia já tem mostrado um distanciamento cada vez maior entre países europeus - que têm peso enorme nessa decisão sobre a entrada na OCDE - e agora com essas decisões relacionadas a direitos das mulheres, vai tensionar ainda mais países do clube que o Brasil quer entrar. O Brasil quer entrar nesse grupo econômico, mas está nesse perfil de uma cruzada contra direitos das mulheres se alinhando cada vez mais a outros grupos e, com isso, criando cada vez mais um abismo nas repercussões internacionais”, afirma Asano.
O protagonismo do Estados Unidos na iniciativa tem relação direta com o cenário eleitoral do País. Em uma tentativa de se reeleger, Donald Trump tem apostado na bandeira antiaborto e fomentado a revisão do direto à interrupção à gravidez decidido pela Suprema Corte americana no caso Roe versus Wade, em 1973.
Já os outros países signatários da Declaração de Genebra, como Egito, Uganda e Hungria, são conhecidos pelas violações de direitos humanos e pela adoção de regimes antidemocráticos.
A postura desse grupo do qual o Brasil se aproximou em relação aos direitos reprodutivos vai na contramão da posição majoritária da comunidade internacional. Neste ano, 82 países assinaram uma declaração de apoio à Conferência de Pequim, um dos marcos dos direitos das mulheres. O documento foi publicado em uma reunião da Assembleia Geral da ONU em comemoração aos 25 anos do tratado.
“Vinte e cinco anos de ganhos duramente conquistados estão agora seriamente ameaçados por intensas resistências contra esses direitos. Muitas mulheres e meninas ainda têm o direito de tomar decisões sobre suas próprias vidas negado e estão sujeitas à violência sexual e de gênero”, diz o texto que não foi assinado pela delegação brasileira.
Direito internacional ao aborto
Um trecho da Declaração de Genebra afirma que “não há direito internacional ao aborto”, nem “qualquer obrigação internacional por parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto”.
Ao longo dos últimos anos, contudo, há uma construção jurídica internacional de ampliação dos direitos das mulheres. Dois marcos são a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo, em 1994, e a Conferência Mundial Sobre a Mulher, em 1995, em Pequim.
A Conferência do Cairo traz uma definição expandida de direitos reprodutivos, define o aborto como grave problema de saude pública e afirma que onde ele é legal deve ser seguro. “Esses direitos se baseiam no reconhecido direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de seus filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais alto padrão de saúde sexual e de reprodução. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos”, diz um trecho.
Já na Conferência de Pequim é adicionada a ideia de direitos sexuais e uma recomendação aos países que revisem as legislações punitivas sobre interrupção da gravidez. “Começa a transportar o tema do aborto do campo da saúde para o campo da lei, de mudanças legislativas”, a pesquisadora Sonia Corrêa.
A especialista ressalta a importância da inclusão dos direitos sexuais nesse contexto. “Foi adotada uma definição de que os direitos humanos das mulheres comportam o direito de exercer sua sexualidade livre de discriminação, coerção e violência. É uma definição muito importante quando você pensa que uma parcela importante das gestações indesejadas provém das relações sexuais coercitivas e violentas. Essa não é uma definição dissociada do aborto”, destaca.
De acordo com o 13ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2018, foram 66 mil vítimas de estupro – em média 180 violações por dia. De cada dez estupros, 8 ocorrem contra meninas e mulheres e a maioria das vítimas (53,8%) tinham até 13 anos.
Embora as conferências de Cairo e Pequim não sejam vinculativas, “essas definições que emergem das conferências vão se transmutando em definições de caráter mais normativo, com maior densidade legal”, de acordo com Corrêa. Os dois marcos têm peso político devido à forma como foram construídos, a partir de um amplo debate e desdobraram em definições emitidas pelos comitês de vigilância do sistema internacional de direitos humanos e nos sistemas regionais, como a Corte Europeia de DireItos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Uma das principais referências é o caso Artavia Murillo. Em 2012, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que o direito à vida desde concepção não é de caráter absoluto, ao interpretar um trecho da Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida também como Pacto de San José da Costa Rica. O artigo diz que ”toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida” e “esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção”.
O julgamento começou a partir de um casal que pediu acesso a serviço público de saúde da Costa Rica para fazer reprodução assistida e o Estado costarriquenho negou com o argumento de que a eliminação de embriões que feria o artigo do Pacto de San José. ”Essa é uma definição jurisprudencial muito importante que vale para América Latina inteira”, destaca Corrêa.
Além disso, em 2015, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas emitiu uma declaração que reforça esse entendimento. “Embora os Estados partes possam adotar medidas destinadas a regulamentar as interrupções voluntárias da gravidez, tais medidas não devem resultar em violação do direito à vida de uma mulher ou menina grávida, ou de seus outros direitos segundo o Pacto [de San José da Costa Rica]. Dessa forma, as restrições à capacidade de mulheres ou meninas buscarem o aborto não devem colocar em risco suas vidas, submetê-las a dor ou sofrimento físico ou mental”, diz o texto.
Fonte: IHU
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