13 fevereiro, 2020

Boris Cyrulnik: “A desigualdade social começa nos mil primeiros dias de vida”


Reconhecido neurologista francês, que popularizou o conceito de resiliência, destaca o papel em nosso desenvolvimento da atenção recebida inclusive antes de nascer.


Há muitas maneiras de apresentar Boris Cyrulnik. É o neuropsiquiatra que popularizou o conceito de resiliência, a capacidade de superar as adversidades. É o autor de numerosos livros que aproximaram do público das chaves de sua disciplina, alguns lançados no Brasil, como Autobiografia de um Espantalho. É um homem de 82 anos marcado pelo Holocausto e a Segunda Guerra Mundial. E é quem inspirou o presidente francês, Emmanuel Macron, em suas políticas sobre a educação pré-escolar e a escolaridade obrigatória aos três anos de idade.

Pergunta. Tudo se define nos seis primeiros anos, antes da educação primária?

Resposta. Nem tudo. Se a pessoa fracassa nestes anos, ainda pode se recuperar. Eu não fui à escola. Mas são anos em que a aprendizagem é fulgurante e fácil: as crianças aprendem a toda velocidade porque os neurônios estão em ebulição. Depois, pode-se continuar aprendendo, mas menos rápido.

P. Quais as consequências dessa desigualdade na raiz?

R. Hoje em dia, a sociedade seleciona por meio da escola e do diploma: é a nova aristocracia. Já não é a aristocracia da força física nem a dos bens ou das fábricas, que ainda existe, mas é menos importante. A nova aristocracia é a do diploma. A partir dos três anos, as crianças que estiveram bem acolhidas com antecedência serão os bons alunos, e as crianças mal acolhidas acumularão tamanho atraso na linguagem que serão maus alunos, não terão diplomas e terão dificuldades sociais, culturais, afetivas…

P. Pelo que o senhor diz, nem tudo se define entre os três e os seis anos, mas inclusive antes.

R. Sim, a desigualdade social já começa nos primeiros mil dias.

P. Como intervir nessa idade, quando as crianças ainda não estão escolarizadas?

R. Agora que as mulheres trabalham e que a aldeia já não existe mais, há crianças que vivem num ambiente pobre e que serão maus alunos. Mas essas crianças, se as enviarmos a creches, se as acolhermos, e se acolhemos os pais e mães infelizes, se detectarmos dificuldades psicológicas e sociais dos pais, poderemos melhorar o nicho sensorial que cerca o bebê e haverá menos injustiças: ao entrar na escola infantil, terá menos atraso.

P. O que fazer para atenuar estas desigualdades?

R. Se for constatado, desde antes do momento da concepção, que a mãe tem 14 anos, que não tem emprego, que não tem família, que se droga e vive com um amante que tem 17 anos e é delinquente e consome cocaína, então é possível predizer que o nicho sensorial que cerca o bebê será negativo e que haverá um atraso no seu desenvolvimento. Por outro lado, se os pais estão acolhidos e em segurança, pode-se predizer que o bebê terá um entorno que lhe permitirá um bom desenvolvimento. Tudo começa antes do nascimento.

P. Como garantir a existência desse entorno?

R. Detectando as gestações patológicas. Uma em cada quatro mulheres sofre depressão durante a gravidez. Os trabalhos sobre a epigenética mostram que quando a mãe está infeliz segrega as substâncias do estresse que passam ao líquido amniótico, e o bebê consome quatro a cinco litros de líquido amniótico por dia, cheio de cortisona, catecolamina e substâncias do estresse que danificam seu cérebro. A criança chega ao mundo com o cérebro prejudicado porque a mãe é infeliz. E as causas da infelicidade da mãe são essencialmente o isolamento, contra o qual socialmente pode-se lutar com a família e o bairro. É a violência conjugal, contra a qual se deve lutar. E é a precariedade social contra a que eu gostaria que se lutasse. Se protegermos as mães, protegeremos as crianças.

P. Como foram seus primeiros anos?

R. Nasci em 1937. Meu pai se alistou no Exército francês em 1939. Foi ferido e detido na cama do hospital pela polícia francesa, o país para o qual combatia. Depois foi deportado e desapareceu em Auschwitz. Minha mãe ficou sozinha, muito pobre, sem família: os homens estavam no Exército, os jovens na Resistência, e os outros em Drancy [o campo nos subúrbios de Paris de onde os judeus da França eram mandados para os campos de concentração e extermínio] ou em Auschwitz. Em 1942 a Gestapo a deteve. Apesar disso, meus primeiros anos devem ter sido fortificantes, porque conservei uma pequena confiança em mim. Aos seis anos me detiveram e escapei. Depois me recolheram uns justos [pessoas que desinteressadamente salvaram judeus em situação de perigo], me senti seguro com eles e retomei o desenvolvimento correto. A irmã da minha mãe me reencontrou depois da guerra, mas quase nunca fui à escola. Passei num exame de acesso ao liceu [ensino médio], aceitaram-me, o que é a prova da existência de Deus, e recuperei meu atraso e me virei.

P. Os primeiros anos, com sua mãe, deram-lhe a força para sobreviver?

R. Sim, sem dúvida. Crianças isoladas nos dois primeiros anos de vida perdem a confiança 
em si mesmas, têm medo do mundo e só têm atividades autocentradas.

P. E o senhor, por outro lado, confiava em si mesmo.

R. Sim.

P. Seu pai e sua mãe desapareceram.

R. Toda minha família, exceto uma irmã e um irmão da minha mãe.

P. Não pôde enterrar seus pais. Isso é uma ferida aberta?

R. Não morreram: desapareceram. Não é o mesmo. Em um luto se sofre, se chora e se lhes devolve a dignidade, se faz uma bela sepultura, dizem-se coisas amáveis, inscreve-se o nome, colocam-se flores, cantam-se canções. Já meus pais não tiveram esta dignidade, desapareceram. Depois da liberação, soube que viraram fumaça, sem sepultura.

P. Aos 11 anos o senhor já queria ser psiquiatra. Por que tão cedo? A essa idade os meninos querem ser jogadores de futebol.

R. Ouvia dizer ao meu redor que o nazismo era uma prova de loucura social. Ainda penso assim. Não era individual, era a sociedade que delirava. Eu me disse que, se a sociedade estiver louca, devia me tornar psiquiatra para impedir, e assim não voltaria a haver guerras.

Fonte: El País