04 outubro, 2023

““Laudate Deum” é o título desta carta.

““Laudate Deum" é o título desta carta. Porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo".


"As alterações climáticas são um dos principais desafios que a sociedade e a comunidade global têm de enfrentar. Os efeitos das alterações climáticas recaem sobre as pessoas mais vulneráveis, tanto a nível nacional como mundial»"



EXORTAÇÃO APOSTÓLICA


LAUDATE DEUM

DO SANTO PADRE
FRANCISCO

A TODAS AS PESSOAS DE BOA VONTADE SOBRE A CRISE CLIMÁTICA



1. «LOUVAI A DEUS por todas as suas criaturas»: foi este o convite que São Francisco de Assis fez com a sua vida, os seus cânticos e os seus gestos. Retomou assim a proposta dos salmos da Bíblia e reproduziu a sensibilidade de Jesus para com as criaturas de seu Pai: «Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! Pois Eu vos digo: Nem Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como qualquer deles» (Mt 6, 28-29). «Não se vendem cinco pássaros por duas pequeninas moedas? Contudo, nenhum deles passa despercebido diante de Deus» (Lc 12, 6). Como deixar de admirar esta ternura de Jesus por todos os seres que nos acompanham no nosso caminho?

2. Já passaram oito anos desde a publicação da carta encíclica Laudato si’, quando quis partilhar com todos vós, irmãs e irmãos do nosso maltratado planeta, a minha profunda preocupação pelo cuidado da nossa casa comum. Mas, com o passar do tempo, dou-me conta de que não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se esboroando e talvez aproximando dum ponto de rutura. Independentemente desta possibilidade, não há dúvida que o impacto da mudança climática prejudicará cada vez mais a vida de muitas pessoas e famílias. Sentiremos os seus efeitos em termos de saúde, emprego, acesso aos recursos, habitação, migrações forçadas e noutros âmbitos.

3. Trata-se dum problema social global que está intimamente ligado à dignidade da vida humana. Os bispos dos Estados Unidos expressaram bem o sentido social da nossa preocupação com a mudança climática, que ultrapassa uma abordagem meramente ecológica, porque «o nosso cuidado pelo outro e o nosso cuidado com a terra estão intimamente ligados. As alterações climáticas são um dos principais desafios que a sociedade e a comunidade global têm de enfrentar. Os efeitos das alterações climáticas recaem sobre as pessoas mais vulneráveis, tanto a nível nacional como mundial» [1]. E o mesmo disseram, em poucas palavras, os bispos presentes no Sínodo para a Amazónia: «Os ataques à natureza têm consequências na vida dos povos» [2]. E para sublinhar que já não se trata duma questão secundária ou ideológica, mas dum drama que nos prejudica a todos, os bispos africanos declararam que as alterações climáticas evidenciam «um exemplo chocante de pecado estrutural» [3].

4. A reflexão e as informações que pudemos recolher destes últimos oito anos permitem-nos especificar e completar o que afirmámos há algum tempo. Por este motivo e porque a situação se vai tornando ainda mais urgente, quis partilhar convosco estas páginas.

1.

A crise climática global

5. Por muito que se tente negá-los, escondê-los, dissimulá-los ou relativizá-los, os sinais da mudança climática impõem-se-nos de forma cada vez mais evidente. Ninguém pode ignorar que, nos últimos anos, temos assistido a fenómenos extremos, a períodos frequentes de calor anormal, seca e outros gemidos da terra que são apenas algumas expressões palpáveis duma doença silenciosa que nos afeta a todos. É verdade que nem todas as catástrofes se podem atribuir à alteração climática global. Mas é possível verificar que certas mudanças climáticas, induzidas pelo homem, aumentam significativamente a probabilidade de fenómenos extremos mais frequentes e mais intensos. Pois, sempre que a temperatura global aumenta 0,5 grau centígrado, sabe-se que aumentam também a intensidade e a frequência de fortes chuvadas e inundações nalgumas áreas, graves secas noutras, de calor extremo nalgumas regiões e fortes nevadas ainda noutras. [4] Se até agora podíamos ter vagas de calor algumas vezes no ano, que aconteceria se a temperatura global aumentasse 1,5 graus centígrados, de que aliás estamos perto? Tais vagas de calor serão muito mais frequentes e mais intensas. Se se superarem os 2 graus, as calotes glaciares da Gronelândia e de grande parte da Antártida derreter-se-ão completamente, [5] com consequências enormes e muito graves para todos.

Resistência e confusão

6. Nos últimos anos, não têm faltado pessoas que procuraram minimizar esta observação. Citam dados supostamente científicos, como o facto de que o planeta sempre teve e continuará a ter períodos de arrefecimento e aquecimento. Transcuram outro dado relevante: aquilo que agora estamos a assistir é uma aceleração insólita do aquecimento, com uma velocidade tal que basta uma única geração – e não séculos ou milénios – para nos darmos conta. A subida do nível do mar e o degelo dos glaciares podem ser facilmente notados por uma pessoa no arco da sua vida e provavelmente, dentro de poucos anos, muitas populações terão de deslocar as suas casas por causa destes fenómenos.

7. Para pôr em ridículo quem fala de aquecimento global, recorre-se ao facto de que frequentemente se verificam também frios extremos. Esquece-se que estes e outros sintomas extraordinários são apenas expressões alternativas da mesma causa: o desequilíbrio global causado pelo aquecimento do planeta. Secas e aluviões, enxugamento de lagos e populações eliminadas por maremotos ou inundações têm fundamentalmente a mesma origem. Aliás, se falamos dum fenómeno global, não podemos confundi-lo com eventos transitórios e mutáveis, que em grande parte se explicam por fatores locais.

