Carta Apostólica Candor Lucis Aeternae
Do Santo Padre Francisco
No Vii Centenário da Morte de Dante Alighieri
Esplendor da Luz Eterna, o Verbo de Deus tomou um corpo da
Virgem Maria quando, ao anúncio do Anjo, Ela respondeu: «Eis a serva do Senhor»
(Lc 1, 38). O dia em que a Liturgia celebra este mistério inefável é
particularmente significativo também na vida histórica e literária do insigne
poeta Dante Alighieri, profeta de esperança e testemunha da sede de infinito
presente no coração do homem. Por isso, nesta ocorrência, desejo unir-me também
eu ao coro numeroso de quantos querem honrar a sua memória no VII centenário da
sua morte.
Em Florença, de facto, o ano tinha início, segundo o cômputo
ab Incarnatione, em 25 de março. Próxima do equinócio da primavera e vista na
perspetiva pascal, tal data aparecia associada quer com a criação do mundo quer
com a redenção realizada por Cristo na cruz, início da nova criação. À luz do
Verbo encarnado, convida a contemplar o desígnio de amor que é o próprio
coração e a fonte inspiradora da obra mais célebre do Poeta, a Divina Comédia.
No último canto desta, o acontecimento da Encarnação é lembrado por São
Bernardo com estes versos famosos: «No ventre teu reacendeu-se amor / e em paz
eterna fez que germinasse / a seu calor assim tão bela flor» (Par. XXXIII,
7-9)[*].
Mas, já no Purgatório, Dante representara a cena da Anunciação
esculpida num penhasco rochoso (X, 34-37.40-45).
Por isso, nesta circunstância, não pode faltar a voz da
Igreja que se associa à comemoração unânime do homem e do poeta Dante
Alighieri. Melhor do que muitos outros, soube exprimir, com a beleza da poesia,
a profundidade do mistério de Deus e do amor. O seu poema, expressão sublime do
génio humano, é fruto duma nova e profunda inspiração, de que o Poeta aliás tem
consciência quando fala dele como «poema santo que consagro, / em que puseram
mão o céu e a terra» (Par. XXV, 1-2).
Desejo, com esta Carta Apostólica, unir a minha voz à dos
meus Antecessores que honraram e celebraram o Poeta, especialmente por ocasião
dos aniversários do nascimento ou da morte, para o propor de novo à atenção da
Igreja, à universalidade dos fiéis, aos estudiosos de literatura, aos teólogos,
aos artistas. Recordarei brevemente estas intervenções, focando a atenção nos
Pontífices do último século e nos seus documentos de maior relevo.
1. As palavras sobre Dante Alighieri dos Romanos Pontífices
do último século
Há um século, em 1921, por ocasião do VI centenário da morte
do Poeta, Bento XV, recolhendo as ideias que surgiram nos pontificados
anteriores, particularmente de Leão XIII e São Pio X, comemorou o aniversário
de Dante quer com uma Encíclica[1] quer promovendo obras de restauro em Ravena
na igreja de São Pedro Maior, chamada popularmente de São Francisco, onde se
celebrou o funeral de Alighieri tendo sido sepultado na respetiva área tumular.
O Papa, vendo com apreço as numerosas iniciativas tendentes a solenizar a
ocorrência, reivindicava o direito da Igreja, «que foi sua mãe», de ser
protagonista de tais comemorações, honrando o «seu» Dante.[2] Já na Carta ao
Arcebispo de Ravena, D. Pasqual Morganti, com a qual aprovara o programa das
celebrações do centenário, Bento XV motivou a sua adesão da seguinte forma:
«Além disso (e isto é mais importante) há uma razão particular para
considerarmos que se deve celebrar o seu fausto aniversário com grata memória e
grande concurso de povo, ou seja, o facto de que Alighieri é nosso. (...) Com
efeito, quem poderá negar que o nosso Dante tenha alimentado e fortalecido a
chama do engenho e a virtude poética inspirando-se na fé católica, a ponto de
cantar num poema quase divino os mistérios sublimes da religião?»[3]
Num momento histórico marcado por sentimentos de hostilidade
à Igreja, o Pontífice reiterou, na citada Encíclica, a pertença do Poeta à
Igreja, «a união íntima de Dante com esta Cátedra de Pedro»; mais, afirmou que
a sua obra, apesar de ser expressão da «prodigiosa vastidão e agudeza do seu
engenho», recebeu «um poderoso impulso de inspiração» precisamente da fé
cristã. Por isso, «nele – continuava Bento XV – não devemos admirar apenas a
altura sublime do engenho, mas também a vastidão do tema que a religião divina
ofereceu ao seu canto». E tecia o seu elogio, respondendo indiretamente a
quantos negavam ou criticavam a matriz religiosa da sua obra: «Respira-se em
Alighieri a mesma piedade que há em nós; a sua fé tem os mesmos sentimentos.
(...) O motivo principal de elogio nele é este: ser um poeta cristão e ter
cantado com acentuações quase divinas os ideais cristãos dos quais contemplava,
com toda a alma, a beleza e o esplendor». E o Pontífice prosseguia: a obra de
Dante é um exemplo eloquente e válido para «demonstrar quão falso seja que o
obséquio da mente e do coração a Deus corte as asas do engenho; pelo contrário,
estimula-o e eleva-o». Por isso, defendia ainda o Papa, «os ensinamentos que
Dante nos deixou em todas as suas obras, mas sobretudo no seu triplo poema»
podem servir «como guia validíssimo para os homens do nosso tempo», e de modo
particular para alunos e estudiosos, já que ele, «ao compor o seu poema, não
teve outro objetivo senão levantar os mortais do estado de miséria, isto é, do
pecado e conduzi-los ao estado de beatitude, isto é, da graça divina».
