Um Deus curinga dos governantes para se esquivar de suas
responsabilidades e adormecer os mais desamparados é um Deus perverso.
O comentário é de Juan Arias, jornalista, publicado por El País, 02-01-2017.
Eis o texto.
Talvez seja a sensação de impotência, a falta de confiança na política ou a
forte influência das Igrejas Evangélicas, a verdade é que o Brasil parece se
refugiar cada vez mais em Deus, algo que não desagrada seus governantes e
muitos até exploram isso.
No dia primeiro de janeiro, quando milhares de prefeitos assumiram seus cargos,
uma das palavras que mais foram repetidas em seus discursos foi “Deus”. E
também a mais aplaudida.
“Não tenho medo de assumir essa responsabilidade porque Deus está comigo”;
“Vamos mudar esta cidade porque Deus decidiu”, foram frases que se repetiram em
muitos dos discursos dos recém-eleitos.
No Rio de Janeiro, o novo prefeito, o bispo evangélico Marcello Crivella, citou
Deus seis vezes em oito minutos de seu discurso. Disse a uma multidão
entusiasmada: “Tenho certeza de que Deus estará comigo enquanto governar”.
E algo incomum nesses casos, em um país laico por Constituição, o
evangélico Crivella abriu o ato recitando o Pai Nosso, um aceno para os
católicos.
Não só aqueles que tomaram posse apelaram a Deus, mas também aqueles que se
despediram depois de ter perdido a eleição. Um caso emblemático foi o da
prefeita da pequena cidade de Sapezal (MT), Ilma Grisoste, 55 anos, formada em
Pedagogia e doutora em Psicopedagogia.
Em vez de entregar as chaves da cidade ao seu sucessor, emitiu um documento no
qual afirmava: “Decreto a entrega das chaves desta cidade a Deus”. E
acrescentou: “Desejo que esta cidade pertença a Deus e que toda a prefeitura
esteja sob a proteção do Todo-Poderoso”. Mais ainda: “Cancelo em nome de Jesus
todos os pactos feitos por qualquer outro Deus ou entidade religiosa”.
Então, não é de estranhar que 90% dos brasileiros pensem que ser rico ou pobre
depende de Deus, de acordo com uma pesquisa recente da Datafolha, publicada no
jornal Folha de S. Paulo.
Esta pesquisa indica que nove de cada dez brasileiros estão convencidos de que
“seu sucesso financeiro se deve a Deus”. E o mais estranho é que a alegação foi
feita não só pelos crentes, mas também por 70% das pessoas sem religião e 23%
daqueles que se declaram ateus.
E não apenas os mais pobres e menos escolarizados atribuem a Deus seu sucesso
ou fracasso econômico, mas também 77% das pessoas que concluíram a universidade
e ganham até 8.800 reais.
Esse Deus acaba sendo um perigo porque anula os próprios esforços das pessoas
para avançar na vida, enquanto elimina sua capacidade de protestar e se rebelar
contra o poder injusto.
Esse Deus empurra os pobres à resignação porque seria ele, e não o esforço e
capacitação pessoal, ou a luta por seus direitos, que decide seu presente e seu
futuro.
Os políticos devem ser os mais felizes com essa convicção de 90% dos
brasileiros. Para que se esforçar muito, realizar reformas sociais que melhorem
a vida das pessoas, se no final é Deus que decide sobre as finanças delas?
Ou para que melhorar a educação e elevar o nível cultural do povo, se 77% das
pessoas com título universitário também acham que tudo depende de Deus?
Em qualquer sociedade laica do mundo, especialmente aquelas que possuem
melhores índices de qualidade de vida, a situação econômica dos indivíduos e
das famílias não depende de Deus, mas do esforço pessoal de cada um, sua
capacidade e preparação profissional, bem como dos sistemas econômicos e
políticos em que vivem.
Como diz o ditado espanhol: “A Deus rogando, mas com martelo batendo”. Ou, como
respondeu Jesus (tão traído e distorcido nos discursos dos políticos
brasileiros) aos judeus: “Dê a César o que é de César e a Deus o que é de
Deus”.
O resto é vontade de tirar sarro dos pobres e dar ao poder o álibi de que é
Deus que vai cuidar deles.
A fé religiosa deveria ser, ao contrário, a primeira a exigir que o poder seja
desmascarado sempre que pretende alienar as consciências com falsas promessas
messiânicas ou perigosas bajulações aos pobres.
Um Deus curinga dos governantes para se esquivar de suas responsabilidades e
adormecer os mais desamparados é um Deus perverso.