07 julho, 2020
Sou quem viu a dor de perto! A dor e o silêncio a partir das Lamentações
Sou quem viu a dor de perto! A dor e o silêncio a partir das
Lamentações
Por Rafael Rodrigues da Silva*
O Livro das Lamentações é um pequeno livreto de salmos e
orações do povo que expressa a dor que sentiram diante da invasão do império
babilônico que arrasou a cidade, matou muita gente, violentou mulheres e
crianças e saqueou as riquezas da cidade.
Os Salmos de Súplica mostram a situação difícil e grave que
uma pessoa ou comunidade está vivendo. O pedinte diante dos conflitos e tensões
suplica para que Deus possa ouvi-lo. Seja o grito de um doente que pede a Deus
a cura (Sl 6; 38) ou do justo que é injustamente caluniado e perseguido (Sl 7)
ou que Deus não esqueça dos pobres no julgamento (Sl 10). Assim poderíamos
percorrer todos salmos de súplica e perceber que as orações de lamento têm
várias maneiras de apresentar as queixas diante de Deus (“Javé, escuta minhas
palavras, leva em conta o meu gemido. Ouve atento meu grito por socorro…” – Sl
5).
No Livro das Lamentações encontramos uma mistura entre
cantos fúnebres, lamentos individuais e coletivos. É um livro que gira em torno
da situação de cerco, cativeiro, fome e destruição da cidade através da ação
dos babilônicos (597-587 a.E.C.). Ali aparecem os lamentos em tom coletivo nos
capítulos 1-2 e 4-5 e o grande lamento individual do capítulo 3, que está no
centro do livro. Valeria a pena ler atentamente estas orações e perceber as
marcas de opressão, os resultados do processo de desumanização e os sinais de
resistência do povo. Os gritos e o silêncio pela dor de muita gente ecoam nestes
cantos e revelam em cada linha o sangue derramado, a luta pela vida e a
teimosia da esperança.
No Livro das Lamentações ecoa o silêncio de Deus diante do
grito e da dor do povo. Por que está acontecendo tudo isto? Quais as causas? De
quem é a culpa? Onde está Deus? Tudo aconteceu porque pecamos? E por aí seguem
as interrogações que estão no silêncio e no grito do povo. Quando começam a
juntar as incertezas e inquietações, abre-se um espaço fundamental tanto para
ecoar a dor e sofrimento, quanto para descrever os instrumentos de opressão e
de desumanização presentes por trás de cada lágrima e cada grito.
A terceira lamentação começa com esta afirmação: “Eu sou
aquele que viu a dor de perto!” Este “ver” implica em olhar com atenção, ouvir,
sentir e experienciar a dor. Certamente esta frase que abre o lamento quer
provocar uma pergunta em meio ao silêncio: “qual foi a for que você viu?”
Eu vi muita gente gemendo com fome e na busca por pão
(1,11); crianças pedindo comida e ninguém lhes dava nada (4,4); outras crianças
morrendo no colo de suas mães (2,12); muitas crianças e bebês desfalecendo
pelas ruas (2,11); muita gente
arriscando a vida para trazer alimento para casa (5,9) e os anciãos e
lideranças foram mortos enquanto buscavam por comida (1,19); muita gente
tentando desfazer de objetos para aplacar a fome em meio aos ataques (1,11).
Nossa pele queima como forno, torturada pela fome (5,10).
Eu vi o povo pagando pela água para beber e pela lenha (5,4)
e o sentimento de todos de que era melhor morrer pela espada do invasor do que
morrer lentamente de fome (4,9).
Eu vi as mulheres sendo violentadas e as jovens sendo
abusadas (5,11); os velhos sendo desrespeitados (5,12.14); os jovens sem
alegria e obrigados aos trabalhos forçados (5,13.15). A morte reinava dentro e
fora de casa (1,20; 2,20).
Eu vi muita tristeza e a cidade estava em completo luto e
pranto (1,4), onde os jovens não cantavam mais (1,4; 5,14), os velhos não se
reuniam nas portas (5,14), as festas se transformaram em lamentos (5,15) e as
jovens não dançavam por causa da tristeza (1,4; 2,10). Acabou a alegria e não
há consolo diante de muita dor (1,2.9.16; 2,13; 5,15).
Eu vi a opressão e a exploração, onde os jovens foram
deportados e outros obrigados aos trabalhados forçados (1,18; 5,13). Não há
quem nos livre e o jugo chegou ao nosso pescoço (4,17; 5,5). O povo esgotado
pela opressão e sem descanso (1,3; 5,5).
