Estação Primeira de
Mangueira em 2020 mais “um recado”.
Campeã
do carnaval de 2019 vai pisar na Sapucaí com o enredo 'A verdade vos fará
livre'.
Em
2019 a escola recontou a história do Brasil a partir de heróis negros e índios.
A mídia já divulga a
ousadia da Mangueira, com títulos diversos:
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“Teologia da Libertação será tema da Mangueira em 2020”
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“Enredo 2020 da Mangueira traz Cristo histórico contra a intolerância “A
verdade vos fará livre””
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“Mangueira terá como tema em 2020 a volta de Jesus em um mundo intolerante”
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“Mangueira apresentará o verdadeiro Jesus Cristo ao Brasil”
Sinopse 2020 (fonte
site da Mangueira)
Nasceu pobre e sua pele nunca foi tão branca quanto sugere sua imagem
mais popular. Sem posses e mais retinto do que lhe foi apresentado, andou ao
lado daqueles que a sociedade virou as costas oferecendo-lhes sua face mais
amorosa e desprovida de intolerância. Sábio, separou o joio do trigo, semeou
terrenos férteis e jamais deixou uma ovelha sequer para trás.
Exaltou os humildes e condenou o acúmulo de riqueza. Insurgiu-se contra
o comércio da fé e desafiou a hipocrisia dos líderes religiosos de seu tempo.
Questionou o poder do império romano e condenou a opressão. Seu comportamento
pacifista e suas ideias revolucionárias inflamaram o discurso dos algozes que
passaram a excitar o estado a decretar sua sentença. O fim todos sabemos: Foi
torturado, padeceu e morreu.
Séculos depois, sua trajetória ainda anda na boca dos homens e em seu
nome, para o mal dito “de bem” – e com rígido contorno de moralidade - muito já
foi realizado de forma estanque ao sentido mais completo do AMOR por ele
difundido. O amor incondicional, irrestrito e ágape.
Por isso, quando preso à cruz, ele não pode ser apresentado como um. Ser
um, exclui os demais. Preso à cruz, ele é a extensão de tantos, inclusive
daqueles que a escolha pelo modelo “oficial” quis esconder. Sendo assim,
sua imagem humana não pode ser apenas branca e masculina. Na cruz, ele é homem
e é também mulher. Ele é o corpo indígena nu que a igreja viu tanto pecado e
nenhuma humanidade. Ele é a ialorixá que professa a fé apedrejada e
vilipendiada. Ele é corpo franzino e sujo do menor que você teme no momento em
que ele lhe estende a mão nas calçadas. Na cruz, ele é também a pele preta de
cabelo crespo. Queiram ou não queiram, o corpo andrógino que te causa
estranheza, também é a extensão de seu corpo.
Sem anunciar o inferno, ele prometeu que voltaria. Acredito que, se ele
voltasse à terra por uma encosta que toca o céu - para nascer da mesma forma:
pobre e mais retinto, criado por pai e mãe humilde, para viver ao lado dos
oprimidos e dar-lhes acolhimento - ele desceria pela parte mais íngreme de
uma favela qualquer dessa cidade. Talvez na Vila Miséria*, região mais
alta e habitada do Morro de Mangueira. Ali, uma estrela iluminaria a sala sem
emboço onde ele nasceria menino outra vez. Então, ele cresceria entre os becos
da Travessa Saião Lobato*, correria junto das crianças da Candelária*,
espalharia suas palavras no Chalé* e no "Pindura" Saia*. Impediria
que atirassem pedras contra os que vivem nas quebradas e nos becos do Buraco Quente*.
Estaria do lado dos sem eira e nem beira estranhando ver sua imagem erguida
para a foto postal tão distante, dando as costas para aqueles onde seu abraço é
tão necessário.
Se sobrevivesse às estatísticas destinadas aos pobres que nascem em
comunidades, chegaria aos 33 anos para morrer da mesma forma. Teria a morte
incentivada pelas velhas ideias que ainda habitam os homens. O amor irrestrito
ainda assusta. A diferença jamais foi entendida. Estender a mão ao oprimido
ainda causa estranheza. Seria torturado com base nas mesmas ideias.
Morto, ressuscitaria mais uma vez e, por ter voltado em Mangueira,
saudaríamos a possibilidade de vermos seu sorriso amoroso novamente com o que
aqui fazemos de melhor. Louvaríamos sua presença afetuosa com samba e batucada.
Vestiríamos todos nossa roupa mais cara. Aquela de paetês e purpurina. De cetim
com joias falsas. Desfilaríamos diante dele e, em seu louvor, instauraríamos a
lei que rege nossos três dias de folia. Sem pecado, irmanados e em pleno estado
de graça.
Explicaríamos nessa ocasião que a cruz pesada que carregamos como fardo
ao longo do ano nos é tirada das costas no carnaval. Por ter vencido a morte e
sem ter o peso de sua cruz nas costas, ele sorri para a baiana que desce para
se apresentar. Ele acena com a mão direita para a passista que amarra a
sandália, enquanto a mão esquerda dá a benção para o ritmista que rompe o
silencio com a levada de seu tamborim.
Fitando o céu, ele parece ver algo ou alguém acima da linha do horizonte
. Sorri, como se pego em meio a brincadeira e se soubesse humano também.
Entendendo que ali ele é rebento e que todos, sem exceção, são seu rebanho;
ciente de que o pecado, por vezes, é invenção para garantir medo e servidão,
ele pede para que toda essa gente que brinca anuncie enquanto canta sorrindo: A
VERDADE VOS FARÁ LIVRE.
Vila Miséria* Travessa Saião Lobato* Candelária* Chalé* Pindura
Saia* Buraco Quente* - Todos os nomes referem-se a localidades ocupadas pela
comunidade do Morro da Mangueira.
Rio de Janeiro, Julho de 2019.
PESQUISA, DESENVOLVIMENTO E TEXTO: LEANDRO VIEIRA