Passando a São Paulo VI, as suas várias intervenções estão
relacionadas com o VII centenário do nascimento, em 1965. No dia 19 de
setembro, ofereceu uma cruz dourada para embelezar a Capela de Ravena que
guarda o túmulo de Dante, até então desprovida de «tal sinal de religião e
esperança».[4] Em 14 de novembro, enviou a Florença uma coroa áurea de louros
para ser encastoada no Batistério de São João. Finalmente, no termo dos
trabalhos do Concílio Ecuménico Vaticano II, quis doar aos Padres Conciliares
uma edição artística da Divina Comédia. Mas sobretudo honrou a memória do
insigne Poeta com a Carta Apostólica Altissimi cantus,[5] na qual reiterava a
forte ligação entre a Igreja e Dante Alighieri: «Se alguém quisesse perguntar
por que motivo a Igreja Católica, por vontade do seu Chefe visível, tenha a
peito cultivar a memória e celebrar a glória do poeta florentino, é fácil a
nossa resposta: porque, por um direito particular, Dante é nosso! Nosso,
queremos dizer da fé católica, porque tudo nele respira amor a Cristo; nosso,
porque muito amou a Igreja, cujas glórias ele cantou; e nosso, porque no Romano
Pontífice reconheceu e venerou o Vigário de Cristo».
Mas tal direito, continuava o Papa, longe de autorizar
atitudes triunfalistas, constitui um compromisso. «Dante é nosso: podemos
justamente repeti-lo. E afirmamo-lo, não para fazer dele um almejado troféu de
glória egoísta, mas antes para nos lembrar a nós próprios o dever de o
reconhecer como tal e explorar na sua obra os tesouros inestimáveis do
pensamento e sentimento cristãos, convencidos como estamos de que só quem
penetra na alma religiosa do insigne Poeta pode compreender profundamente e
saborear as suas maravilhosas riquezas espirituais». E este compromisso não
dispensa a Igreja de acolher também as palavras de crítica profética
pronunciadas pelo Poeta contra quem devia anunciar o Evangelho e representar,
não a si próprio, mas a Cristo: «Nem me custa recordar que a voz de Dante se
ergueu, pungente e severa, contra mais de um Romano Pontífice, e teve amargas
reprimendas para instituições eclesiásticas e pessoas que foram ministros e
representantes da Igreja»; contudo resulta claro que «tais atitudes inexoráveis
nunca abalaram a sua fé católica firme nem o seu afeto filial à santa Igreja».
Depois Paulo VI ilustrava as caraterísticas que fazem do
poema de Dante uma fonte de riqueza espiritual ao alcance de todos: «O poema de
Dante é universal: na sua amplitude imensa, abraça céu e terra, eternidade e
tempo, os mistérios de Deus e as vicissitudes dos homens, a doutrina sagrada e
a que deriva da luz da razão, os dados da experiência pessoal e as memórias da
história». Mas sobretudo especificava a finalidade intrínseca da obra de Dante,
particularmente da Divina Comédia (finalidade essa, nem sempre claramente
apreciada e avaliada): «O objetivo da Divina Comédia é primariamente prático e
transformador. Não se propõe apenas ser poeticamente bela e moralmente boa, mas
capaz de mudar radicalmente o homem e levá-lo da desordem à sabedoria, do
pecado à santidade, da miséria à felicidade, da visão terrificante do inferno à
contemplação beatificante do paraíso».
Num momento histórico denso de tensões entre os povos, o
Papa tinha a peito o ideal da paz e encontrava na obra do Poeta uma reflexão
preciosa para a promover e suscitar: «Esta paz dos indivíduos, das famílias,
das nações, da sociedade humana, paz interna e externa, paz individual e
pública, tranquilidade da ordem, é perturbada e abalada, porque são
espezinhadas a piedade e a justiça. E, para restaurar a ordem e a salvação, são
chamadas a trabalhar em harmonia a fé e a razão, Beatriz e Virgílio, a Cruz e a
Águia, a Igreja e o Império». Nesta linha, assim definia a obra poética na
perspetiva da paz: «A Divina Comédia é poema da paz: lúgubre canto da paz
perdida para sempre é o Inferno, suave canto da paz esperada é o Purgatório,
epinício triunfal de paz eterna e plenamente possuída é o Paraíso».
Nesta perspetiva, continuava o Pontífice, a Divina Comédia
«é o poema da melhoria social na conquista duma liberdade, que está isenta da
escravidão do mal e nos leva a encontrar e amar a Deus (…) professando um
humanismo, cujas qualidades julgamos ter ficado bem esclarecidas». E Paulo VI
reiterava uma vez mais quais eram as qualidades do humanismo de Dante: «Em
Dante, todos os valores humanos (intelectuais, morais, afetivos, culturais,
civis) são reconhecidos, exaltados; e é muito importante notar que este apreço
e honra se verificam enquanto ele mergulha no divino, quando a contemplação
teria podido anular os elementos terrenos». Daí, afirmava o Papa, nasce – e
justamente – o apelativo de Sumo Poeta e o atributo de divina dado à Comédia,
bem como a proclamação de Dante como «senhor do altíssimo canto», no incipit da
própria Carta Apostólica.
Além disso, avaliando as qualidades artísticas e literárias
extraordinárias de Dante, Paulo VI reiterava um princípio por ele afirmado
muitas outras vezes. «A teologia e a filosofia têm com a beleza ainda outra
relação, e é esta: a beleza, ao emprestar à doutrina o seu vestido e ornamento,
com a suavidade do canto e a visibilidade da arte figurativa e plástica, abre a
estrada para os seus preciosos ensinamentos chegarem a muitos. As pesquisas
profundas, os raciocínios subtis resultam inacessíveis aos humildes, que são
uma multidão, e famintos também eles do pão da verdade. Entretanto estes
percebem, sentem e apreciam o influxo da beleza e, por este veículo, brilha
mais facilmente para eles a verdade e nutre-os. Bem o compreendeu e realizou o
senhor do altíssimo canto, cuja beleza se tornou serva da bondade e da verdade,
e a bondade matéria da beleza». Por fim, citando a Divina Comédia, Paulo VI
exortava a todos: «Honrai agora o altíssimo poeta» (Inf. IV, 80).