No Livro das Lamentações ecoa a resistência e a luta do povo
oprimido. Em cada canto da cidade e em cada canto do país começa um mo(vi)mento
que lembra, recorda, recolhe histórias e experiências, resiste, protesta e
teimosamente “esperançam” Recriam a vida a partir do grito e do silêncio. Na
escuridão lembram uma antiga profecia: “O povo que era andava nas trevas viu
uma grande luz, e uma luz brilhou para os que habitavam uma terra tenebrosa.
Multiplicaste sua alegria, aumentaste seu prazer. Vão alegrar-se diante de ti,
como na alegria da colheita, como no prazer dos que repartem despojos de
guerra. Porque como no dia de Madiã, quebraste a canga de suas cargas, a vara
que batia em suas costas e o bastão do capataz de trabalhos forçados. Porque
toda bota que pisa com barulho e toda capa empapada de sangue serão queimadas,
devoradas pelas chamas. Pois criança nasceu para nós, filho foi dado para nós”
(Is 9,1-5a).
Este momento novo de recriar a vida e de esperançar tem seu
pontapé inicial no arriscar a vida pela vida (“Arriscamos a própria vida pelo
pão” – Lm 5,9) e sua força na confiança do Deus da vida que escuta seus gritos,
choros e silêncios. Em meio a tamanha dor era preciso desconstruir a
necroteologia do “abandono de Deus” e do “castigo pelo pecado”. Ah! Teologia da
escuridão que justificava tudo e determinava que o povo oprimido era o único
culpado e responsável por sua dor e sofrimento.
Esta teologia descreva que a situação do povo empobrecido e oprimido era
resultado do castigo de Deus. A cidade solitária e banhada em lágrimas, foi
castigada/desolada/afligida por Javé (1,4.5.12; 3,32), que do céu jogou um fogo e armou um laço contra a
cidade(1,13). Tornou as culpas do povo um fardo e entregou-os nas mãos dos
invasores (1,14), dispersou todos os fortes e pisou na cidade como pisa a uva
no lagar (1,15) e ordenou que os opressores atacassem (1,17). Em sua ira, Javé
escureceu o templo (2,1), arrasou sem piedade todas as moradas e em seu furor,
destruiu as fortalezas (2,2), cortou o poder de Israel e cruzou os braços
(2,3). Javé concluiu seu ódio e derramou sua ira (4,11), os espalhou e não
cuida mais deles (4,16).
Desconstruir esta visão de um Deus que despreza, abandona.
castiga e destrói, o povo oprimido e machucado não foi tarefa fácil. Aparece
neste pequeno livro de cantos de lamento a dimensão da confiança em Deus: que
Javé possa olhar para o sofrimento (1,9), “Olha, Javé, e presta atenção: como
estou rebaixada!” (1,11), Javé é justo (1,18). A terceira lamentação que faz um
contraponto entre um Deus surdo diante das súplicas (3,8) e as lembranças que
transmitem esperança (3,21): a solidariedade e a compaixão de Javé (3,22 e 32 –
práticas fundamentais na defesa e caminhada dos profetas, especialmente na
profecia de Oséias). O canto reconhece que a força destas ações de Javé está na
fidelidade, pois “Javé é bom para os que nele esperam e o procuram” (3,25). Bom
aguardar em silêncio (3,26), porque Javé não rejeita para sempre (3,31).
A confiança e certeza da solidariedade e compaixão de Deus,
tem reforço nestas duas estrofes do canto:
“Do fundo da fossa, invoquei teu nome, ó Javé.
Ouve minha voz, não feches o ouvido ao meu apelo.
Tu vieste na hora em que eu chamei, e respondeste: Não tenha
medo.
Tu te encarregaste de defender a minha causa e resgatar
minha vida.
Tu viste, Javé, que sofro injustiça: julga minha causa.
Viste a vingança deles contra mim.” (3,55-60)
A certeza maior que o povo tem é que Javé permanece para
sempre e que se renova a aliança: “faze que voltemos para ti, Javé, e
voltaremos; renova os tempos passados” (ver 5,19-22).
Portanto, no Livro das Lamentações o silêncio pela dor se
transforma em resistência e faz da teimosia da esperança qual flor sem defesa,
bonita e nascida em terra seca sem adubo”. Do silêncio, do grito e da dor brota
uma flor que na teimosia aponta que Deus escuta os clamores do povo, enxuga as
lágrimas, é solidário e faz justiça.
O povo desde o cativeiro transmitiu seus cantos e o silêncio
pela dor. Canto que fortalece a resistência e a luta. Canto que descreve a dor que viram e
vivenciaram naqueles dias terríveis do ano de 587 a.E.C. E recebemos deste povo uma pergunta: Qual a
dor que vocês estão vendo no Brasil nestes dias da Covid-19 no ano de 2020?
Reflitam e demonstrem para tantos irmãos e irmãs a dor que
vocês estão vendo.
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*Diretor Nacional do CEBI, assessor bíblico e professor.
Fonte: CEBI
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