10 outubro, 2014

As eleições à luz da história antipovo

Os que sobem o tom dizendo que tudo no país está errado, posicionam-se contra as políticas do PT que combatem privilégios.

Nada melhor do que ler as atuais eleições à luz da história brasileira na tensão entre as elites e o povo. Valho-me duma contribuição de um sério historiador com formação em Roma, em Lovaina e na USP de São Paulo o Pe. José Oscar Beozzo, uma das inteligências mais brilhantes de nosso clero.

Diz Beozzo: “a questão de fundo em nossa sociedade é a do direito dos pequenos à vida sempre ameaçada pela abissal desigualdade de acesso aos meios de vida e pelas exíguas oportunidades abertas às grandes maiorias do andar debaixo”.

Como nos ensina Caio Prado Júnior, nossa formação social desigual repousa sobre quatro pilares difíceis de serem movidos: a) a grande propriedade da terra concentrada nas mãos de poucos, de tal modo que não haja terra “livre” e “disponível” para quem trabalha ou para os que eram seus donos originários, os povos indígenas; b) o predomínio da monocultura; c) a produção voltada para o mercado externo (açúcar, tabaco, algodão, café, cacau e hoje soja); d) o regime de trabalho escravo.

A independência de Portugal não alterou nenhum desses pilares. Os que naquela época sonharam com um Brasil diferente, propunham a troca da grande pela pequena propriedade nas mãos de quem trabalhava; da monocultura para a policultura; da produção para o mercado internacional por outra voltada para o autoconsumo e para o abastecimento do mercado interno; do trabalho escravo pelo trabalho familiar livre. Isso pôde acontecer em pequenas regiões periféricas às monoculturas tropicais, na serra gaúcha e catarinense, com colonos alemães, italianos, poloneses, numa propriedade mais democratizada.

Houve geral oposição dos grandes proprietários escravistas a qualquer dessas medidas e foram dizimados a ferro e fogo levantes populares que apontavam para qualquer medida democratizante na economia, na política e sobretudo nas relações de trabalho. Basta rememorar algumas dessas revoltas: a insurreição dos escravos Malês na Bahia, a Balaiada no Maranhão, a Cabanagem na Amazônia, a revolução Praieira em Pernambuco, a Farroupilha no Sul.

A revolução de 30, com seu viés nacionalista, mesmo que parcialmente, deslocou o eixo do país do mercado externo para o interno; do modelo agrário exportador para o de substituição de importações; do domínio das elites exportadoras do café do pacto Minas/São Paulo, para novas lideranças das zonas de produção para o mercado interno, como as do arroz e charque do Rio Grande do Sul; do voto censitário, para o voto “UNIVERSAL” (menos para os analfabetos, naquela época ainda maioria entre os adultos), do voto exclusivamente masculino para o voto feminino; das relações de trabalho ditadas apenas pelo poder dos patrões para a sua regulação, pelo menos na esfera industrial, com a criação do Ministério do Trabalho e das leis trabalhistas voltadas para a classe operária. Não se conseguiu tocar o domínio incontornável dos proprietários de terra na regulação do trabalho dentro de suas propriedades, o que vai acontecer só depois de 1964, com o Estatuto do Trabalhador Rural.

Getúlio implantou uma política corporativista de apaziguamento entre as classes e de “cooperação” entre capital e trabalho, entre operários e os capitães da indústria em torno de um projeto de industrialização e defesa dos interesses nacionais.

Nesta campanha eleitoral certos meios de comunicação criaram o motto: “Fora PT”. Busca-se acabar com a “ditadura” do PT para instaurar a “ditadura do mercado financeiro”. O que realmente incomoda? A corrupção e o mensalão?

A meu ver, o que incomoda, em que pesem todos seus limites, são as medidas democratizantes como o Pro-Uni, as cotas nas universidades para os estudantes vindos da escola pública e não dos colégios particulares; as cotas para aqueles cujos avós vieram dos porões da escravidão; a reforma agrária, ainda que muito aquém de tudo o que seria necessário; a demarcação e homologação em área contínua da terra Yanomami contra meia dúzia de arrozeiros apoiados pelo coro unânime dos latifundiários e do agronegócio, assim como todos os programas sociais do Bolsa Família, ao Luz para Todos, ao Minha Casa, minha Vida, ao Mais Médicos e daí para frente.

