23 fevereiro, 2018

Papa: a Igreja deve abrir-se e não se mumificar

Veja imagens da saudação do Papa Francisco ao Pe. Tolentino, na conclusão dos Exercícios Espirituais de Ariccia.


Ao concluir os Exercícios Espirituais de Quaresma, o Papa Francisco agradeceu ao Padre português José Tolentino de Mendonça pelas meditações propostas nesses cinco dias de retiro. O tema das dez reflexões foi “O elogio da sede”.

Antes de regressar ao Vaticano, o Pontífice se dirigiu ao Pe. Tolentino falando em nome de todos os seus colaboradores presentes em Ariccia, na Casa “Divino Mestre”. Eis as palavras do Papa:

“Padre, gostaria de agradecer, em nome de todos, por este acompanhamento nesses dias, que hoje se prolongarão com o dia de oração e jejum pelo Sudão do Sul, o Congo e também a Síria.

Obrigado, Padre, por nos ter falado da Igreja, por nos ter feito sentir a Igreja, este pequeno rebanho. E também por nos ter advertido a não “diminui-lo” com as nossas mundanidades burocráticas! Obrigado por nos ter recordado que a Igreja não é uma gaiola para o Espírito Santo, que o Espírito voa também fora e trabalha fora. E com as citações e as coisas que o senhor nos disse, nos fez ver como trabalha nos não crentes, nos ‘pagãos’, nas pessoas de outras confissões religiosas: é universal, é o Espírito de Deus, que é para todos. Também hoje existem os “Cornélios”, “centuriões”, “guardiões da prisão de Pedro” que vivem uma busca interior ou sabem também distinguir quando há algo que chama. Obrigado por esta chamada a nos abrir sem medo, sem rigidez, para sermos suaves no Espírito e não nos mumificar nas nossas estruturas que nos fecham. Obrigado, padre. E continue a rezar por nós. Como dizia a mãe superiora às irmãs: “Somos homens!”, pecadores, todos. Obrigado, padre. E que o Senhor o abençoe.”

Fonte: Vatican News

“As pessoas pensam que freiras são bobinhas. Como podem escrever literatura?”


Uma das escritoras mais talentosas da literatura brasileira contemporânea tem 75 anos, é freira missionária e vive fora do eixo cultural mais batido do país. Maria Valéria Rezende (Santos, 1942) não é o que se espera de um “novo nome das letras nacionais” e nem de uma “freira/veterana/escritora juvenil”, como ela mesma conta que já a descreveram por aí. Autora dos premiados romances Quarenta dias, vencedor do Jabuti em 2015, e Outros cantos, que em janeiro recebeu o prêmio Casa das Américas de 2016, Maria Valéria não espera encaixar no que costumam dizer sobre ela. À sua maneira discreta, porém franca e divertida, ela se faz conhecer através de uma escrita inventiva, solta e profunda, sem jamais ser pesada. Descobriu-se escritora – não só de romances, mas de contos, crônicas e de literatura infantojuvenil – aos 60 anos. Eis a primeira surpresa.

A entrevista é de Camila Moraes, publicada por El País, 23-02-2017.


De João Pessoa, onde vive com outras três irmãs de sua congregação, a voz rouca de Maria Valéria ao telefone sobe alguns tons em emoção e volume quando relembra os anos vividos em Cuba. Nessa época, em que era parte de uma rede latino-americana de alfabetização popular, ela tomava café com Gabriel García Márquez e caminhava pelas ruas de Havana com Fidel Castro. “Era interessante, porque não era escritora, nem nada. Eu era uma formiguinha. Mas uma formiguinha que tinha a sorte de estar em lugares interessantes”, diz ao El País.

Este ano, “depois de passar a vida inteira andando pelo mundo” como educadora, Maria Valéria trabalha em seu quarto romance, Carta à rainha louca. O livro aborda histórias de mulheres brasileiras do período colonial, mas para ela fala da realidade “das mulheres brasileiras de sempre”. A freira escritora não planejou, mas ao parecer lança este ano uma obra de veia feminista. Mais uma surpresa para quem tenta encaixá-la nas manchetes dos jornais.

Eis a entrevista.

Quando as pessoas falam de você ao abordar seus livros, elas parecem mais surpresas pelo fato de você ser freira do que escritora e educadora. Por quê?