8. A falta de informações leva a identificar as grandes projeções climáticas que dizem respeito a longos períodos – trata-se pelo menos de decénios – com as previsões meteorológicas que podem, no máximo, cobrir algumas semanas. Quando falamos de alteração climática, referimo-nos a uma realidade global – com variações locais constantes – que persiste por vários decénios.

9. Na tentativa de simplificar a realidade, não falta quem culpe os pobres de terem demasiados filhos e procure resolver o problema mutilando as mulheres dos países menos desenvolvidos. Como sucede habitualmente, a culpa pareceria ser dos pobres. Mas a realidade é que uma reduzida percentagem mais rica do planeta polui mais do que o 50% mais pobre de toda a população mundial e que a emissão pro capite dos países mais ricos é muitas vezes superior à dos mais pobres. [6] Como esquecer que a África, que alberga mais de metade das pessoas mais pobres do mundo, é responsável apenas por uma mínima parte das emissões no passado?

10. Diz-se também, com frequência, que os esforços para mitigar as alterações climáticas, reduzindo o uso de combustíveis fósseis e desenvolvendo formas de energia mais limpa, levarão à diminuição dos postos de trabalho. Quando o que está a acontecer é que milhões de pessoas perdem o emprego devido às diversas consequências da mudança climática: a subida do nível do mar, as secas e muitos outros fenómenos que afetam o planeta deixaram muitas pessoas à deriva. Aliás a transição para formas renováveis de energia, quando bem gerida, assim como os esforços para se adaptar aos danos das alterações climáticas, são capazes de gerar inúmeros postos de trabalho em diferentes setores. Por isso é necessário que os políticos e os empresários se ocupem disso imediatamente.

As causas humanas

11. A origem humana – «antrópica» – da mudança climática já não se pode pôr em dúvida. Vejamos porquê. A concentração na atmosfera dos gases com efeito estufa, que causam o aquecimento global, manteve-se estável até ao século XIX: abaixo das 300 partes por milhão em volume. Mas a meados daquele século, em coincidência com o progresso industrial, as emissões começaram a aumentar. Nos últimos cinquenta anos, o aumento sofreu uma forte aceleração, como atesta o observatório de Mauna Loa que efetua, desde 1958, medições diárias do dióxido de carbono. Estava eu a escrever a Laudato si’, quando se atingiu o máximo histórico – 400 partes por milhão – chegando, em junho de 2023, a 423 partes por milhão [7]. Considerando o total líquido das emissões desde 1850, mais de 42% ocorreu depois de 1990. [8]

12. Ao mesmo tempo notamos que, nos últimos cinquenta anos, a temperatura aumentou a uma velocidade inédita, sem precedentes nos últimos dois mil anos. No referido período, a tendência foi um aquecimento de 0,15 graus centígrados por decénio, o dobro do registado nos últimos 150 anos. De 1850 até hoje, a temperatura global aumentou 1,1 graus centígrados, fenómeno que se amplifica nas áreas polares. A este ritmo, é possível que, dentro de dez anos, tenhamos alcançado o limite máximo global de 1,5 graus centígrados. [9] O aumento não se verificou apenas na superfície terrestre, mas também a vários quilómetros de altura na atmosfera, na superfície dos oceanos e mesmo a centenas de metros de profundidade. Isto aumentou também a acidificação dos mares e reduziu os seus níveis de oxigénio. Os glaciares retraem-se, a cobertura de neve diminui e o nível do mar aumenta constantemente [10].

13. É impossível esconder a coincidência destes fenómenos climáticos globais com o crescimento acelerado das emissões de gases com efeito estufa, sobretudo a partir de meados do século XX. A esmagadora maioria dos estudiosos do clima defende esta correlação, sendo mínima a percentagem daqueles que tentam negar esta evidência. Infelizmente, a crise climática não é propriamente uma questão que interesse às grandes potências económicas, preocupadas em obter o maior lucro ao menor custo e no mais curto espaço de tempo possíveis.

14. Vejo-me obrigado a fazer estas especificações, que podem parecer óbvias, por causa de certas opiniões ridicularizadoras e pouco racionais que encontro mesmo dentro da Igreja Católica. Mas não podemos continuar a duvidar que a razão da insólita velocidade de mudanças tão perigosas esteja neste facto inegável: os enormes progressos conexos com a desenfreada intervenção humana sobre a natureza nos últimos dois séculos. Os elementos naturais típicos que provocam o aquecimento, como as erupções vulcânicas e outros, não são suficientes para explicar a percentagem e a velocidade das alterações registadas nos últimos decénios. [11] A evolução das temperaturas médias da superfície não pode ser sustentada sem a influência do aumento de gases com efeito estufa.

Danos e riscos

15. Já são irreversíveis, pelo menos durante centenas de anos, algumas manifestações desta crise climática, como o aumento da temperatura global dos oceanos, a acidificação e a redução do oxigénio. As águas dos oceanos possuem uma inércia térmica, sendo necessário séculos para normalizar a temperatura e a salinidade, com consequências para a sobrevivência de muitas espécies. Este é um sinal, entre muitos, do facto que as outras criaturas deste mundo deixaram de ser nossas companheiras de viagem para se tornar nossas vítimas.

