24 janeiro, 2014

A Desigualdade social mundial dá para ser revertida?

A reportagem é de Marcelo Justo, publicada pela BBC Brasil, 23-01-2014.

No Fórum Econômico Mundial de Davos - que nesta semana congrega políticos, empresários e personalidades com um volume de negócios equivalente a quase a metade do PIB americano -, a desigualdade foi identificada como uma das principais ameaças à economia mundial.

Mas, ainda que todos concordem com a gravidade do problema, haverá esforços para solucioná-lo?

Nos últimos 30 anos, segundo a Oxfam, o 1% mais rico da população passou a abocanhar renda ainda maior, em 24 dos 26 países que forneceram dados sobre o período. O Brasil é citado como um dos poucos países onde a desigualdade está diminuindo.

Nos EUA, em 1978, um salário anual médio equivalia a US$ 48 mil (em valores atuais), e 1% da população ganhava US$ 390 mil. Em 2010, o salário médio caiu para US$ 33 mil, enquanto 1% da população ganhava mais de US$ 1 milhão.

O período coincide com a hegemonia da crença neoliberal promovida entre os anos 70 e 80 por políticos como Augusto Pinochet, no Chile, Ronald Reagan, nos EUA, Margaret Thatcher, no Reino Unido.

A ideologia, que emergiu triunfante com a queda do Muro de Berlim, prega regulação mínima do Estado sobre a atividade econômica, liberdade absoluta ao mercado e redução dos impostos aos mais ricos, a fim de promover o crescimento econômico.

Oxfam defende iniciativas que vão na direção oposta: "É preciso um combate global à evasão a paraísos fiscais. Um sistema de impostos progressivo. Um salário digno", disse à BBC Mundo Ricardo Fuentes-Nieva, chefe de pesquisas do órgão.

Estados costumam ser as únicas entidades capazes de intervir significativamente na redução da desigualdade em nível nacional, mas, para tal, necessita de dinheiro para financiar investimentos em saúde, emprego, educação ou previdência social.

Distorções
Nas últimas décadas, a elite mundial contribuiu decisivamente para o "desfinanciamento" estatal: segundo o Tax Policy Center, dos EUA, desde a década de 1970, a carga de impostos caiu para os mais ricos em 29 dos 30 países nos quais há dados disponíveis.

No mesmo período, o número de paraísos fiscais alcançou 50 a 60 jurisdições, que, segundo cálculo da revista The Economist, são o destino do equivalente a quase o dobro do PIB dos EUA.

O diretor da ONG Tax Justice InternacionalJohn Christensen, ilustra o impacto dos paraísos fiscais.

"No âmbito de indivíduos, a perda em receita fiscal é de cerca de US$ 225 bilhões. Em âmbito corporativo, ocorre uma distorção de preços.

(Multinacionais) pagam pouco ou nada (para manter o dinheiro) no paraíso fiscal e, no país de origem, pagam menos do que deveriam porque seus ganhos ficam muito abaixo da realidade", afirmou à BBC Mundo.

 Isso provoca distorções tragicômicas. Um único edifício nas ilhas Cayman, chamado de Ugland House, é a sede oficial de 18 mil empresas.
 Nos Estados Unidos, Delaware, cuja população não chega a 1 milhão de pessoas, existem 945 mil empresas, mas de uma por cabeça.
 E o Google faturou US$ 5 bilhões no Reino Unido em 2012, mas praticamente não pagou impostos por isso.

Políticas
A globalização financeira, a desregulação e a capacidade de mover a produção de um país a outro converteram esse poder econômico em uma força capaz de dobrar governos.

"A elite mundial está impondo políticas de Estado que lhes favoreçam", opinou Ricardo Fuentes-Nieva. "Isso produz uma 'deslegitimação' da democracia e do Estado."

O relatório da Oxfam diz que, em pesquisas conduzidas em seis países - Brasil, Espanha, Índia, África do Sul, Reino Unido e EUA -, a maioria dos entrevistados opinou que as leis tendem a favorecer os mais ricos.

ONG fez um chamado por mais responsabilidade à elite global - chamado que, segundo Fontes-Nieva, pode ter mais apelo por conta da profundidade e da extensão de potenciais turbulências globais.

 "Estamos ante um perigo de ruptura do contrato social. Desta vez, o conjunto da sociedade, inclusive a classe média, se vê afetada. Precisamos lembrar que tratam-se de políticas públicas que podem ser mudadas. Se não forem, o impacto prejudicará as próprias elites, porque a crescente exclusão de consumidores pode acabar produzindo uma sociedade economicamente doente."

Sinais de debilidade não faltam: segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o desemprego mundial será de 6,1% neste ano, em comparação com 5,5% em 2008. Entre os jovens, a taxa será de 13,1%.

A íntegra do relatório, em espanhol, pode ser lida aqui.

Desigualdade: cerca de 3,5 bilhões de pessoas ganham o mesmo que as 85 pessoas mais ricas do mundo

Segundo a Oxfam, cerca de 3,5 bilhões de pessoas ganham, somadas as suas rendas, o mesmo que as 85 pessoas mais ricas do mundo.