De São João Paulo II, que repetidamente citou nos seus
discursos as obras do insigne Poeta, quero lembrar apenas a intervenção de 30
de maio de 1985 na inauguração da Exposição Dante no Vaticano. Como Paulo VI,
também ele destacou a sua genialidade artística: a obra de Dante é interpretada
como «uma realidade visualizada, que fala da vida do além-túmulo e do mistério
de Deus com a força própria do pensamento teológico, transfigurado pelo
esplendor da arte e da poesia, simultaneamente conjuntas». Depois o Pontífice
deteve-se a examinar um termo chave da obra de Dante: «“transumanar”,
ultrapassar o humano. Foi este o esforço supremo de Dante: fazer que o peso do
humano não destruísse o divino que existe em nós, nem a grandeza do divino anulasse
o valor do humano. Por esta razão, o Poeta leu justamente a própria vicissitude
pessoal e a da inteira humanidade em chave teológica».
Bento XVI falou frequentemente do itinerário de Dante,
tirando das suas obras tópicos de reflexão e meditação. Por exemplo, ao
apresentar a sua primeira Encíclica – a Deus caritas est –, partiu precisamente
da visão de Deus que tinha Dante e na qual «luz e amor são uma coisa só», para
propor novamente uma sua reflexão sobre a novidade da obra de Dante: «O olhar
de Dante vislumbra uma coisa totalmente nova (…). A Luz eterna apresenta-se em
três círculos aos quais se dirige com estes versos densos que conhecemos: “Luz
eterna que só tens sede em ti, / e a ti entendes, e por ti intelecta / e
entendente, te amas, ris assi!” (Par. XXXIII, 124-126). Na realidade, ainda
mais impressionante que esta revelação de Deus como círculo trinitário de
conhecimento e amor é a perceção dum rosto humano – o rosto de Jesus Cristo –
que aparece a Dante no círculo central da Luz. (…) Este Deus tem um rosto
humano e – podemos acrescentar – um coração humano».[6] O Papa destacou a
originalidade da visão de Dante na qual se comunica poeticamente a novidade da
experiência cristã, decorrente do mistério da Encarnação: «A novidade dum amor
que impeliu Deus a assumir um rosto humano; mais, a assumir carne e sangue, o
ser humano inteiro».[7]
Por minha vez, na primeira Encíclica,[8] fiz referência a
Dante para expressar a luz da fé, citando um verso do Paraíso onde ela é
descrita como «a cintila / que se dilata em chama então vivaz, / e qual astro
no céu, em mim rutila» (Par. XXIV, 145-147). Pelos 750 anos do nascimento do
Poeta, quis honrar a sua memória com uma mensagem, almejando que «a figura de
Alighieri e a sua obra sejam novamente compreendidas e valorizadas»; e propunha
que se lesse a Divina Comédia como «um grande itinerário, aliás como uma
verdadeira peregrinação, tanto pessoal e interior, como comunitária, eclesial,
social e histórica»; com efeito, «ela representa o paradigma de cada viagem autêntica
para a qual a humanidade está chamada a abandonar a terra que Dante define “a
jeira que nos torna tão ferozes” (Par. XXII, 151), para chegar a uma nova
condição, marcada pela harmonia, a paz, a felicidade».[9] Por isso, apresentei
a figura do insigne Poeta aos nossos contemporâneos, propondo-o como «profeta
de esperança, anunciador da possibilidade de resgate, da libertação, da mudança
profunda de cada homem e mulher, de toda a humanidade».[10]
Por fim, no dia 10 de outubro de 2020, ao receber a Delegação
da Arquidiocese de Ravena-Cervia por ocasião da abertura do Ano de Dante e
anunciar este documento, sublinhei como a obra de Dante pode ainda hoje
enriquecer a mente e o coração de muitos, sobretudo jovens, que, abeirando-se
da sua poesia «numa forma acessível a eles, constatam, por um lado,
inevitavelmente toda a distância do autor e do seu mundo; mas, por outro,
captam uma ressonância surpreendente».[11]
2. A vida de Dante Alighieri, paradigma da condição humana
Com esta Carta Apostólica, desejo também eu abeirar-me da
vida e obra do ilustre Poeta, para captar precisamente esta ressonância,
manifestando tanto a atualidade como a sua perenidade, e recolher aquelas
advertências e reflexões que ainda hoje são essenciais não apenas para os
crentes mas para toda a humanidade. Com efeito, a obra de Dante é parte
integrante da nossa cultura, remete-nos para as raízes cristãs da Europa e do
Ocidente, representa o património de ideais e valores que também hoje a Igreja
e a sociedade civil propõem como base da convivência humana, na qual podemos e
devemos reconhecer-nos todos irmãos. Sem me embrenhar na complexa história
pessoal, política e judiciária de Alighieri, gostaria de lembrar apenas alguns
momentos e factos da sua existência, pelos quais ele aparece
extraordinariamente próximo de muitos dos nossos contemporâneos e que são
essenciais para compreender a sua obra.
À cidade de Florença, onde nasceu em 1265 e se casou com
Gema Donati gerando quatro filhos, esteve primeiramente ligado por um forte
sentimento de pertença, o qual, por causa de dissensões políticas, com o tempo
se transformou em aberto contraste. Contudo nunca morreu nele o desejo de lá
regressar, não só pelo afeto que continuou em todo o caso a nutrir pela sua
cidade, mas sobretudo para ser coroado poeta lá onde recebera o Batismo e a fé
(cf. Par. XXV, 1-9). No cabeçalho de algumas das suas Cartas (III, V, VI e
VII), Dante define-se como «florentinus et exul inmeritus – florentino
imerecido no exílio», enquanto na carta XIII, dirigida a Cangrande della Scala,
especifica «florentinus natione non moribus – florentino de nascimento, não de
costumes». Guelfo da fação branca, vê-se envolvido no conflito entre Guelfos e
Gibelinos, entre Guelfos brancos e negros, e depois de ter ocupado cargos públicos
cada vez mais importantes até se tornar Prior, em 1302, devido às vicissitudes
políticas adversas, é exilado por dois anos, banido dos cargos públicos e
condenado ao pagamento duma multa. Dante rejeita a sentença, em sua opinião
injusta, e o julgamento contra ele torna-se ainda mais severo: exílio perpétuo,
confiscação dos bens e pena de morte em caso de regresso à terra natal. Assim
começa a dolorosa história de Dante, que tenta em vão poder regressar à sua
amada Florença, pela qual lutara com paixão.
