Em momentos de guerra, não tem como não ficarmos espantados pelas cenas de horror e barbárie de sofrimento, destruição e genocídios que estamos vendo na Ucrânia. O povo sofre, os refugiados se multiplicam. Em pleno século XXI, não acreditamos ser possível presenciarmos um conflito que pode tomar proporção enorme ser concretizado pela falta de habilidade democrática das nossas instituições, além do contraste de pensamento de parte do mundo, que não se situa dentro de um horizonte de democracia e pluralidade.
Após a segunda guerra mundial, diversos filósofos se perguntavam sobre o porquê do holocausto, da ascensão de regimes sangrentos e totalitários e, sobretudo, o que teríamos aprendido com a História e como poderíamos evitar novos eventos do tipo. É verdade que a criação da ONU e a consolidação de tratados de direitos humanos e avanços no direito internacional e humanitário propiciaram um fortalecimento da democracia e do consequente diálogo. Por outro lado, em diversos momentos e contextos regimes democráticos são atacados pela via das decisões não-racionais, pelos afetos, sobretudo pelo medo e pelo ódio. A xenofobia é um exemplo disso. A falência das democracias europeias, em sua maioria, que lidam bem com a liberdade, mas não com a fraternidade.
Qualquer ato contra a vida, inserido em ideologias, religiões ou políticas totalitárias ou democráticas exemplifica a barbárie e o fracasso da humanidade. Quando o Estado (mínimo) permite a existência de pessoas vivendo com o mínimo necessário à sua dignidade, sem moradia, comida, educação, aí está a barbárie! Também quando um regime fuzila pessoas que se colocam politicamente contrárias ao seu regime, também está aí a barbárie!
Theodor Adorno, filósofo alemão contemporâneo, afirmou que o mais urgente de pensarmos é uma educação que, de todas as maneiras, evite um novo holocausto, novo Auschwitz. Como fazer isso em termos globais hoje? Certamente não será por uma via de isolamento e ausência de diálogo. Todo movimento contrário à democracia, à ciência e a uma globalização efetiva não se colocam como vias eficazes. Logicamente, democracia e globalização devem andar juntas, de forma que os problemas globais sejam enfrentados de forma real, efetiva e verdadeiramente conjunta. A economia global, empresas, agentes financeiros, não podem ignorar os problemas sociais, as feridas à democracia e à vida. Um regime que tire a vida de forma banal não deve ser considerado da mesma maneira em negociações. É preciso limitar as hipocrisias. Temos que condenar todos os sistemas totalitários, sejam aqueles motivados por critérios fundamentalistas religiosos, sejam aqueles baseados em ideologias.
O problema não é a globalização em si, mas sim o fato dela ser motivada apenas pela esfera econômica. Nacionalismos, extremismos, xenofobia devem ser constantemente desconstruídos. O sentimento proveniente da existência do Estado-Nação deve dar lugar àquele originado de uma solidariedade universal.
Paul Ricoeur, filósofo francês, afirma que, diante de situações-limites, nos aproximamos. É a partir do testemunho de Lucie Hacpille, médica de cuidados paliativos, que essa distinção se opera claramente para o filósofo. De acordo com a médica, os doentes prestes a morrer não têm a percepção de si mesmos enquanto “moribundos”, isto é, como quem vai morrer daí a pouco, mas antes como “ainda vivos”, ainda que não mais estejam que a alguns minutos do seu falecimento. Para o “agonizante”, “ainda estar vivo” significa a emergência da mobilização dos recursos mais profundos da vida, que lhe permitem ainda se afirmar. Ela é, por assim dizer, o “Essencial” na trama do tempo da agonia. Esse “Essencial” que é, em certo sentido, o religioso, ou o religioso em comum, o qual transgride as limitações consubstanciais ao religioso confessional e confessado no limiar da morte. Em momentos de sofrimento dos povos, nos aproximamos em Espírito. Esse momento de mobilização é um momento de graça interior. Ele remete para a aparição da “coragem de estar vivo até à morte” quando a vida se escreve, face à morte, com um V maiúsculo. Contudo, pensar esse momento e a sua força, é também correr o risco de resvalar para a literatura sobre as experiências místicas: por isso mesmo, é preciso saber simultaneamente dar mostras de alguma desconfiança, enquanto se acolhe a graça interior de um determinado morrer.