16. O mesmo se diga quanto ao processo que conduz à redução dos glaciares continentais. O fenómeno do degelo dos polos não poderá ser invertido durante centenas de anos. Quanto ao clima, há fatores que perduram durante longo tempo, independentemente dos eventos que os desencadearam. Por este motivo, já não podemos deter os danos enormes que causámos. Estamos a tempo apenas de evitar danos ainda mais dramáticos.

17. Alguns diagnósticos apocalíticos apresentam-se, com frequência, pouco racionais ou insuficientemente fundados. Isto não deveria levar-nos a ignorar que é real a possibilidade de alcançar um ponto de viragem. Pequenas mudanças podem provocar alterações importantes, imprevistas e talvez já irreversíveis, devido a fatores inerciais, o que acabaria por desencadear uma série de eventos em cascata. Neste caso, chega-se sempre demasiado tarde, porque nenhuma intervenção pode deter o processo já iniciado. Não se pode voltar atrás. Nas condições atuais, não podemos afirmar, com certeza, que isto acontecerá. Mas é seguramente uma possibilidade, se tivermos em conta os fenómenos já em curso que «afetam» o clima como, por exemplo, a diminuição das calotas glaciares, as alterações nos fluxos oceânicos, a desflorestação das selvas pluviais tropicais, o degelo do permafrost na Rússia. [12]

18. Por isso é urgente uma visão mais alargada, que nos permita não só admirar as maravilhas do progresso, mas também prestar atenção a outros efeitos que, provavelmente há cem anos, nem sequer podiam ser imaginados. Tudo o que se nos pede é uma certa responsabilidade pela herança que deixaremos atrás de nós depois da nossa passagem por este mundo.

19. Finalmente, podemos acrescentar que a pandemia Covid-19 veio confirmar a estreita relação da vida humana com a dos outros seres vivos e com o ambiente, mostrando de modo particular que aquilo que acontece em qualquer parte do mundo tem repercussões sobre todo o planeta. Isto permite-me insistir sobre duas convicções que não me canso de reiterar: «tudo está interligado» e «ninguém se salva sozinho».

2.

O crescente paradigma tecnocrático

20. Na Laudato si’, dei uma breve explicação do paradigma tecnocrático que está na base do processo atual de degradação ambiental. Trata-se de «um modo desordenado de conceber a vida e a ação do ser humano, que contradiz a realidade até ao ponto de a arruinar» [13]. Consiste, substancialmente, em pensar «como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia» [14]. Como consequência lógica, «daqui passa-se facilmente à ideia dum crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou os economistas, os teóricos da finança e da tecnologia» [15].

21. Nos últimos anos, pudemos confirmar este diagnóstico, assistindo simultaneamente a um novo avanço de tal paradigma. A inteligência artificial e os recentes progressos tecnológicos baseiam-se na ideia dum ser humano sem limites, cujas capacidades e possibilidades se poderiam alargar ao infinito graças à tecnologia. Assim, o paradigma tecnocrático alimenta-se monstruosamente de si próprio.

22. Os recursos naturais necessários para a tecnologia, como o lítio, o silício e tantos outros não são certamente ilimitados, mas o problema maior é a ideologia que está na base duma obsessão: aumentar para além de toda a imaginação o poder do homem, para o qual a realidade não humana é um mero recurso ao seu serviço. Tudo o que existe deixa de ser uma dádiva que se deve apreciar, valorizar e cuidar, para se tornar um escravo, uma vítima de todo e qualquer capricho da mente humana e das suas capacidades.

23. Faz arrepiar quando nos damos conta que as acrescidas capacidades da tecnologia proporcionam «àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder económico para o desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto do género humano e do mundo inteiro. Nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considera a maneira como o está a fazer(...). Nas mãos de quem está e pode chegar a estar tanto poder? É tremendamente arriscado que resida numa pequena parte da humanidade» [16].

Repensar a nossa utilização do poder

24. Nem todo o aumento de poder é um progresso para a humanidade. Basta pensar nas tecnologias «portentosas» que foram utilizadas para dizimar populações, lançar bombas atómicas, aniquilar grupos étnicos. Houve momentos da história em que a admiração pelo progresso não nos permitiu ver o horror dos seus efeitos. Mas este risco está sempre presente, porque «o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência (...), ele está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para o controlar. Talvez disponha de mecanismos superficiais, mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro dum lúcido domínio de si» [17]. Não é de estranhar que um poder tamanho em tais mãos seja capaz de destruir a vida, já que a matriz de pensamento própria do paradigma tecnocrático nos cega, não nos permitindo ver este gravíssimo problema da humanidade atual.

25. Contrariamente a este paradigma tecnocrático, afirmamos que o mundo que nos rodeia não é um objeto de exploração, utilização desenfreada, ambição sem limites. Nem sequer podemos considerar a natureza como uma mera «moldura» onde desenvolvemos a nossa vida e os nossos projetos, porque «estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos», [18] de tal modo que se contempla «o mundo, não como alguém que está fora dele, mas dentro» [19].

26. Por isso mesmo se exclui a ideia de que o ser humano seja um estranho, um fator externo capaz apenas de danificar o ambiente. Mas deve ser considerado como parte da natureza. A vida, a inteligência e a liberdade do homem estão inseridas na natureza que enriquece o nosso planeta, fazem parte das suas forças internas e do seu equilíbrio.