A desigualdade mundial é tão forte que até a Cúpula dos Ricos de Davos, que começou ontem, citou-a como uma das grandes ameaças para a economia global. Um relatório da organização humanitária Oxfam, divulgado na segunda-feira, apresenta uma comparação que revela os extremos do desequilíbrio social em pleno século XXI. Segundo os cálculos da Oxfam, a metade da população mundial – cerca de 3,5 bilhões de pessoas – recebem o mesmo que as 85 pessoas mais ricas do planeta. Esta aparente confluência no diagnóstico, feita por uma ONG que luta contra a pobreza global e o Fórum Econômico Mundial, organizador de Davos, termina na identificação do problema.

Em uma pesquisa da consultora internacional Pricewaterhouse Coopers, publicada ontem, fica claro que as mil multinacionais que financiam o Fórum acreditam que a desregulação e a redução do déficit fiscal são fundamentais para lidar com os problemas econômicos globais. Discordando disso, a Oxfam considera que é preciso acabar com os paraísos fiscais, promover um sistema tributário progressivo e salários dignos, condições que são rejeitadas pelas multinacionais.

O jornal Página/12 conversou com o chefe de Pequisas da OxfamRicardo Fuentes-Nieva (foto), a respeito dos desafios para se promover uma maior igualdade, em um mundo globalizado.

A entrevista é de Marcelo Justo, publicada por Página/12, 23-01-2014. A tradução é do Cepat.
  
Eis a entrevista.

A Oxfam está participando em Davos e concordou com a avaliação do Fórum Econômico Mundial a respeito dos perigos que a desigualdade apresenta. Entretanto, essa concordância para por aí?
Em nosso relatório, vimos que em 24 dos 26 países do mundo em que há informação estatística dos últimos 30 anos, a desigualdade cresceu. Posto de outra forma, sete em cada 10 pessoas do mundo vivem em um lugar mais desigual do que há 30 anos. Uma segunda conclusão de nosso relatório é que os ricos têm uma crescente influência nos processos políticos, que apresentam sérios problemas de legitimidade. Por último, pensamos que não há razões para que isso continue assim. É uma questão que pode ser corrigida com políticas concretas.
Justamente, o caminho que vocês apresentam é totalmente o contrário daquilo que se promove em Davos.
Nós acreditamos que deve haver um combate global contra a evasão fiscal e os paraísos fiscais. O estouro financeiro de 2008 aprofundou a desigualdade, a partir dos programas de austeridade que foram levados adiante para solucionar uma crise que teve sua origem nos mais ricos do mundo e em sua especulação financeira. Os paraísos fiscais foram fundamentais nesta especulação e constituem uma das chaves da ausência de financiamento dos estados, pois distorcem a política governamental. Por um lado, forçam as políticas de redução fiscal para os mais ricos, para que não recorram à evasão e fuga de capital, por outro, impedem políticas sociais e econômicas que reduziriam a desigualdade em razão da queda da arrecadação fiscal. Desde os anos 1970, a carga tributária baixou para os ricos em 29 dos 30 países em que existem dados disponíveis. Esta é uma política impulsionada pelo crescente poder político dos ricos e o desequilíbrio em favor das corporações na distribuição dos benefícios econômicos entre trabalhadores e o capital.
O argumento mais citado em favor de salários baixos e vantagens fiscais é a competitividade das empresas, em um mundo globalizado. Sem questionar a globalização atual, não parece haver solução ao problema da desigualdade.
É um ponto muito importante. Parte desta concentração da renda está relacionada à globalização que, ao mesmo tempo, teve aspectos positivos, ajudando milhões de pessoas a saírem da pobreza. Porém, o certo é que o salário real médio decresceu em muitos países. Também não se pode dizer que este fenômeno se deve pura e exclusivamente à globalização. Os avanços tecnológicos, que surgiram da globalização, foram enormes e geraram uma redistribuição econômica para grupos que tem maior nível de educação. Contudo, ao mesmo tempo, a concentração da renda, que vimos nos últimos dois anos, não pode ser explicada por este fator, porque a globalização é um processo que está em marcha há muito tempo.
Por muito tempo, a América Latina foi um dos lugares mais desiguais do planeta. Como vocês avaliam a situação da região, nos últimos dez anos?

Acreditamos que ocorreram grandes progressos que demonstram que as coisas podem melhorar, caso exista vontade política. Programas sociais como Bolsa Família no Brasil, Trabalhar na ArgentinaChile Solidário eOportunidades no México, colocaram a América Latina na vanguarda de políticas inovadoras de intervenção estatal para lidar com a desigualdade. No entanto, é verdade que isto não foi suficiente. Os protestos no Chile ou no Brasil são sinais de que fica muito a desejar.  Mesmo assim, a tendência é animadora na América Latina e muito melhor do que em outras partes do mundo.

O que pode ocorrer, caso não se modifique esse panorama de crescente desigualdade global? 

Estamos diante de um perigo de ruptura do contrato social e de uma dissolução da ideia de cidadania. Se os governos não refletem a vontade de grande parte da população, começam a perder legitimidade, dinamismo e colocam em risco a democracia, os direitos humanos e outras conquistas. Nesse sentido, independente se a avaliação que Davos faz, a respeito da desigualdade como uma das ameaças da economia mundial, é um mero exercício de relações públicas, acredito que não é interesse das próprias companhias de Davos que esta situação transborde. Este transbordamento não irá acontecer de um ano para o outro, mas há um risco de que a sociedade se torne esclerosada com um impacto concreto econômico e com um risco crescente de explosão social, porque, nesse momento, a desigualdade está afetando ao conjunto da sociedade de muitos países, incluindo as próprias classes médias, que foram uma das grandes perdedoras da crise de 2008.