Torna-se assim o exilado, o «peregrino pensativo», caído
numa condição de «penosa pobreza» (Convívio, I, III, 5) que o impele a procurar
refúgio e proteção junto de alguns suseranos locais, entre os quais os
Scaligeri de Verona e os Malaspina na Lunigiana. Nas palavras de Cacciaguida,
antepassado do Poeta, intuem-se a amargura e o desconforto desta nova condição:
«Deixarás toda a cousa que é dileta / mais caramente; e este é dardo tal / que
o arco do exílio antes projeta. / Tu provarás assim sabor a sal / do alheio pão
e como é duro mal / se desça escada alheia ou já se escale» (Par. XVII, 55-60).
Depois, não aceitando as condições humilhantes da amnistia
que lhe teria permitido o regresso a Florença, em 1315 foi de novo condenado à
morte, desta vez, juntamente com os seus filhos adolescentes. A última etapa do
seu exílio foi Ravena, onde foi acolhido por Guido Novello da Polenta, e lá
faleceu – regressava duma missão a Veneza – aos 56 anos, na noite de 13 para 14
de setembro de 1321. A sua sepultura num sarcófago em São Pedro Maior, por trás
do muro externo do antigo claustro franciscano, foi posteriormente transferida
para a adjacente Capela do século XVIII, onde em 1865, depois de atribuladas
vicissitudes, foram colocados os seus restos mortais. O lugar é ainda hoje meta
de inúmeros visitantes e admiradores do insigne Poeta, pai da língua e
literatura italianas.
No exílio, o amor à sua cidade, traído pelos «celerados
florentinos» (Epist. VI, 1), transformou-se em triste saudade. A profunda
desilusão pela queda dos seus ideais políticos e civis, juntamente com a penosa
peregrinação duma cidade para outra à procura de refúgio e apoio não são
alheias à sua obra literária e poética; pelo contrário, constituem a sua raiz
essencial e a motivação de fundo. Quando Dante descreve os peregrinos que se
põem a caminho para visitar os lugares sagrados, de certo modo descreve a sua
condição existencial e manifesta os seus sentimentos mais íntimos: «Oh
peregrinos que partis pensativos...» {Vita Nova, 29 [XL (XLI), 9], v. 1}. O
motivo reaparece mais vezes, por exemplo nestes versos do Purgatório: «Como
romeiros pensativos lançam, / cruzando pela via gente ignota, / apenas um olhar
e não descansam» (XXIII, 16-18). A pungente melancolia de Dante peregrino e
exilado adivinha-se também nos famosos versos do canto VIII do Purgatório: «Era
hora em que a saudade aos navegantes / regressa e os enternece já de cor / o
adeus a amigos doces dito antes» (VIII, 1-3).
Dante, refletindo profundamente sobre a sua situação pessoal
de exílio, incerteza radical, fragilidade, mobilidade contínua, transforma-a,
sublimando-a, num paradigma da condição humana, que se apresenta como um
caminho – mais interior que exterior – sem paragem alguma enquanto não atingir
a meta. Deparamo-nos, assim, com dois temas fundamentais de toda a obra de
Dante: o ponto de partida de todo o itinerário existencial, o desejo, presente
no ânimo humano, e o ponto de chegada, a felicidade, dada pela visão do Amor
que é Deus.
O insigne Poeta, embora atravessando vicissitudes
dramáticas, tristes e angustiantes, nunca se resigna, não sucumbe, nem aceita
suprimir a ânsia de plenitude e felicidade que está no seu coração, e muito
menos se resigna a ceder à injustiça, à hipocrisia, à arrogância do poder, ao
egoísmo que faz do nosso mundo «a jeira que nos torna tão ferozes» (Par. XXII,
151).
3. A missão do Poeta, profeta de esperança
Deste modo, relendo a sua vida sobretudo à luz da fé, Dante
descobre também a vocação e a missão que lhe foram confiadas, de modo que,
paradoxalmente, de homem aparentemente falido e desiludido, pecador e
desanimado, transforma-se em profeta de esperança. Na Carta a Cangrande della
Scala, com extraordinária nitidez, deixa claro o objetivo da sua obra, que se
concretiza e explicita, já não através de ações políticas ou militares, mas
graças à poesia, à arte da palavra que, dirigida a todos, tudo pode mudar: «É
preciso dizer brevemente que a finalidade do todo e da parte é tirar os viventes
nesta existência dum estado de miséria e conduzi-los a um estado de felicidade»
[XIII, 39 (15)]. Tal finalidade desencadeia um caminho de libertação de todas
as formas de miséria e degradação humanas (a «selva escura») e simultaneamente
aponta para a meta derradeira: a felicidade, entendida quer como plenitude de
vida na história quer como bem-aventurança eterna em Deus.
Desta dupla finalidade, deste audacioso programa de vida,
Dante é mensageiro, profeta e testemunha, confirmado na sua missão por Beatriz:
«Por isso, em prol do mundo que mal vive, / ao carro põe os olhos e o que vês /
lá regressado, a tua escrita o arquive» (Purg. XXXII, 103-105). Também o seu
antepassado Cacciaguida o exorta a não desfalecer na sua missão. Ao Poeta, que
recorda brevemente o seu caminho nos três reinos do Além e assinala a
dificuldade de comunicar as verdades que doem e incomodam, o ilustre
antepassado responde: «… A consciência fusca / ou já da própria ou de alheia
vergonha / bem sentirá tua palavra brusca. / E tu porém, sem que a mentir se
ponha, / toda tua visão faz manifesta; / e deixa que se cocem onde hão ronha»
(Par. XVII, 124-129). Um idêntico incitamento a viver com coragem a sua missão
profética é dirigido a Dante, no Paraíso, por São Pedro, quando o Apóstolo,
depois duma tremenda invetiva contra Bonifácio VIII, se dirige ao Poeta desta
forma: «E tu, filho, que voltarás aonde o / mortal peso há de pôr-te, abre a
boca, / e não escondas o que eu não escondo» (Par. XXVII, 64-66).