27. Por conseguinte, um ambiente saudável é também o produto da interação humana com o meio ambiente, como sucede nas culturas indígenas e aconteceu durante séculos em várias regiões da terra. Muitas vezes os grupos humanos «criaram» o meio ambiente [20], remodelando-o de algum modo sem o destruir nem pôr em perigo. O grande problema atual é que o paradigma tecnocrático destruiu esta relação saudável e harmoniosa. Contudo a indispensável superação deste paradigma tão nocivo e destruidor não se encontra numa negação do ser humano, mas passa pela interação dos sistemas naturais «com os sistemas sociais». [21]

28. Todos nós devemos repensar a questão do poder humano, do seu significado e dos seus limites. Com efeito, o nosso poder aumentou freneticamente em poucos decénios. Realizamos progressos tecnológicos impressionantes e surpreendentes, sem nos darmos conta, ao mesmo tempo, que nos tornámos altamente perigosos, capazes de pôr em perigo a vida de muitos seres e a nossa própria sobrevivência. Pode-se repetir hoje, com a ironia de Soloviev: «Um século tão avançado que teve a sorte de ser o último » [22]. É preciso lucidez e honestidade para reconhecer a tempo que o nosso poder e o progresso que gerámos estão a virar-se contra nós mesmos [23].

O aguilhão ético

29. A decadência ética do poder real é disfarçada pelo marketing e pela informação falsa, mecanismos úteis nas mãos de quem tem maiores recursos para influenciar a opinião pública através deles. Com a ajuda destes mecanismos, quando se pretende iniciar um projeto com forte impacto ambiental e elevados efeitos poluidores, iludem-se os habitantes da região falando do progresso local que se poderá gerar ou das oportunidades económicas, ocupacionais e de promoção humana que isso trará para os seus filhos. Na realidade, porém, falta um verdadeiro interesse pelo futuro destas pessoas, porque não lhes é dito claramente que, na sequência de tal projeto, terão uma terra devastada, condições muito mais desfavoráveis para viver e prosperar, uma região desolada, menos habitável, sem vida e sem a alegria da convivência e da esperança, para além do dano global que acaba por prejudicar a muitos mais.

30. Basta pensar no efémero entusiasmo pelo dinheiro recebido em troca do depósito de resíduos tóxicos num sítio. A casa adquirida com aquele dinheiro transformou-se num túmulo por causa das doenças que se desencadearam. E não falo impelido por uma imaginação desenfreada, mas por algo que vivemos. Poder-se-ia dizer que este é um exemplo extremo, mas não é possível falar de danos «menores», porque foi precisamente a soma de muitos danos considerados toleráveis que acabou por nos levar à situação em que nos encontramos agora.

31. Tal situação não tem a ver apenas com a física ou a biologia, mas também com a economia e o nosso modo de a conceber. A lógica do máximo lucro ao menor custo, disfarçada de racionalidade, progresso e promessas ilusórias, torna impossível qualquer preocupação sincera com a casa comum e qualquer cuidado pela promoção dos descartados da sociedade. Nos últimos anos, podemos notar como às vezes os próprios pobres, confundidos e encantados perante as promessas de tantos falsos profetas, caem no engano dum mundo que não é construído para eles.

32. Incrementam-se ideias erradas sobre a chamada «meritocracia», que se tornou um «merecido» poder humano ao qual tudo se deve submeter, um domínio daqueles que nasceram com melhores condições de progresso. Caso diverso é a sadia abordagem do valor do compromisso, do desenvolvimento das próprias capacidades e dum louvável espírito de iniciativa; mas se não se procura uma real igualdade de oportunidades, a meritocracia facilmente se transforma num para-vento que consolida ainda mais os privilégios de poucos com maior poder. Nesta lógica perversa, que lhes importa os danos à casa comum, se se sentem seguros sob a suposta armadura dos recursos económicos que obtiveram com as suas capacidades e esforços?

33. Na própria consciência e pensando nos filhos que pagarão os danos das minhas ações, coloca-se a questão do sentido: Qual é o sentido da minha vida? Qual é o sentido da minha passagem por esta terra? Qual é, em última análise, o sentido do meu trabalho e do meu compromisso?

3.

A fragilidade da política internacional

34. Enquanto «a história dá sinais de regressão (...), cada geração deve fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas. É o caminho. O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia» [24]. Para se obter um progresso sólido e duradouro, quero insistir que «há que favorecer os acordos multilaterais entre os Estados» [25].

35. Não é conveniente confundir o multilateralismo com uma autoridade mundial concentrada numa só pessoa ou numa elite com excessivo poder. «Quando se fala duma possível forma de autoridade mundial regulada pelo direito, não se deve necessariamente pensar numa autoridade pessoal» [26]. Falamos sobretudo de «organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais» [27]. O importante é estarem dotadas duma real autoridade que possa «assegurar» a realização de alguns objetivos irrenunciáveis. Deste modo dar-se-ia vida a um multilateralismo que não depende das circunstâncias políticas instáveis ou dos interesses de poucos e que tem uma eficácia estável.

36. É lamentável que as crises globais sejam desperdiçadas, quando poderiam ser ocasião para introduzir mudanças salutares [28]. Assim sucedeu na crise financeira de 2007-2008 e voltou a acontecer na crise da pandemia Covid-19. De facto «parece que as reais estratégias, posteriormente desenvolvidas no mundo, se têm orientado para maior individualismo, menor integração, maior liberdade para os que são verdadeiramente poderosos e sempre encontram maneira de escapar ilesos» [29].

