01 maio, 2021

Ser voz profética nos 'desertos' que ameaçam a dignidade da vida: eis um desafio decisivo para o ser cristão.

Profetas são como uma voz incômoda de Deus ou uma voz eloquente dos sem-voz
Cuidemos de escutar o grito dos oprimidos! (Unsplash/Shail Sharma)

Edward Guimarães*

Em 1971, em contexto de violenta ditadura militar, dom Helder Câmara expressou em um poema, de forma profética e paradigmática, o imperativo ético da liberdade e da dignidade humana, no qual declarou a beleza de ser um "acendedor de esperanças":

"Deixa-me acender cem vezes, mil vezes,
um milhão de vezes a esperança
que ventos perversos e fortes teimam em apagar.
Que grande e bela profissão: acendedor de esperança"

Nada mais profético do que acender, ainda que frágeis, chamas de esperança para iluminar quem encontra-se mergulhado na escuridão. Não é tarefa simples, mas necessária, em determinados contextos sombrios – como o que atravessamos na atual conjuntura sociopolítica, econômica e religiosa da cultura brasileira – acender as esperanças de quem se encontra abatido pelo peso das cruzes que carrega e, totalmente, ébrio por misturar tantos e contínuos copos de diferentes doses de pessimismo. Em tempos assim, com tanto medo da violência dos poderosos, os profetas gritam: "deixemos o pessimismo para os dias melhores"! Esta frase foi pichada por anônimos e proféticos trabalhadores nos muros de Bogotá, na Colombia, em contexto de intensa violência contra qualquer protesto, grito ou sinal de rebelião popular contra o status quo.

Graças às narrativas dos quatro evangelhos, basta ler os capítulos iniciais de Mateus, Marcos, Lucas e João, João Batista, filho de Zacarias e Isabel, entrou para a Tradição cristã como o precursor, como o que preparou os caminhos para o advento da práxis libertadora de Jesus. Não é aleatório que os Evangelhos, inspirados pelos escritos do profeta Isaias, apresentem João, o batista, como uma "voz de quem clama no deserto". Uma voz que simultaneamente anunciava a presença atuante de Deus no meio de nós como interpelação ética e denunciava, corajosamente, o que se apresentava como a mais grave entre as ameaças à dignidade da vida humana: a ação injusta dos poderosos que procuram submeter, abafar e definitivamente silenciar a voz dos marginalizados, o grito dos oprimidos. Por isso João teve, assim como Jesus e quase todos os profetas e profetisas da história, um fim trágico: foi cruentamente silenciado. Não obstante a isso, os profetas são acolhidos e lembrados como uma voz incômoda de Deus ou, o que é o mesmo, uma voz eloquente dos sem-voz.

Toda religião – como também cada sociedade, no nível macro, e cada família, no nível micro – se concretiza por meio de relações sociais entre as pessoas envolvidas. E onde há relações humanas, há o exercício do poder. Nesse sentido, pode-se afirmar que não há religião autêntica, o cristianismo não é exceção, sem uma boa política (exercício do poder coletivo como busca e garantia do bem comum), sem acolher e bem cuidar do direito à voz de cada membro, garantindo, desse modo, o espaço de manifestação, e oxalá de escuta, de sua incômoda dimensão profética. Incômoda para os poderosos, pois, o profetismo entende e legitima o poder enquanto serviço aos necessitados e garantia do bem comum, e não como forma de domínio do mais forte e do mais esperto sobre os demais. O profeta será sempre, em certa medida, uma voz dos oprimidos e, por isso, inevitavelmente, baterá de frente, e não sem consequências, com os que oprimem o povo.

O primeiro chamado que continuamente emana do desafio diário de ser cristão é o de assumir e cuidar da busca infinda de ser cada vez mais humano. Talvez porque somente quem assumiu como projeto de vida o processo contínuo de se humanizar, tendo desse modo a sensibilidade aguçada e à flor da pele, consegue discernir-perceber-acolher-responder como necessidade vital o cultivo cotidiano da centralidade do amar. Amar, o verbo da vida verdadeiramente humana, é decisão ética – no contexto atual infelizmente amar, apesar de realidade crucial, apresenta-se frequentemente como vivência banal sem grandes implicações no modo como se concretizam as relações entre as pessoas – que exige de quem ama, no contexto em que vive, assumir o desafio responder às urgências vivais ao seu redor: como garantir que a dignidade de cada pessoa e, hoje percebemos cada vez mais, a vitalidade de cada ecossistema, sejam bem cuidadas e reverenciadas como realidade preciosas na busca do bem viver? Como dizer que amamos uns aos outros, com tamanha desigualdade social e esta cultura da indiferença social, sem um compromisso coletivo de busca contínua do bem-viver e conviver?

Temos que afirmar que só ama verdadeiramente quem é livre e quem acolhe e legitima a igual liberdade e dignidade da/o amada/o. Acontece que só pode ser livre quem, de fato, tem o direito a ter voz reconhecido e garantido. Não há autêntico amor pessoal, familiar e social sem que se concretize a acolhida da liberdade e dignidade do outro, sem diálogo e respeito mútuo.

Que em nossos discernimentos, procuremos dar ouvidos à voz dos profetas e profetisas de nosso tempo, e dar voz aos silenciados? Cuidemos de escutar o grito dos oprimidos! Cuidemos, como bons "acendedores de esperança", da educação de nossos filhos para o diálogo e a defesa da justiça social: não há outro caminho para a paz, para a construção de um tempo novo!

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*Edward Guimarães é teólogo leigo. Doutor em Ciências da Religião pela PUC Minas e mestre em Teologia pela FAJE. Professor de Teologia do Centro Loyola de Espiritualidade, Fé e Cultura e do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas, onde atua como secretário executivo do Observatório da Evangelização. Assessor das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), movimentos populares, pastorais sociais e membro do Conselho Pastoral Arquidiocesano (CPA) e da atual diretoria da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (Soter).

Fonte: dom total