Ricœur atesta o “olhar” da “compaixão” daqueles que lutam juntamente ao agonizante e os que o acompanham até à morte (Ricoeur 2007, 41). Esse “olhar” diferencia-se daquele que vê o agonizante como um moribundo que em breve deixará de viver. Não é também o do espectador que já se adianta à morte: esse “olhar” também vê o agonizante como “ainda vivo”. Também ele faz um apelo aos recursos mais profundos da vida, como se fosse levado pela emergência do “Essencial” na sua vivência de ainda-vivente. A “compaixão” não significa aqui somente o “sofrer-com”, mas também o “lutar-com” e o “acompanhamento” (Ibid.). Ela torna possível a partilha de um movimento de transcendência íntima. Ricœur desenvolve, de forma bastante fina, o “acompanhamento” do “agonizante” como “amizade no morrer acompanhado”.
É o que estamos presenciando na Ucrânia. O Papa Francisco enfatizou o drama e a realidade do conflito: “Rios de sangue e lágrimas correm na Ucrânia, não se trata apenas de uma operação militar, e sim de uma guerra que que semeia morte, destruição e miséria” (Angelus, 06/03/2022). Como não se comover com famílias sendo separadas? Hospitais sendo bombardeados? Número crescente de refugiados, pessoas tentando desesperadamente sair do país, deixando suas casas, suas vidas, suas lutas diárias? Não, a Rússia e seu sistema totalitário, bem como os que a apoiam, não encontram em lugar algum justificativa plausível às atrocidades. Assim como não encontram o sistema totalitário sírio, saudita, dos Emirados Árabes (que bombardeiam o Iêmen incessantemente, gerando destruição, morte, fome, caos…) ou da China que oprime a minoria muçulmana que vive em seu território. Sistemas que impedem a liberdade ou não permitem a igualdade, são fracassados… Sim, são muitos os exemplos, nesses casos. O mundo fracassa, mas não é uma condição natural, é possível a mudança. Um outro mundo é possível!
A educação deve contribuir para a efetivação desse processo. Por mais filosofia e menos educação “moral” e cívica. Por mais crítica, reflexão, humanismo e menos tecnicismos limitados. Alteridade deve ser a palavra-chave da educação no século XXI.
Se há relações se inaugura o rompimento da totalidade da guerra, significa interromper a guerra e inaugura-se o novo, o escatológico. Assim, surge uma relação originária com o ser, no interior da experiência. Escapa-se, assim, do ser impessoal que propôs Heidegger. Lévinas propõe aqui a Escatologia da Paz Messiânica, na ordem da experiência, da linguagem, da política e totalitarismos. Dentro da ontologia é possível verificar uma relação entre os sujeitos que, ao falarem, aniquilam as diferenças. Assim, nosso pensador está em um caminho oposto a Hegel, que supõem um caminho do conceito e da consciência rumo a uma totalidade e a um fim. No Estado os sujeitos são “impessoalizados”. É preciso se voltar para o encontro com o outro, acontecendo uma acolhida. O Eschaton vem justamente do encontro com o outro.
O Infinito ou Deus não se comunica de maneira imediata, mas sim mediata, no face a face com o outro. Não foi a expressão “face a face” herdada da linguagem bíblica? Mas na Bíblia trata-se do face a face com Deus. Face a face vivido por Moisés (Ex 33, 11: “O Senhor falava com Moisés, face a face, como se fala a uma pessoa”), desejado pelo salmista (Sl 13, 2; 17; 15), mas na maior parte das vezes recusado: “não podes ver minha face pois o humano não pode me ver e continuar em vida” (Ex 33,20; 33,23). Esse face a face com Deus é transposto por Lévinas como face a face com o outro. O rosto do outro não é da ordem do visível, nem mesmo do ver. Ele não é a figura cujos traços da boca ou dos olhos eu possa detalhar. Ter acesso ao rosto não é observá-lo, contemplá-lo, subtrair-lhe o rosto. O rosto é da ordem da palavra. Ele significa não como uma figura sobre um fundo, mas sem contexto, independentemente de seus contextos social, racial, cultural ou religioso, independentemente de sua carteira de identidade ou de seu passaporte. Ele enuncia um mandamento: “não matarás” ou “não cometerás assassinato”.
---------------------
René Dentz
É católico leigo, professor do departamento de Filosofia e do curso de Psicologia-Praça da Liberdade na PUC-Minas, onde também atua como membro da equipe executiva do Observatório da Evangelização. Psicanalista, doutor em Teologia pela FAJE, com pós-doutorado pelas Université de Fribourg/Suíça, Universidade Católica Portuguesa e PUC-Rio. É comentarista da TV Horizonte e da Rádio Itatiaia. Autor de 7 livros, dentre os quais “Horizontes de Perdão” (Ideias e Letras, 2020). Pesquisador do Grupo de Pesquisa CAPES “Mundo do trabalho, ética e teologia”, na FAJE-BH.
-----------
Fonte: Observatório da Evangelização - Puc Minas