Assim, na missão profética de Dante, inserem-se também a
denúncia e a crítica contra os crentes, tanto Pontífices como simples fiéis,
que atraiçoam a adesão a Cristo e transformam a Igreja num instrumento em prol
dos próprios interesses, esquecendo o espírito das Bem-aventuranças e a caridade
para com os pequenos e os pobres e idolatrando o poder e a riqueza: «Que quanto
a Igreja guarda, é atributo / todo da gente que por Deus demande; / não de
parentes nem de outro mais bruto» (Par. XXII, 82-84). Mas, através das palavras
de São Pedro Damião, São Bento e São Pedro, o Poeta, ao mesmo tempo que
denuncia a corrupção dalguns setores da Igreja, faz-se porta-voz de uma
renovação profunda e invoca a Providência para que a favoreça e torne possível:
«Mas a alta providência, que a Cipião / foi a romana glória nas mãos pondo, /
cedo virá, em minha conceção» (Par. XXVII, 61-63).
E assim Dante exilado, peregrino, frágil, mas agora forte
pela profunda e íntima experiência que o transformou, renascido graças à visão
que, das profundezas dos infernos, da mais degradada condição humana, o elevou
à própria visão de Deus, ascende a mensageiro duma nova existência, a profeta
duma nova humanidade que anseia pela paz e a felicidade.
4. Dante cantor do desejo humano
Dante é capaz de ler o coração humano em profundidade; e em
todos, mesmo nas figuras mais abjetas e molestas, consegue vislumbrar uma
cintila de desejo de alcançar alguma felicidade, uma plenitude de vida.
Detém-se a escutar as almas que encontra, dialoga com elas, interpela-as para
se adentrar e participar nos seus tormentos ou na sua beatitude. Assim,
partindo da sua condição pessoal, o Poeta faz-se intérprete do desejo que todo
o ser humano tem de continuar o caminho enquanto não chegar ao destino final,
não encontrar a verdade, a resposta aos porquês da existência, enquanto o
coração – como já afirmava Santo Agostinho[12] – não encontrar repouso e paz em
Deus.
No Convívio, analisa precisamente o dinamismo do desejo. «O
desejo supremo de todas as coisas, conferido de início pela natureza, é retornar
ao seu princípio. E como Deus é princípio das nossas almas, (...) a alma deseja
intensamente retornar a Ele. E como um peregrino, que segue um caminho nunca
antes percorrido por ele – quando avista de longe uma casa espera que seja a
hospedaria, acabando depois por verificar que não o é, então deposita a sua
esperança noutra e assim, de casa em casa, até encontrar finalmente a
hospedaria –, a nossa alma, ansiosa por ter entrado no novo e nunca percorrido
caminho desta vida, dirige o olhar para a meta do seu bem supremo, acreditando
encontrá-lo em tudo o que vê e lhe parece ter em si algum bem» (IV, XII,
14-15).
O itinerário de Dante, ilustrado sobretudo na Divina
Comédia, é verdadeiramente o caminho do desejo, da necessidade profunda e
interior de mudar a sua própria vida para poder alcançar a felicidade e, assim,
mostrar a estrada a quem se encontra, como ele, numa «selva escura» e perdeu «a
direita via». Além disso, é significativo que, desde a primeira etapa deste
percurso, o seu guia – o grande poeta latino Virgílio – lhe indique a meta
aonde deve chegar, incitando-o a não ceder ao medo nem ao cansaço: «Mas porque
volves ao ansioso enleio? / Porque não vais ao deleitoso monte / que é razão da
alegria e dela cheio?» (Inf. I, 76-78).
5. Poeta da misericórdia de Deus e da liberdade humana
Trata-se de um caminho que não é ilusório nem utópico, mas
realista e possível, onde todos podem entrar, porque a misericórdia de Deus
oferece sempre a possibilidade de mudar, converter-se, encontrar-se a si mesmo
e encontrar a via para a felicidade. A propósito, são significativos alguns
episódios e personagens da Divina Comédia, que mostram como tal via não esteja
vedada a ninguém na terra; exemplo disso é o imperador Trajano, pagão mas
colocado no Paraíso. Dante justifica esta presença assim: «Regnum coelorum a
violência há de / sofrer de quente amor, viva esperança, / que vence assim a
divinal vontade; / não de homem que homem a vencer se lança, / mas vence-a,
pois quer ela ser vencida, / para vencer então benigna e mansa» (Par. XX,
94-99). O gesto de caridade de Trajano para com uma «viúva» (Par. XX, 45) ou a
«lagrimeta» de arrependimento derramada à hora da morte pelo Buonconte de
Montefeltro (Purg. V, 107) não só mostram a infinita misericórdia de Deus, mas
confirmam também que o ser humano pode sempre, com a sua liberdade, escolher
qual caminho seguir e qual sorte merecer.
Sob esta luz, é significativo o rei Manfredo, colocado por
Dante no Purgatório e que assim recorda o seu fim e a sentença divina: «Depois
que se rompeu minha pessoa / de feridas mortais, eu me rendi, / chorando, a
quem de bom grado perdoa. / Eu horríveis pecados cometi; / mas bondade infinita
tanto abraça / que quem se a ela volta aceitar vi» (Purg. III, 118-123). Parece
quase vislumbrar-se a figura do pai da parábola evangélica, com os braços
abertos pronto a acolher o filho pródigo que volta para ele (cf. Lc 15, 11-32).