Nunca incomodou a estes críticos que o Estado pagasse o estudo de jovens estudantes de famílias ricas que deram a seus filhos boa educação em escolas particulares, o que lhes franqueou o acesso ao ensino gratuito nas universidades públicas aprofundando a desigualdade de oportunidades. Esse estudo custa mensalmente ao Estado nos cursos de Medicina de seis a sete mil reais. Nunca protestaram essas famílias contra essa “bolsa-esmola” dada aos ricos, e que é vista como “direito” devido a seus méritos e não como puro e escandaloso privilégio. São os mesmos que se recusam a ser médicos nos interiores e nas periferias que não dispõem de um médico sequer.

Os que sobem o tom dizendo que tudo no país está errado, em que pese a melhoria do salário mínimo, a criação de milhões de EMPREGOS, a ampliação das políticas sociais em direção aos mais pobres, a criação do Mais-Médicos, posicionam-se contra as políticas do PT que visam a assegurar direitos cidadãos, ampliar a democratização da sociedade, combater privilégios e sobretudo colocar um pouco de freio (insuficiente a meu ver) à ganância e à ditadura do capital financeiro e do “mercado”.

É esta a razão do meu voto para outro projeto de país, que atende às demandas sempre negadas às grandes maiorias. É por isso, que votei Dilma no primeiro turno e o farei no segundo, respeitando outras escolhas. Associo-me a esta interpretação, também no voto à Dilma Rousseff.

Leonardo Boff é um teólogo brasileiro, escritor e professor universitário, expoente daTeologia da Libertação no Brasil.

Fonte: Carta Maior, em 07 de outubro de 2014

Carta aberta de uma Nortista para os Sulistas

Por Fabiana Agra*

Meus irmãos sulistas – sim, queiram vocês ou não, somos irmãos, somos filhos de uma nação chamada Brasil, que vem sendo construída há 514 anos – como nortista de nascimento e por convicção, sinto-me obrigada a escrever para vocês após os últimos acontecimentos, em que vimos reacender a mais vil xenofobia endereçada a nós, do Norte e do Nordeste, devido os resultados do primeiro turno das Eleições 2014.

Em primeiro lugar, meus irmãos, não somos nem melhores nem piores do que vocês, somos fruto de um país continental, cheio de diferenças e de contrastes e que, por circunstâncias históricas, nós daqui de cima fomos explorados através de uma colonização vil e de uma política perversa, que retiraram o melhor de nós, que foi usufruído por vocês; sem contar que houve uma imigração planejada para os estados do Sul e Sudeste, onde vocês tiveram a oportunidade de desenvolver-se de uma forma bem mais organizada.

Sim, nós daqui de cima já passamos fome, já fomos muito ignorantes, uma massa de milhões de analfabetos, que vivia das esmolas que os governos anteriores vez por outra mandavam, governantes esses que nunca se importaram em preparar o nosso povo para conviver com as intempéries do clima e nem de diminuir o abismo social em que vivíamos.

Somente após 2002, meus irmãos, é que esse quadro começou a mudar e, hoje em dia, o Norte/Nordeste é também uma terra de amplas possibilidades: seu povo está melhorando de vida, a educação chegou através de dezenas ou até mesmo de centenas de estabelecimentos educacionais federais, obras estruturantes estão sendo erguidas e, se os bons ventos continuarem favoráveis para nós, a geração nascida neste novo século estará em pé de igualdade econômica com vocês, que tiveram a “sorte” de receber a maior fatia do bolo até bem pouco tempo atrás.

Meus amigos sulistas, sinceramente eu não entendo o porquê de tanto ódio direcionado a nós. Eu nasci e cresci ouvindo dizer que o Brasil era a terra da gentileza, uma nação de povo amigo e hospitaleiro – quer dizer que tal máxima só se aplica para os gringos que aqui chegam para usufruírem das nossas belezas naturais, do nosso clima e, muitos deles, das nossas mulheres e crianças? Quer dizer que vocês se consideram uma “gente diferenciada” e se acham no direito de tratarem a nós, daqui de cima, como uma “sub-raça”? Eu gostaria muito de ter esses meus questionamentos respondidos de forma coerente.

