14 agosto, 2019

É preciso enfrentar o clericalismo antes de tentar reformar o sacerdócio

Infelizmente não são apenas os clérigos (bispos e padres) que são  clericais, existem também leigas e leigos, que age como se fossem senhores feudais em uma sociedade feudal.
  
clericalismo é “uma expectativa, que leva a abusos de poder, de que os ministros ordenados sejam e devam ser melhores do que qualquer outra pessoa do Povo de Deus”.




“Os leigos, o clero e a Igreja, todos sofrem com a cultura do clericalismo. Ela distorce as nossas relações humanas e corrompe o corpo de Cristo. E o pior de tudo: ela não é fiel à visão de Cristo.”

O comentário é do advogado e padre aposentado Peter Daly, da Arquidiocese de Washington, nos EUA. Após 31 anos de serviço paroquial, ele trabalha hoje com instituições de caridade católicas. O artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 13-08-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Se o sacerdócio deve ser reformado, devemos enfrentar a doença do clericalismo. Não será fácil. O clericalismo está tão profundamente enraizado em nossas estruturas e em nosso modo de pensar que quase não conseguimos imaginar como as coisas poderiam ser de outra forma.

Em sua “Carta ao Povo de Deus” de 2018, o Papa Francisco condenou os pecados de abuso sexual e de abuso de poder na Igreja. Ele ligou esses pecados ao clericalismo. “Dizer não ao abuso é dizer não com força a todas as formas de clericalismo.”

O que é clericalismo?

Associação dos Padres Católicos dos EUA publicou um “white paper” sobre o clericalismo em junho de 2019 [disponível aqui, em inglês]. Ele define que o clericalismo é “uma expectativa, que leva a abusos de poder, de que os ministros ordenados sejam e devam ser melhores do que qualquer outra pessoa do Povo de Deus”.

Em outras palavras: os clérigos (bispos e padres) são formados frequentemente para pensar que são separados e postos acima de todos os demais membros da Igreja. Sua palavra não deve ser questionada. Seu comportamento não deve ser questionado. Seu estilo de vida não é questionado. Eles governam a Igreja como se fossem senhores feudais em uma sociedade feudal. Muitas vezes é assim que eles se veem – como senhores do feudo, até mesmo com brasões, títulos de nobreza e todas as regalias que acompanham a “superioridade”.

Não são apenas clérigos que são clericais. Os leigos geralmente fomentam o clericalismo ao sempre fazerem deferência ao “Padre” e colocando o “Padre” em um pedestal. O clericalismo é experimentado em milhares de palavras e ações que se somam a uma “cultura” ou atmosfera. O clericalismo se mostra quando:

- os seminaristas dizem que são chamados para “os cálices, e não para os calos” (em outras palavras, nada de trabalho físico);

- as pessoas dizem: “Nada está bom para o Padre”, ou: “O Padre nunca paga nada”;

- padres e bispos gastam enormes quantias de dinheiro da paróquia e da diocese consigo mesmos, sem nenhum controle. Por exemplo, redecorando a casa paroquial, construindo uma nova residência episcopal, fazendo viagens de luxo às custas da Igreja ou dando generosos presentes uns aos outros com o dinheiro da Igreja;

- quando o padre diz: “Esta é a minha paróquia. Ame-a ou deixe-a”.

- quando os seminaristas universitários de 18 anos usam roupas clericais para se diferenciarem;

- quando os pais dizem a seus filhos: “Nunca questione um padre”;

- quando as pessoas dizem que “os padres estão perto de Deus”;

- quando os bispos priorizam evitar o escândalo em vez de proteger as vítimas de abuso pelos padres;

- quando paróquias prósperas são fechadas porque há falta de padres, quando há diáconos e leigos prontamente disponíveis para manter a comunidade em atividade.

Todas essas coisas são sintomas de clericalismo. A cultura do clericalismo pode ter consequências terríveis.

Grande Júri da Pensilvânia em 2018, instituído para estudar o abuso sexual clerical, deu alguns exemplos notórios de padres e bispos que foram protegidos das consequências do abuso sexual por uma “cultura” de clericalismo. Padres eram rotineiramente transferidos a fim de evitar escândalos, mas nada era feito para alertar as pessoas nas suas novas sedes. Padres voltavam ao ministério após um “tratamento” em centros de tratamento administrados pela Igreja que não tinham equipes profissionais nem eram administrados com competência. Mesmo depois de se provar o abuso e de serem removidos do ministério, padres continuavam recebendo apoio financeiro, enquanto as dioceses jogavam duro contra suas vítimas. Acordos de confidencialidade impostos às vítimas como parte da conciliação serviam apenas para proteger a Igreja de escândalos, e os clérigos, das consequências de suas ações.

relatório do Grande Júri da Pensilvânia deu vários exemplos de crianças que foram espancadas por falarem “mal” de um padre quando contavam suas histórias de abuso. Em um caso, uma menina que contou ao seu pároco sobre uma agressão sexual contra ela por outro padre da paróquia foi humilhada na frente do seu pai biológico e obrigada a se retratar da “história inventada” sobre a sua agressão. O Grande Júri disse: “Seu pai não acreditou nela e arrastou-a para casa, gritando com ela e dando-lhe tapas no caminho. Quando finalmente chegaram em casa, ela foi espancada ainda mais pelo pai, dessa vez com um cinto, cuja fivela feriu-a”.

Enquanto uma “cultura” do clericalismo significar que os pais acreditam nos padres em vez das angustiantes histórias dos seus próprios filhos, será muito difícil responsabilizar os padres e os bispos.

Até mesmo o Papa Francisco é culpado por esse tipo de preferência clerical por parte de alguns membros do Vaticano. Quando o cardeal australiano George Pell foi condenado por abuso sexual de vários meninos pelo tribunal na Austrália, ele foi autorizado a continuar como prefeito para a economia (responsável pelo dinheiro) no Vaticano, aguardando recurso. Uma das vítimas de Pell cometeu suicídio. Pell, assim como o ex-cardeal Theodore McCarrick, era protegido pelo clericalismo. Ele era um dos membros do “clube masculino” mais exclusivo da Igreja, o Colégio dos Cardeais.

De certa forma, padres e bispos também são “vítimas” do clericalismo. Se o clericalismo nos coloca em um pedestal, ele também isola o clero de amizades comuns. Somos sempre “o Padre” ou “Sua Excelência”, e nunca apenas Pedro ou João. Se o clericalismo dá maior controle ao padre e ao bispo, ele também lhes confere maior responsabilidade. Ter uma “autoridade” inquestionável para falar sobre tantos assuntos também significa que se espera que os padres tenham respostas para além da sua competência.

O relatório da Associação dos Padres Católicos dos EUA também observou: “O clericalismo em leigos bloqueia a resposta necessária que ajuda a manter a Igreja fiel ao Evangelho, e bloqueia a resposta que os ordenados precisam para servir adequadamente à comunidade”.

Os leigos, o clero e a Igreja, todos sofrem com a cultura do clericalismo. Ela distorce as nossas relações humanas e corrompe o corpo de Cristo.

E o pior de tudo: ela não é fiel à visão de Cristo. Ele nos chama a todos a sermos líderes servidores, e não governantes imperiosos.

“Vocês sabem: os governadores das nações têm poder sobre elas, e os grandes têm autoridade sobre elas. Entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês; e quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se servo de vocês. Pois, o Filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio para servir, e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos” (Mateus 20, 25-28).

Fonte do texto: IHU

Nossa Senhora da Glória, Padroeira de Maringá