Dante faz-se paladino da dignidade de todo o ser humano e da
liberdade como condição fundamental tanto das opções de vida como da própria
fé. O destino eterno do homem – sugere Dante ao narrar-nos as histórias de
tantas personagens, ilustres ou pouco conhecidas – depende das suas escolhas,
da sua liberdade: os próprios gestos diários, aparentemente insignificantes,
têm um alcance que se estende para além do tempo, são projetados na dimensão
eterna. O maior dom de Deus ao homem, para que possa alcançar a meta última, é
precisamente a liberdade, como afirma Beatriz: «O maior dom que Deus em tal
largueza / já fez criando e à sua bondade / mais conformado e esse que mais
preza, / foi ter-se de vontade liberdade» (Par. V, 19-22). Não são afirmações
retóricas e vagas, visto que brotam da existência de quem conhece o preço da
liberdade: «Liberdade ele busca, que é tão cara, / e sabe-o quem por ela a vida
enjeita» (Purg. I, 71-72).
Mas a liberdade – lembra-nos Alighieri – não é fim em si
mesma; é condição para subir continuamente. E o percurso nos três reinos
ilustra-nos plasticamente esta subida até tocar o Céu, alcançar a plena
felicidade. O «alto desejo» (Par. XXII, 61), suscitado pela liberdade, não pode
extinguir-se senão em presença da meta, na visão última e na bem-aventurança:
«E eu que ao termo da ânsia toda vi / me aproximava, tal como devia, / o fim de
tal ardor em mi senti» (Par. XXXIII, 46-48). Depois o desejo faz-se também
oração, súplica, intercessão, canto que acompanha e assinala o itinerário de
Dante, tal como a oração litúrgica cadencia as horas e os momentos da jornada.
A paráfrase do Pai Nosso, que o Poeta propõe (cf. Purg. XI, 1-21), entrelaça o
texto do Evangelho com a experiência pessoal, com as suas dificuldades e
sofrimentos: «Venha a nós do teu reino assim tamanho / a paz, que só por nós
não vamos ter (…). Dá-nos hoje a maná quotidiana, / sem a qual por este áspero
deserto, / atrás vai quem avante mais se afana» (7-8.13-15). A liberdade de
quem acredita em Deus como Pai misericordioso não pode senão confiar-se a Ele
na oração, não sendo por isso minimamente lesada, mas antes reforçada.
6. A imagem do homem na visão de Deus
No itinerário da Divina Comédia, como já sublinhava o Papa
Bento XVI, o caminho da liberdade e do desejo não traz consigo – como
porventura se poderia imaginar – uma redução do humano na sua realidade
concreta, não aliena a pessoa de si mesma, não anula nem negligencia o que
constituiu a sua existência histórica. Com efeito, mesmo no Paraíso, Dante
representa os bem-aventurados – as «alvas» (Par. XXX, 129) – no seu aspeto
corpóreo, evoca os seus afetos e emoções, os seus olhares e gestos, em resumo,
mostra-nos a humanidade na sua perfeição completa de alma e corpo, prefigurando
a ressurreição da carne. São Bernardo, que acompanha Dante no último trecho do
caminho, mostra ao Poeta as crianças presentes na rosa dos bem-aventurados e
convida-o a observá-las e ouvi-las: «Dos rostos podes vê-lo se os perscrutas /
e também pelas vozes pueris, / se já os bem contemplas e os escutas» (Par.
XXXII, 46-48). Resulta comovente ver como esta manifestação dos bem-aventurados
na sua luminosa humanidade integral é motivada não só por sentimentos de afeto
pelos seus entes queridos, mas sobretudo pelo desejo explícito de voltar a ver
os seus corpos, as feições terrenas: «Seus corpos desejando antes da morte; /
talvez não só por si, mas pela mãe, / pelo pai, pelos mais que cada amava, /
antes de eterna chama ser também» (Par. XIV, 63-66).
E, finalmente, no centro da visão última, no encontro com o
Mistério da Santíssima Trindade, Dante vislumbra precisamente um Rosto humano,
o de Cristo, da Palavra eterna feita carne no seio de Maria: «E na profunda e
clara subsistência / do alto lume três círculos vi vir / de três cores e de uma
continência (...). Nessa circulação, que assim concepta / parecia em ti lume
refletido, / dos olhos meus um pouco circunspecta, / dentro de si, do próprio
colorido, / me apareceu pintada nossa efígie» (Par. XXXIII 115-117.127-131). Só
na visão de Deus se aplaca o desejo do homem, e termina todo o seu fatigoso
caminho: «Então a mente me era percutida / por um fulgor em que seu querer
veio. / Foi a alta fantasia aqui colhida» (Par. XXXIII, 140-142).
O mistério da Encarnação, que hoje celebramos, é o
verdadeiro centro inspirador e o núcleo essencial de todo o poema. Nele
realiza-se o que os Padres da Igreja chamavam «divinização», admirabile
commercium – o prodigioso intercâmbio, pelo qual, ao mesmo tempo que Deus entra
na nossa história fazendo-Se carne, o ser humano, com a sua carne, pode entrar
na realidade divina, simbolizada pela rosa dos bem-aventurados. A humanidade,
na sua realidade concreta, com os gestos e as palavras diárias, com a sua
inteligência e afetos, com o corpo e as emoções, é assumida em Deus, no Qual
encontra a verdadeira felicidade e a realização plena e última, meta de todo o
seu caminho. Dante havia desejado e previsto esta meta no início do Paraíso:
«Mais o desejo aceso então surgiu / de ver aquela essência em que se vê / como
nossa natura e Deus se uniu. / Lá se verá o que se tem por fé, / não
demonstrado, mas por si é noto / qual verdade primeira que o homem crê» (Par.
II, 40-45).
7. As três mulheres da Divina Comédia: Maria, Beatriz, Luzia
Cantando o mistério da Encarnação, fonte de salvação e
alegria para toda a humanidade, Dante não pode deixar de cantar os louvores de
Maria, a Virgem Mãe que, com o seu «sim», com a sua aceitação plena e total do
projeto de Deus, torna possível que o Verbo Se faça carne. Na obra de Dante,
encontramos um tratado estupendo de mariologia: com acentuações líricas
sublimes, particularmente na oração pronunciada por São Bernardo, sintetiza
toda a reflexão teológica sobre Maria e a sua participação no mistério de Deus:
«Virgem e mãe, que és filha de teu filho, / humilde e alta mais que criatura, /
de eterno querer termo fixo e brilho, / aquela és que a humanal natura / tanto
nobilitaste, que o fator / não desdenhou fazer de si feitura» (Par. XXXIII,
1-6). O oximoro inicial e a sucessão de termos antitéticos destacam a originalidade
da figura de Maria, a sua beleza singular.