Redesenhar o multilateralismo

37. Mais do que salvar o velho multilateralismo, parece que o desafio hoje seja redesenhá-lo e recriá-lo à luz da nova situação global. Convido-vos a reconhecer que «muitos grupos e organizações da sociedade civil ajudam a compensar as debilidades da Comunidade Internacional, a sua falta de coordenação em situações complexas, a sua carência de atenção relativamente a direitos humanos fundamentais» [30]. A propósito, o processo de Otava contra o uso, a elaboração e o fabrico das minas antipessoais é um exemplo que demonstra como a sociedade civil e as suas organizações sejam capazes de criar dinâmicas eficazes que a ONU não consegue. Assim o princípio de subsidiariedade aplica-se também à relação global-local.

38. A médio prazo, a globalização propicia intercâmbios culturais espontâneos, maior conhecimento mútuo e modalidades de integração dos povos que levarão a um multilateralismo «a partir de baixo» e não meramente decidido pelas elites do poder. Os pedidos que emergem a partir de baixo em todo o mundo, onde pessoas comprometidas dos mais diversos países se ajudam e sustentam mutuamente, podem acabar por fazer pressão sobre os fatores de poder. Espera-se que isto possa acontecer no que diz respeito à crise climática. Por isso, reafirmo que, «se os cidadãos não controlam o poder político – nacional, regional e municipal –, também não é possível combater os danos ambientais» [31].

39. A cultura pós-moderna gerou uma nova sensibilidade para com os mais frágeis e menos dotados de poder. Isto relaciona-se com a minha insistência, na carta encíclica Fratelli tutti, sobre o primado da pessoa humana e a defesa da sua dignidade, independentemente das circunstâncias. É outra forma de convidar ao multilateralismo para se resolverem os verdadeiros problemas da humanidade, procurando sobretudo o respeito pela dignidade das pessoas, de tal modo que a ética prevaleça sobre os interesses locais ou contingentes.

40. Não se trata de substituir a política. As potências emergentes estão a tornar-se cada vez mais relevantes e são realmente capazes de obter resultados significativos na resolução de problemas concretos, como algumas delas demonstraram na pandemia. O próprio facto de as respostas aos problemas poderem vir de qualquer país, por mais pequeno que seja, leva a reconhecer o multilateralismo como um caminho inevitável.

41. A velha diplomacia – também ela em crise – continua a demonstrar a sua importância e necessidade. Ainda não conseguiu gerar um modelo de diplomacia multilateral que responda à nova configuração do mundo, mas, se for capaz de se reformular, deverá ser parte da solução, pois a própria experiência de séculos não pode ser descartada.

42. O mundo está a tornar-se tão multipolar e, simultaneamente, tão complexo que é necessário um quadro diferente para uma cooperação eficaz. Não basta pensar nos equilíbrios de poder, ocorre também responder aos novos desafios e reagir com mecanismos globais aos desafios ambientais, sanitários, culturais e sociais, sobretudo para consolidar o respeito dos direitos humanos mais elementares, dos direitos sociais e do cuidado da casa comum. Trata-se de estabelecer regras universais e eficazes para garantir esta proteção mundial.

43. Tudo isto pressupõe que se adote um novo procedimento para a tomada de decisões e a legitimação das mesmas, porque o procedimento estabelecido há vários decénios não é suficiente nem parece ser eficaz. Neste contexto, são necessários espaços de diálogo, consulta, arbitragem, resolução dos conflitos, supervisão e, em resumo, uma espécie de maior «democratização» na esfera global, para expressar e incluir as diversas situações. Deixará de ser útil apoiar instituições que preservem os direitos dos mais fortes, sem cuidar dos direitos de todos.

4.

As Conferências sobre o Clima: progressos e falimentos

44. Há decénios que os representantes de mais de 190 países se reúnem periodicamente para enfrentar a questão climática. A Conferência do Rio de Janeiro de 1992 levou à adoção da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (UNFCCC), um tratado que entrou em vigor quando se obtiveram as necessárias ratificações por parte dos países signatários em 1994. Estes Estados reúnem-se anualmente na Conferência das Partes (COP), o mais alto organismo de decisão. Algumas foram um falimento, como a de Copenhaga (2009), enquanto outras permitiram realizar passos importantes, como a COP3 de Quioto (1997). Foi o seu valioso Protocolo que fixou como objetivo a redução das emissões de gás com efeito estufa, na sua totalidade, em 5% relativamente a 1990. A data limite era 2012, mas evidentemente não foi cumprida.

45. Além disso, em Quioto, todas as partes se comprometeram a implementar programas de adaptação para reduzir os efeitos da alteração climática já em curso. Previram-se ainda ajudas para cobrir os custos destas medidas nos países em vias de desenvolvimento. O Protocolo entrou em vigor no ano 2005.

46. Posteriormente foi proposto um mecanismo relativo às perdas e aos danos causados pelas alterações climáticas, que reconhece os países mais ricos como os principais responsáveis e procura compensar os efeitos devastadores nos países mais vulneráveis. Já não se trata de financiar a «adaptação» destes países, mas compensá-los pelos danos já sofridos. Tal questão foi objeto de importantes debates em várias COP.

47. A COP21 de Paris (2015) constituiu outro momento significativo, pois produziu um acordo que envolveu a todos. Pode ser visto como um novo início, tendo em conta o falimento dos objetivos estabelecidos na fase anterior. O acordo entrou em vigor no dia 4 de novembro de 2016. Embora seja vinculante, nem todos os requisitos constituem verdadeiras obrigações em sentido estrito e alguns deles deixam margem para uma ampla discricionariedade. Aliás, mesmo para as obrigações não respeitadas, não se preveem verdadeiras sanções nem existem instrumentos eficazes para garantir a sua observância. Além disso o acordo prevê formas de flexibilidade para os países em vias de desenvolvimento.