Acho que maioria tem uma ignorância absoluta em relação às freiras. Imaginam que a pessoa vai ser freira e fica ali toda reprimida, trancada. Mas nós somos leigas, ou seja, não somos membros do clero. Apenas optamos por viver em comunidade e fizemos três votos, que para nós são votos de liberdade: o de castidade, pelo qual você não está preso à família, nem a ninguém, e está disponível para ir aonde for preciso; o de pobreza, que na verdade é um voto de partilha pelo qual você não fica preso a uma carreira profissional, e por fim o voto da obediência, que é uma discussão com a comunidade, uma obediência aos apelos. Passei a minha vida inteira andando pelo mundo. Ainda assim, as pessoas têm aquela ideia de que as freiras são meio bobinhas, meio burrinhas [risos]... Como pode escrever literatura e ainda ganhar prêmio? Inclusive, muitos jornais – tranquilamente, sem me perguntar nada – escrevem que sou “ex-freira”. Porque para eles é inconcebível que uma freira que continua a ser freira tenha o mínimo de inteligência. O fato é que nossa vida é o contrário do que propaga o modelito oficial.

Você faz muitas coisas ao mesmo tempo. Ser freira em algum momento foi um porém para conciliar tantas atividades?

Já tenho 75 anos e, como todo mundo, não sou obrigada a fazer nada. Se continuo a ser freira, é porque continuo a acreditar que o serviço aos outros é a forma melhor de encarnar o evangelho. E vivo atarefada, porque se aparece alguém com um problema, quero logo resolver, ainda que isso seja mais difícil aos 75. Quando escolhi esse caminho, perguntava-se para as adolescentes assim: “Você já resolveu se quer casar ou quer ser freira?”. Eu, que sou a mais velha de seis irmãos, já tinha cuidado de criança a vida toda e, além disso, tinha fé (não só fiz uma opção pragmática)... Eu queria andar pelo mundo, então era muito mais inteligente ser freira missionária. De fato, não me decepcionei nem um pouquinho. Dei três voltas ao mundo sem nunca pagar passagem, porque toda a vida fui chamada para trabalhar aqui e ali.

A Casa das Américas, um coração de cultura latino-americana em Cuba, premiou recentemente seu romance Outros cantos. Que importância tem esse reconhecimento para você?

É um prêmio que me emociona muito, porque convivi com muita gente de lá quando trabalhei em Cuba. Meus laços com a América Latina têm origem na ditadura militar brasileira, quando o pessoal ligado ao movimento da teologia da libertação e às comunidades de bairro da Igreja Católica passou a se dedicar à alfabetização em toda a região. A gente reconstruiu, ao longo dos anos 60 e 70, uma rede de educação popular. Em 1979, quando houve Revolução Sandinista, a primeira grande ação tomada na Nicarágua foi alfabetizar todo o povo. Foi gente de todos os países latino-americanos para lá. Em Cuba, também fizeram uma cruzada de alfabetização no começo da Revolução Cubana. Lá houve um encontro muito interessante, porque a metodologia era outra, já que eles tinham uma ideia completamente diferente da Igreja Católica. Não entendiam como a gente podia ser católico e apoiar uma revolução socialista [risos]... A Casa das Américas, ainda que fosse mais dirigida à Cultura no sentido mais restrito, assumiu um papel natural de interlocutor. Criamos então uma comissão latino-americana, que era formada por uma pessoa da Casa e os educadores da América Latina. Eu coordenava essa equipe, então ia todo ano para lá. Faz 20 anos que não volto a Cuba, por razões variadas. Mas muitos amigos me escreveram quando saiu o prêmio.

O que você mais guarda da sua experiência em Cuba?

Fiquei hospedada um tempo em uma casa oficial do Governo cubano ao lado da casa onde fica o Gabriel García Márquez. Ele gostava de tomar café num quiosque na rua com uma porção de gente, vizinhos etc. Eu ficava lá, junto, batendo papo, contando histórias do interior do Nordeste e coisas assim. O Fidel era uma pessoa interessantíssima também. Tinha uma memória brutal. E um interesse em conversar comigo, porque eu vinha da zona canavieira e ele tinha uma curiosidade de saber como era a vida dos trabalhadores da cana. O que dizem do Fidel não tem nada a ver com o que ele é ao vivo. O problema quando começa a virar mito ­– a favor e contra – é que surgem lendas, e isso atrapalha muito o contato pessoal. Eu, por exemplo, andei com ele no meio da rua, em Havana Velha, sem nenhum aparato

Hoje a relação entre latino-americanos parece ser muito mais fria do que nesse tempo. A que se deve isso, na sua opinião?

