26 junho, 2019

Morre aos 105 anos Elzita Santa Cruz, após 45 anos de busca por notícias do filho desaparecido na ditadura

"É justo, é humano, é cristão que um órgão de segurança encarcere, depois de sequestrar, um jovem que trabalhava e estudava, sem que à sua família seja dada qualquer informação sobre o seu paradeiro e as acusações que lhe são imputadas? Que direi ao meu neto quando jovem for e quando me indagar que fim levou o seu pai, se ele não tiver a felicidade de ver seu regresso? Direi que foi executado sem julgamento? Sem defesa? Às escondidas, por crime que não cometeu?", escreveu ela em carta ao marechal Juarez Távora, em maio de 1974.

Comissão da Verdade de Pernambuco entrega relatório do caso dos desaparecidos Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier aos familiares. Na foto, Dona Elzita Santa Cruz Foto: Hans Von Manteuffel / Agência O Globo


Elzita Santa Cruz Oliveira morreu, na madrugada desta terça-feira, aos 105 anos , sem uma resposta definitiva para uma pergunta que fazia há 45: "Onde está meu filho?". Desde 1974, quando o então estudante de Direito da UFF Fernando Santa Cruz foi preso por órgãos de repressão da ditadura militar, ela buscava notícias em cartas a ministros, apelos a generais e súplicas a presidentes.

"É justo, é humano, é cristão que um órgão de segurança encarcere, depois de sequestrar, um jovem que trabalhava e estudava, sem que à sua família seja dada qualquer informação sobre o seu paradeiro e as acusações que lhe são imputadas? Que direi ao meu neto quando jovem for e quando me indagar que fim levou o seu pai, se ele não tiver a felicidade de ver seu regresso? Direi que foi executado sem julgamento? Sem defesa? Às escondidas, por crime que não cometeu?", escreveu ela em carta ao marechal Juarez Távora, em maio de 1974.

A espera por Fernando fez a mãe resistir a qualquer mudança: a casa e o número de telefone permaneceram os mesmos quatro décadas depois do desaparecimento. Também manteve o quarto do filho. Ela ainda aguardava um contato. Numa iniciativa de manter viva a sua luta, a família lançou, em 1984, o livro "Onde está meu filho?", que relata a busca de Elzita por informações sobre Fernando.

A dor e a saudade se misturaram ao alívio quando a família recebeu a primeira confirmação oficial da prisão de Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, após 40 anos, em março de 2014. "20 de fevereiro de 1948. Casado. Citado por militantes presos como membro da Ação Popular Marxista-Leninista (APML)", dizia o ofício RPB 655/A2-Comcos do Ministério da Aeronáutica, classificado como secreto. Ele tinha 26 anos.

Fernando, que havia se mudado para São Paulo, onde trabalhou no Departamento de Água e Energia Elétrica do estado até a véspera da prisão, estava no Rio para festejar o aniversário do irmão Marcelo. Devido ao novo endereço, ele pleiteava uma transferência da UFF para a USP. Após rever a família, Fernando saiu às 16h para encontrar o amigo Eduardo Collier e marcou de ir ao cinema às 18h com sua mulher, Ana Lúcia Valença. Não apareceu. Era sábado de carnaval, e nunca mais se soube de Fernando e Eduardo.

Filhos de Elzita, Marcelo Santa Cruz teve cassado o direito de estudar no Brasil e Rosalina (irmã mais velha) ficou um ano presa, sofreu um aborto provocado pela violência, por choques elétricos. Mas Marcelo classificou o caso de Fernando como o "mais perverso".

— Esse crime é permanente, não prescreve, não acaba nunca — destacou ele ao GLOBO, em 2014.

'Sua luta terminou inconclusa'

O neto Felipe Santa Cruz, filho de Fernando, e hoje presidente da OAB Nacional, disse ao GLOBO em 2014 que via a avó como um símbolo de coragem.

— Ela teve o cuidado de não deixar esquecer que o desaparecimento dele é uma questão política. Ela não se restringiu ao sofrimento, à dor interna, mas transformou Fernando em alguém importante para a história de um período do país. Ele não era guerrilheiro, não vivia clandestinamente. Minha avó mostrou que ele poderia ser o filho de qualquer mãe.

Nesta terça-feira, pelo Twitter, Felipe destacou que a família se despedia "de sua matriarca, uma mulher forte e que tão pequena parecia gigantesca". Ressaltou que a avó "foi em vida a concreta manifestação da força da mulher nordestina".

"Ela não me perdoaria se eu deixasse de dizer que sua maior luta terminou inconclusa: não recuperou o corpo de seu amado filho, coitadas das almas dos que lhe negaram esse sagrado direito", destacou o advogado.

Em nota, o governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), prestou solidariedade à família e aos amigos de quem classificou como "mulher guerreira".

"Dona Elzita foi incansável na busca por direitos humanos e justiça para seu filho Fernando e para outras vítimas da ditadura. A sua dedicação a essas causas seguirá nos inspirando", disse o governador.

Segundo a imprensa local, Dona Elzita será velada nesta terça-feira, na Câmara Municipal de Olinda, e cremada no dia seguinte, em Paulista, na Região Metropolitana de Recife.

 Fonte: O Globo  

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