48. O Acordo de Paris apresenta um objetivo importante a longo prazo: manter o aumento das temperaturas médias globais abaixo dos 2 graus centígrados relativamente aos níveis pré-industriais, apostando em todo o caso a descer abaixo de 1,5 graus. Ainda se está a trabalhar para consolidar procedimentos concretos de monitorização e fornecer critérios gerais para confrontar os objetivos dos diferentes países. Isto torna difícil uma avaliação mais objetiva (quantitativa) dos resultados efetivos.

49. Depois de algumas Conferências com escassos resultados e a desilusão da COP25 de Madrid (2019), esperava-se reverter tal inércia na COP26 de Glasgow (2021). Substancialmente, o seu resultado foi o relançamento do Acordo de Paris, que fora posto em discussão pelos vínculos e os efeitos da pandemia. Além disso, houve uma abundância de «exortações», de que era difícil esperar um impacto real. As propostas tendentes a garantir uma transição rápida e eficaz para formas de energia alternativa e menos poluente não conseguiram fazer progressos.

50. A COP27 de Sharm El Sheikh (2022) viu-se ameaçada desde o início pela situação criada com a invasão da Ucrânia, que causou uma grave crise económica e energética. A utilização do carvão aumentou e todos quiseram garantir o seu abastecimento. Os países em vias de desenvolvimento consideraram o acesso à energia e as oportunidades de progresso como uma prioridade urgente. Reconheceu-se claramente que, de facto, os combustíveis fósseis fornecem ainda 80% da energia mundial e a sua utilização continua a aumentar.

51. A Conferência egípcia foi mais um exemplo da dificuldade das negociações. Poder-se-ia dizer que pelo menos produziu um avanço na consolidação do sistema de financiamento pelas «perdas e danos» nos países mais afetados pelas catástrofes climáticas, o que parecia dar nova voz e maior participação aos países em vias de desenvolvimento. Mas também em tal questão ficaram imprecisos muitos pontos, sobretudo a responsabilidade concreta dos países que devem contribuir.

52. Hoje podemos ainda afirmar que «os acordos tiveram um baixo nível de implementação, porque não se estabeleceram adequados mecanismos de controle, revisão periódica e sanção das violações. Os princípios enunciados continuam a requerer caminhos eficazes e ágeis de realização prática» [32]. E também que «as negociações internacionais não podem avançar significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os seus interesses nacionais sobre o bem comum global. Aqueles que hão de sofrer as consequências que tentamos dissimular, recordarão esta falta de consciência e de responsabilidade» [33].

5.

Que se espera da COP28, no Dubai?

53. Os Emirados Árabes Unidos albergarão a próxima Conferência das Partes (COP28). É um país do Golfo Pérsico que se carateriza como grande exportador de energia fóssil, embora tenha investido muito nas energias renováveis. Entretanto, as companhias petrolíferas e do gás têm a ambição de realizar novos projetos para expandir ainda mais a sua produção. Adotar uma atitude renunciante a respeito da COP28 seria auto lesivo, porque significaria expor toda a humanidade, especialmente os mais pobres, aos piores impactos da mudança climática.

54. Se temos confiança na capacidade do ser humano transcender os seus pequenos interesses e pensar em grande, não podemos renunciar ao sonho de que a COP28 leve a uma decidida aceleração da transição energética, com compromissos eficazes que possam ser monitorizados de forma permanente. Esta Conferência pode ser um ponto de viragem, comprovando que era sério e útil tudo o que se realizou desde 1992; caso contrário, será uma grande desilusão e colocará em risco quanto se pôde alcançar de bom até aqui.

55. Não obstante as numerosas negociações e acordos, as emissões globais continuaram a subir. É verdade que se pode argumentar que, sem tais acordos, teriam aumentado ainda mais. Mas sobre outras questões ambientais, onde houve vontade, foram alcançados resultados muito significativos, como no caso da proteção da camada de ozono. Já quanto à necessária transição para energias limpas, como a eólica, a solar e outras, abandonando os combustíveis fósseis, não se avança de forma suficientemente rápida e, por conseguinte, o que está a ser feito corre o risco de ser interpretado como mero jogo para entreter.

56. Devemos superar a lógica de nos apresentarmos sensíveis ao problema e, ao mesmo tempo, não termos a coragem de efetuar mudanças substanciais. Sabemos que, a continuar assim, dentro de poucos anos teremos ultrapassado o limite máximo desejável de 1,5 graus centígrados e poderemos, em breve, atingir os 3 graus com o risco elevado de chegarmos a um ponto crítico. Mas ainda que não se atingisse este ponto de não retorno, os efeitos seriam desastrosos e ocorreria apressadamente tomar medidas com custos enormes e sequelas económicas e sociais extremamente graves e intoleráveis. Mas, se as medidas que agora adotamos têm custos, estes tornar-se-ão tanto mais pesados quanto mais esperarmos.