Acho que ela vai reaquecer por causa do muro do Trump, né? Ele deve terminar unindo tudo o que está para baixo da fronteira dos Estados Unidos com o México. Naquela época, a aproximação veio muito por causa da resistência às ditaduras e do processo de libertação desses regimes para tentar construir um mundo melhor, mais democrático, de baixo para cima, através dos movimentos populares. Hoje também estamos passando por uma reação, mas não sabemos aonde isso vai parar.

Alguns acontecimentos da sua vida pessoal inspiram sua literatura. De que maneira o que você viveu está nos seus livros?

Não é que inspirem no sentido literal. Eu respirei o mundo inteiro, e isso entrou pelos meus cinco sentidos. Há uma variedade de lembranças, sensações, impressões... e é com isso que eu construo a minha literatura, sem dúvida nenhuma. Porque a minha cabeça nasceu vazia e tudo o que está lá dentro é porque entrou. Não fiz estudos de teoria literária, oficina de escrita criativa, nada disso. Então, o que escrevo só pode vir do que vi, ouvi, senti, cheirei, andei... Minha matéria prima certamente é isso e o que eu li toda a minha vida, uma média de 1.000 páginas por semana. Quando vivia no interior, não tinha nada para fazer de noite, então lia cinco, seis horas por dia. Não tenho preconceitos com literatura, não. Li tudo quanto é best seller. É uma coisa informativa, ajuda a completar o que a gente conhece do mundo.

Seu novo romance, Carta à rainha louca, que já vai avançado, traz histórias de mulheres brasileiras do período colonial. Há por trás dele um olhar feminista, que dialoga com a realidade de hoje?

Ele fala das mulheres brasileiras de sempre. Uma época, fiz muita pesquisa histórica sobre a era colonial no Brasil e no resto da América Latina. Era uma pós-graduação que fiz, e eu tinha muito material que ficou guardado. Tento fazer esse livro com uma linguagem plausível no século XVII e legível no século XXI. Na verdade, desconfio da minha cabeça de século XXI para falar no lugar de uma mulher do século XVIII. Então, a mulher diz uma porção de coisas que seria impossível ela dizer no século XVIII. Mas aí ela rasura. Porque ela diz “eu devo estar louca de estar pensando numa coisa dessas, que eu nunca ouvi ninguém dizer”. Acho que é uma maneira metafórica de dizer que muita coisa é verdade ainda. Não pensei “vou fazer um livro feminista”, mas ele se torna... Demoro muitos anos para escrever um romance. Escrevo três, quatro ao mesmo tempo. Então, o que vai acontecendo enquanto escrevo vai mexendo no meu texto. Mesmo que o texto não se refira diretamente a isso. É o caso desse livro.

Em que medida os prêmios literários são importantes?

Para mim, o Jabuti foi importante. Em parte, por mérito da imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro. Todos fizeram a mesma manchete: “Freira/veterana/escritora juvenil bate/derruba/desbanca/derrota Chico Buarque e Cristóvão Teeza”. Achei deselegante com eles mais do que comigo, porque ficaram repetindo que os caras foram vencidos por uma velhota desconhecida que só escreve livro juvenil e ainda por cima é uma freira. Por outro lado, isso ajudou também a despertar curiosidade. Por causa do Jabuti, 40 dias já vai pela quinta reimpressão. É provável que o prêmio da Casa das Américas também faça muito barulho. Ao menos, agora as manchetes já aparecem com o meu nome e não sai mais que eu bati em alguém. Também recebo muitas mensagens pelo Facebook de pessoas que me dizem que acabaram de ler Outros cantos. Tem que gente que diz: “Estou passando uma fase muito ruim da minha vida e seu livro me deu ânimo”. Coisas assim valem a pena. Nunca quis fazer livro de autoajuda, mas parece que a literatura ajuda.