São Bernardo, mostrando os bem-aventurados colocados na rosa
mística, convida Dante a contemplar Maria, que deu as feições humanas ao Verbo
Encarnado: «Contempla agora a face tal que a Cristo / mais se assemelha, pois
sua clareza / só te pode dispor a veres Cristo» (Par. XXXII, 85-87). O mistério
da Encarnação é de novo evocado pela presença do Arcanjo Gabriel. Dante
pergunta a São Bernardo: «Quem é esse anjo em tão festivo jogo / que na nossa
rainha o olhar atina, / e tão enamorado é quase fogo?» (Par. XXXII, 103-105). E
o Santo responde: «Ele é esse que levou a palma / lá a Maria quando o Filho de
Deus / quis carregar com toda a nossa xalma» (Par. XXXII, 112-114). A
referência a Maria é constante em toda a Divina Comédia. Ao longo do percurso
no Purgatório, é o modelo das virtudes que se opõem aos vícios; é a estrela da
manhã que ajuda a sair da selva escura para se encaminhar rumo ao monte de
Deus; é a presença constante, através da sua invocação («Nome da bela flor que
sempre rogo, / manhã e tarde, …»: Par. XXIII, 88-89), que prepara para o
encontro com Cristo e com o mistério da Deus.
Dante, que nunca está sozinho no seu caminho, mas se deixa
guiar primeiro por Virgílio, símbolo da razão humana, e depois por Beatriz e
São Bernardo, agora, graças à intercessão de Maria, pode chegar à pátria e
gozar a alegria plena desejada em cada momento da existência: «… e ainda me
distila / ao coração dulçor que lhe começa» (Par. XXXIII, 62-63). Não nos
salvamos sozinhos (parece repetir-nos o Poeta, consciente da sua
insuficiência): «Por mim próprio não venho» (Inf. X, 61); é necessário que o
caminho seja empreendido em companhia de quem nos possa apoiar e guiar com
sabedoria e prudência.
Neste contexto, resulta significativa a presença feminina.
No início do fatigoso itinerário, Virgílio – o primeiro guia – conforta e
encoraja Dante a prosseguir, porque três mulheres intercedem por ele e o hão de
guiar: Maria, a Mãe de Deus, figura da caridade; Beatriz, símbolo de esperança;
Santa Luzia, imagem da fé. Com palavras comoventes, assim se apresenta Beatriz:
«Eu sou Beatriz, ora a fazer-te andar; / do lugar venho a que voltar pretendo,
/ e amor me move, que me faz falar» (Inf. II, 70-72), afirmando que a única
fonte que nos pode dar a salvação é o amor, o amor divino que transfigura o
amor humano. Depois Beatriz remete para a intercessão doutra mulher, a Virgem
Maria: «Uma gentil senhora no céu plange / o impedimento a que enviar-te
entendo, / e o mais duro juízo assim confrange» (Inf. II, 94-96). Depois
intervém Luzia, que se dirige a Beatriz: «Beatriz, divina loa verdadeira, /
pois não socorrerás quem te amou tanto, / que abandonou por ti vulgar fileira?»
(Inf. II, 103-105). Dante reconhece que somente quem é movido pelo amor pode
verdadeiramente apoiar-nos no caminho e levar-nos à salvação, ao renovamento da
vida e, consequentemente, à felicidade.
8. Francisco, esposo da senhora Pobreza
Na cândida rosa dos bem-aventurados, em cujo centro brilha a
figura de Maria, Dante coloca também numerosos santos, cuja vida e missão
esboça, para os propor como figuras que, na realidade concreta da sua
existência e mesmo através de numerosas provações, alcançaram a finalidade da
sua vida e da sua vocação. Mencionarei brevemente apenas a figura de São
Francisco de Assis, ilustrada no canto XI do Paraíso, onde se fala dos
espíritos sapientes.
Existe uma profunda sintonia entre São Francisco e Dante: o
primeiro, juntamente com os seus companheiros, saiu do convento e foi para o
meio do povo, pelas estradas de aldeias e cidades, pregando ao povo, parando
nas casas; o segundo fez a escolha, então incompreensível, de usar no grande
poema do Além a linguagem de todos e povoando a sua narração com personagens
conhecidos e menos conhecidos, mas completamente iguais em dignidade aos
poderosos da terra. Outro traço une os dois personagens: a abertura à beleza e
ao valor do mundo das criaturas, espelho e «vestígio» do seu Criador. Como não
reconhecer nestes versos da paráfrase de Dante ao Pai-Nosso – «sejas louvado em
nome e em valor / por toda a criatura…» (Purg. XI, 4-5) – uma referência ao
Cântico das Criaturas de São Francisco?
No canto XI do Paraíso, essa consonância aparece com um novo
aspeto, que os torna ainda mais semelhantes. A santidade e a sabedoria de
Francisco sobressaem precisamente porque Dante, olhando do céu a nossa terra,
vislumbra a tacanhez de quem confia nos bens terrenos: «Ó cuidar insensato dos
mortais, / por quantos defetivos silogismos / fazem que asas ao fundo a dar tu
vais!» (Par. XI, 1-3). Toda a história ou, melhor, a «vida admirável» do santo
assenta sobre a sua relação privilegiada com a senhora Pobreza: «Mas por que eu
não pareça assaz escuso, / Francisco e a Pobreza por amantes / entendas ora em
meu falar difuso» (Par. XI, 73-75). No canto de São Francisco, recordam-se os
momentos salientes da sua vida, as suas provações e por fim o acontecimento no
qual a sua configuração a Cristo, pobre e crucificado, encontra a sua extrema,
divina confirmação na marca dos estigmas: «Porque de mais azeda já observa / a
gente à fé, por não ficar em vão, / ao fruto regressou da ítala erva, / e entre
Arno e Tibre em cru penedo então / foi ter de Cristo o último sigilo, / que
dois anos seus membros levarão» (Par. XI, 103-108).