57. Considero essencial insistir no facto de que «buscar apenas um remédio técnico para cada problema ambiental que aparece, é isolar coisas que, na realidade, estão interligadas e esconder os problemas verdadeiros e mais profundos do sistema mundial» [34]. É verdade que são necessários esforços de adaptação face a males irreversíveis a curto prazo e são positivas algumas intervenções e progressos tecnológicos para absorver ou capturar os gases emitidos, mas corremos o risco de ficar bloqueados na lógica do consertar, remendar, retocar a situação, enquanto no fundo avança um processo de deterioração, que continuamos a alimentar. Supor que qualquer problema futuro possa ser resolvido com novas intervenções técnicas é um pragmatismo homicida, como pontapear uma bola de neve.

58. Duma vez por todas acabemos com a atitude irresponsável que apresenta a questão apenas como ambiental, «verde», romântica, muitas vezes ridicularizada por interesses económicos. Admitamos, finalmente, que se trata dum problema humano e social em sentido amplo e a diversos níveis. Por isso requer-se o envolvimento de todos. Por ocasião das Conferências sobre o Clima, chamam frequentemente a atenção as ações de grupos ditos «radicalizados»; mas na realidade eles preenchem um vazio da sociedade inteira que deveria exercer uma sã pressão, pois cabe a cada família pensar que está em jogo o futuro dos seus filhos.

59. Se há sincero interesse em obter que a COP28 se torne histórica, que nos honre e enobreça enquanto seres humanos, então só podemos esperar em fórmulas vinculantes de transição energética que tenham três caraterísticas: eficientes, vinculantes e facilmente monitoráveis, a fim de se iniciar um novo processo que seja drástico, intenso e possa contar com o empenhamento de todos. Isto não aconteceu no caminho percorrido até agora, mas só com um tal processo se pode restaurar a credibilidade da política internacional, pois só desta forma concreta será possível reduzir significativamente o dióxido de carbono e evitar a tempo males piores.

60. Oxalá que, a intervir na COP28, sejam estrategas capazes de pensar mais no bem comum e no futuro dos seus filhos, do que nos interesses contingentes de algum país ou empresa. Possam assim mostrar a nobreza da política, e não a sua vergonha. Aos poderosos, atrevo-me a repetir esta pergunta: «Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?» [35].

6.

As motivações espirituais

61. Aos fiéis católicos, não quero deixar de lhes recordar as motivações que brotam da sua fé. Encorajo os irmãos e irmãs doutras religiões a fazerem o mesmo, porque sabemos que a fé autêntica não só dá força ao coração humano, mas transforma a vida inteira, transfigura os objetivos pessoais, ilumina a relação com os outros e os laços com toda a criação.

À luz da fé

62. A Bíblia conta que «Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa» ( Gen 1, 31). D’Ele é «a terra e tudo o que nela existe» ( Dt 10, 14). Por isso diz-nos Ele: «Nenhuma terra será vendida definitivamente porque a terra pertence-Me, e vós sois apenas estrangeiros e meus hóspedes» ( Lv 25, 23). Assim, «esta responsabilidade perante uma terra que é de Deus implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo» [36].

63. Por outro lado, «o conjunto do universo, com as suas múltiplas relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus» e, por conseguinte, para ser sábios, «precisamos de individuar a variedade das coisas nas suas múltiplas relações» [37]. Neste caminho de sabedoria, não aparece irrelevante aos nossos olhos o facto de tantas espécies estarem a desaparecer e a crise climática estar a pôr em perigo a vida de tantos seres.

64. Jesus «podia convidar os outros a estar atentos à beleza que existe no mundo, porque Ele próprio vivia em contacto permanente com a natureza e prestava-lhe uma atenção cheia de carinho e admiração. Quando percorria os quatro cantos da sua terra, detinha-Se a contemplar a beleza semeada por seu Pai e convidava os discípulos a individuarem, nas coisas, uma mensagem divina» [38].

65. Ao mesmo tempo, «as criaturas deste mundo já não nos aparecem como uma realidade meramente natural, porque o Ressuscitado as envolve misteriosamente e guia para um destino de plenitude. As próprias flores do campo e as aves que Ele, admirado, contemplou com os seus olhos humanos, agora estão cheias da sua presença luminosa» [39]. «O universo desenvolve-se em Deus, que o preenche completamente. E, portanto, há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre» [40]. O mundo canta um Amor infinito; como não cuidar dele?

Caminhar em comunhão e com responsabilidade

66. Deus uniu-nos a todas as suas criaturas. Contudo o paradigma tecnocrático pode isolar-nos daquilo que nos rodeia e engana-nos fazendo esquecer que o mundo inteiro é uma «zona de contacto» [41].

67. A cosmovisão judaico-cristã defende o valor peculiar e central do ser humano no meio do maravilhoso concerto de todos os seres, mas hoje somos obrigados a reconhecer que só é possível defender um «antropocentrismo situado», ou seja, reconhecer que a vida humana não se pode compreender nem sustentar sem as outras criaturas. De facto «nós e todos os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde» [42].

68. Isto não é um produto da nossa vontade, tem outra origem que se encontra na raiz do nosso ser, pois «Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação» [43]. Assim, acabamos com a ideia dum ser humano autónomo, omnipotente e ilimitado, e repensamos a nós próprios para nos compreendermos de maneira mais humilde e mais rica.

69. Convido cada um a acompanhar este percurso de reconciliação com o mundo que nos alberga e a enriquecê-lo com o próprio contributo, pois o nosso empenho tem a ver com a dignidade pessoal e com os grandes valores. Entretanto não posso negar que é necessário sermos sinceros e reconhecer que as soluções mais eficazes não virão só dos esforços individuais, mas sobretudo das grandes decisões da política nacional e internacional.