Outra coisa: vocês estão alardeando, do Oiapoque ao Chuí, que nós, do Norte/Nordeste, não sabemos votar. Ah, é? E o que vocês me dizem da votação esmagadora recebida por Tiririca, Bolsonaro, Feliciano, Coronel Telhada e Delegado Olim? Como vocês explicam esses votos tão conscientes e inteligentes? Quem não sabe mesmo votar, hein? Nós daqui, votamos majoritariamente em Dilma porque somente a partir dos governos de Lula e Dilma a classe mais pobre desse imenso Brasil saiu da linha da miséria, são mais de 40 milhões de pessoas que hoje em dia tem a mesa farta, roupas compradas com o seu próprio dinheiro, e milhares de pessoas que estão tendo a oportunidade de estudar, de viajar, de trocar experiências… Eu votei e votarei em Dilma, meus amigos sulistas, porque, entre outros avanços, o Brasil não é mais devedor do FMI – pelo contrário, nosso país agora empresta dinheiro -, e caso vocês ainda não saibam, o Brasil saiu do mapa da fome, algo que somente 35 países do mundo foram capazes de realizar.

Pois é, meus irmãos. Eu continuo sem entender o motivo de tanto ódio da parte de vocês – será o stress dessa vida caótica? Pode ser. Então, para acabarmos de vez com essa coisa horrível, chamada “cultura do ódio”, da minha parte eu perdoo as ofensas gratuitas que recebi nos últimos dias e convido-os a nos visitar. 

Venham para cá passar uns dias, garanto a vocês que serão muito bem recebidos! Venham para cá que nós daqui faremos questão de mostrar para vocês o nosso lugar, a nossa gente, a nossa gastronomia. Vocês irão perceber que o Norte/Nordeste é um lugar repleto de encantos e com um povo que sempre foi receptivo – mas que, agora, além de receber bem, também está tendo as mesmas oportunidades que vocês sempre tiveram.

Mas caso vocês não possam dar uma esticadinha até aqui, há outras formas de conhecer a nós, nortistas: basta pegarem uma das milhares de obras escritas por um de nós; vocês irão deliciar-se com os livros de Jorge Amado, Rachel de Queiros, Ariano Suassuna, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar… E se não gostam muito de ler, que tal ouvir uma boa música daqui dessas bandas? Temos de todos os estilos, de Zé Ramalho, Raul Seixas, Alceu, Djavan, Gil, Caetano, Bethânia, Fagner, a Zeca Baleiro, Ivete, Pitty, Herbert Viana, Chico César, Elba…

Finalmente, sem querer aprofundar-me na política, creio que já justifiquei meu voto para vocês – apesar de desnecessário, faço questão. Já vocês, meus irmãos, sintam-se à vontade para elegerem quem vocês bem entenderem, o nome disso é democracia. Infelizmente, a escolha de vocês, caso não seja a melhor, refletirá em todo o país que, até o momento, está tomando um rumo certo e confiável.

Ah, ia esquecendo de uma coisa: nós daqui temos a maior admiração pelos jumentos, animais inteligentes e que desde o início da colonização, foram companhia de todos os desbravadores dessa terra. Portanto, eu particularmente, não me sinto ofendida em ser chamada de burra, de jumenta, de maneira alguma. Fiquem à vontade.

É isso, meus amigos do Sudeste/Sul. A nossa bandeira é uma só, e o nosso pavilhão verde-e-amarelo não pode agasalhar esse tipo de ódio pela sua própria gente nem por povo nenhum do planeta! Vamos deixar de propagar essa raiva gratuita, que só faz diminuir moral e eticamente quem a espalha. Vamos sim, ajudar a construir a grande nação que merecemos! Quem se habilita?

* Fabiana Agra é advogada, jornalista, escritora e paraibana com muito orgulho.