9. Acolher o testemunho de Dante Alighieri
No final deste olhar sintético à obra de Dante Alighieri,
uma mina quase infinita de conhecimentos, experiências, considerações em todos
os campos da pesquisa humana, impõe-se uma reflexão. A riqueza de figuras, narrações,
símbolos, imagens sugestivas e atraentes que Dante nos propõe suscita
certamente admiração, maravilha, gratidão. Nele podemos quase entrever um
precursor da nossa cultura multimediática, na qual palavras e imagens, símbolos
e sons, poesia e dança se fundem numa única mensagem. Assim se compreende por
que o seu poema tenha inspirado a criação de inúmeras obras de arte de todo o
género.
Mas a obra do insigne Poeta suscita também alguns desafios
para os nossos dias. Que poderá ela comunicar-nos, no nosso tempo? Terá ainda
algo a dizer-nos, a oferecer-nos? Terá a sua mensagem alguma função a
desempenhar também para nós na atualidade? Poderá ainda interpelar-nos?
Hoje Dante – tentemos fazer-nos intérpretes da sua voz – não
nos pede para ser simplesmente lido, comentado, estudado, analisado. Pede-nos
sobretudo para ser escutado, ser de certo modo imitado, fazer-nos seus
companheiros de viagem, porque quer-nos mostrar também hoje qual é o itinerário
para a felicidade, a direita via para viver plenamente a nossa humanidade,
superando as selvas escuras onde perdemos a orientação e a dignidade. A viagem
de Dante e a sua visão da vida além da morte não são simplesmente objeto duma
narração, não constituem apenas um acontecimento pessoal, embora excecional.
Se Dante conta tudo isto (e fá-lo de maneira admirável),
usando a linguagem vulgar do povo, a língua que todos podiam compreender,
elevando-a a língua universal, é porque tem uma mensagem importante a
transmitir-nos, uma palavra que quer tocar o nosso coração e a nossa mente,
destinada a transformar-nos e mudar-nos já agora, nesta vida. É uma mensagem
que pode e deve tornar-nos plenamente conscientes daquilo que somos e daquilo
que vivemos dia após dia na tensão interior e contínua para a felicidade, para
a plenitude da existência, para a pátria última onde estaremos em plena
comunhão com Deus, Amor infinito e eterno. Embora Dante seja um homem do seu
tempo e possua sensibilidade diferente da nossa em alguns assuntos, todavia o
seu humanismo é ainda válido e atual e pode certamente constituir um ponto de
referência para aquilo que queremos construir no nosso tempo.
Por isso, aproveitando esta ocasião propícia do centenário,
é importante que a obra de Dante seja dada a conhecer ainda melhor e de maneira
mais adequada, isto é, seja tornada acessível e atraente não só para alunos e
estudiosos, mas também para todos aqueles que, ansiosos por dar resposta às
questões interiores, desejosos de realizar em plenitude a sua existência,
querem viver o seu itinerário de vida e de fé de forma consciente, acolhendo e
vivendo com gratidão o dom e o compromisso da liberdade.
Congratulo-me naturalmente com os professores que são
capazes de comunicar com paixão a mensagem de Dante, introduzir no tesouro
cultural, religioso e moral contido nas suas obras. Mas este património pede
para ser tornado acessível fora das aulas das escolas e universidades.
Exorto as comunidades cristãs, sobretudo as estabelecidas
nas cidades que conservam as memórias de Dante, as instituições académicas, as
associações e os movimentos culturais a promoverem iniciativas visando o
conhecimento e a difusão da mensagem de Dante na sua plenitude.
De maneira particular encorajo os artistas a dar voz, rosto
e coração, a dar forma, cor e som à poesia de Dante, ao longo da via da beleza
que ele percorreu magistralmente; e assim comunicar as verdades mais profundas
e, com as linguagens próprias da arte, difundir mensagens de paz, liberdade,
fraternidade.
Neste momento histórico particular, marcado por muitas sombras,
por situações que degradam a humanidade, por falta de confiança e de
perspetivas para o futuro, a figura de Dante, profeta de esperança e testemunha
do desejo humano de felicidade, pode ainda dar-nos palavras e exemplos que
estimulam o nosso caminho. Pode ajudar-nos a avançar, com serenidade e coragem,
na peregrinação da vida e da fé que todos somos chamados a realizar até o nosso
coração encontrar a verdadeira paz e a verdadeira alegria, até chegarmos à meta
última de toda a humanidade, «o amor que move o sol e as mais estrelas» (Par.
XXXIII, 145).
Vaticano, na solenidade da Anunciação do Senhor, 25 de março
do ano de 2021, nono do meu pontificado.
Francisco
[*] Usou-se a tradução portuguesa da obra bilingue de VASCO
GRAÇA MOURA, A Divina Comédia de Dante Alighieri, Bertrand Editora – Venda
Nova, 52000.
[1] Carta enc. In praeclara summorum (30 de abril de 1921):
AAS 13 (1921), 209-217
[2] Cf. ibidem: o. c. 210
[3] Epistola Nobis, ad Catholicam (28 de outubro de 1914):
AAS 6 (1914), 540.
[4] Discurso ao Sacro Colégio e à Prelatura Romana (23 de
dezembro de 1965): AAS 58 (1966), 80
[5] Cf. AAS 58 (1966), 22-37.
[6] Discurso aos participantes no Encontro promovido pelo
Pontifício Conselho «Cor Unum» (23 de janeiro de 2006): Insegnamenti 2006,
II/1, 92-93.
[7] Ibidem: o. c., 93.
[8] Cf. Carta enc. Lumen fidei (29 de junho de 2013), 4: AAS
105 (2013), 557.
[9] Mensagem ao Presidente do Pontifício Conselho para a
Cultura (4 de maio de 2015): AAS 107 (2015), 551-552.
[10] Ibidem: o. c., 552.
[11] L’Osservatore Romano (10 de outubro de 2020), 7.
[12] Cf. Confissões, I, 1, 1: PL 32, 661.