70. Apesar disso, tudo concorre para o conjunto e evitar o aumento de uma décima de grau na temperatura global poderia já ser suficiente para poupar sofrimentos a muitas pessoas. Mas, o que realmente importa é algo menos quantitativo: recordar-se de que não há mudanças duradouras sem mudanças culturais, sem uma maturação do modo de viver e das convicções da sociedade; não há mudanças culturais sem mudança nas pessoas.

71. Os esforços das famílias para poluir menos, reduzir os esbanjamentos, consumir de forma sensata estão a criar uma nova cultura. O simples facto de mudar os hábitos pessoais, familiares e comunitários alimenta a preocupação pelas responsabilidades não cumpridas pelos setores políticos e a indignação contra o desinteresse dos poderosos. Note-se, pois, que, mesmo se isto não produzir imediatamente um efeito muito relevante do ponto de vista quantitativo, contribui para realizar grandes processos de transformação que agem a partir do nível profundo da sociedade.

72. Se considerarmos que as emissões pro capite nos Estados Unidos são cerca do dobro das dum habitante da China e cerca de sete vezes superiores à média dos países mais pobres, [44] podemos afirmar que uma mudança generalizada do estilo de vida irresponsável ligado ao modelo ocidental teria um impacto significativo a longo prazo. Assim, juntamente com as indispensáveis decisões políticas, estaríamos no caminho do cuidado mútuo.

73. «Laudate Deum» é o título desta carta, porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo.

Dado em Roma, São João de Latrão, no dia 4 de outubro – festa de São Francisco de Assis – do ano 2023, décimo primeiro do meu pontificado.

FRANCISCUS



[1] Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos, Global Climate Change Background, 2019.

[2] Sínodo dos Bispos – Assembleia Especial para a Região Pan-Amazónica, Documento Final (outubro de 2019), 10: AAS 111 (2019), 1744.

[3] Simpósio das Conferências Episcopais de África e Madagáscar ( SCEAM), Diálogos Climáticos Africanos – Comunicado, Prefácio, Nairobi 17/X/2022.

[4] Cf. Intergovernmental Panel on Climate Change(IPCC), Climate Change 2021, The Physical Science Basis, Cambridge e Nova York 2021, B.2.2.

[5] Cf. Idem, Climate Change 2023, Synthesis Report, Summary for Policymakers, B.3.2. Referimo-nos a https://www.ipcc.ch/report/ar6/syr/downloads/report/IPCC_AR6_SYR_SPM.pdf para o Relatório 2023.

[6] Cf. United Nations Environment Program, The Emissions Gap Report 2022: https://www.unep.org/resources/emissions-gap-report-2022.

[7] Cf. National Oceanic and Atmospheric Administration, Earth System Research Laboratories, Global Monitoring Laboratory , Trends in Atmospheric Carbon Dioxide: https://www.gml.noaa.gov/ccgg/trends/.

[8] Cf. IPCC, Climate Change 2023, Synthesis Report, Summary for Policymakers, A.1.3.

[9] Cf. Ibid., B.5.3.

[10] Estes dados do Intergovernamental Panel on Climate Change (IPCC) estão baseados em cerca de 34.000 estudos. Cf. IPCC, Synthesis Report of the Sixth Assessment Report (20/03/2023): AR6 Synthesis Report Climate – Change 2023.

[11] Cf. IPCC, Climate Change 2023, Synthesis Report, Summary for Policymakers, A.1.2.

[12] Cf. Ibidem.

[13] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24/V/2015), 101: AAS 107 (2015), 887.

[14] Ibid., 105: o. c., 889.

[15] Ibid., 106: o. c., 890.

[16] Ibid., 104: o. c., 888-889.

[17] Ibid., 105: o .c., 889.

[18] Ibid., 139: o. c., 903.

[19] Ibid., 220: o. c., 934.

[20] Cf. S. Sörlin – P. Warde, «Making the Environment Historical – an Introduction», in AUTORES VÁRIOS, Nature’s End: History and the Environment, Basingstoke – Nova Yorque 2009, 1-23.

[21] Carta enc. Laudato si’, 139: o. c., 903.

[22] V. Soloviev, Os três diálogos e o relato do Anticristo, Ecclesiæ – Campinas 2021.


[24] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (03/X/2020), 11: AAS 112 (2020), 972.

[25] Ibid., 174: o. c., 1030.

[26] Ibid., 172: o. c., 1029.


[28] Cf. ibid., 170: o. c., 1029.


[30] Ibid., 175: o. c., 1031.

[31] Carta enc. Laudato si’, 179: o. c., 918.

[32] Carta enc. Laudato si’, 167: o. c., 914.

[33] Ibid., 169: o. c., 915.

[34] Carta enc. Laudato si’, 111: o. c., 982.

[35] Ibid., 57: o. c., 870.

[36] Carta enc. Laudato si’, 68: o. c., 874.

[37] Ibid., 86: o. c., 881.

[38] Ibid., 97: o. c., 886.

[39] Ibid., 100: o. c., 887.

[40] Ibid., 233: o. c., 938.

[41] Cf. D.J. Haraway, Quando as espécies se encontram, Ubu Editora – São Paulo 2022.

[42] Carta enc. Laudato si’, 89: o. c., 883.

[43] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24/XI/2013), 215: AAS 105 (2013), 1109.

[44] Cf. United Nations Environment Program, Emission Gap Report 2022: https://www.unep.org/resources/emissions-gap-report-2022.

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Fonte: Site da  A Santa Sé