17 janeiro, 2020

Cinco livros que revelam a marca deixada pela escravidão na literatura


Professor de história e estudos afro-americanos na Universidade de Harvard, Sidney Chalhoub indica cinco livros que revelam a marca deixada pela escravidão na literatura

A escravidão moldava a literatura brasileira do século 19 de diferentes formas, nem sempre muito aparentes. Apesar de tudo que se escreveu sobre ela de modo direto – em peças teatrais, poesia, romances, contos e crônicas –, a tendência de longo prazo, salvo exceções, como no caso da poesia de Castro Alves, foi incorporar ao cânone obras outras, que supostamente nada diziam sobre a horrenda instituição.


Playing in the dark: whiteness and the literary imagination
Toni Morrison (Vintage Books, 1993)

O problema das representações sobre a escravidão em obras canônicas, quase sempre escritas por homens brancos, era comum às literaturas das principais sociedades escravistas do século 19 – Estados Unidos, Brasil e Cuba. Em texto de reflexão teórica sobre a presença da escravidão e do racismo no cânone literário norte-americano, Morrison mostra que, apesar de ocupar pouco espaço na superfície do texto, episódios que revelavam a injustiça racial estruturante da experiência histórica dos autores e seus personagens eram com frequência a chave de narrativas que aparentemente giravam em torno de outros assuntos.

Memórias póstumas de Brás Cubas
Machado de Assis (1881, várias edições)

Machado de Assis inventou narradores muito fincados em seu lugar de classe, gênero e raça. Brás Cubas foi sujeito de família ilustre, herdeiro de grossos cabedais, senhor de escravos e, quanto às mulheres, imaginava-se grande sedutor e controlador delas. Ao rememorar episódios de sua vida, conta dos preparativos para uma festa quando ainda era menino, para a qual “lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas, escadas, castiçais, arandelas”. O uso da voz passiva esconde os sujeitos desses verbos todos a descrever o trabalho realizado: os escravizados da família labutaram para garantir o desfrute de Brás e seus pares.

Quincas Borba
Machado de Assis (1891, várias edições)

O narrador de “Quincas Borba” tem acesso livre às mentes das personagens da estória que conta. Todavia, exerce essa prerrogativa a partir de sua subjetividade, marcada por seu lugar social. Nas dezenas de capítulos iniciais do romance, acompanha de perto os pensamentos de Rubião, nada diz sobre o que ia na cabeça de Sofia, de modo que os leitores são levados a acreditar que esta mulher casada ardia por ter um caso com aquele simplório de Barbacena. Acusada por Palha, seu marido, de ter dado corda ao conquistador, Sofia chega ao auge de sua irritação com o cônjuge ao ver “um pobre preto velho que, em frente à casa dela, trepava com dificuldade um pedaço de morro. As cautelas do preto buliam-lhe com os nervos”. O narrador não explica, talvez não entenda, que Sofia percebeu compartilhar com o negro escravizado a experiência do jugo senhorial, masculino, de gente como Palha, que se achava senhor tanto dela quanto de negros escravizados.

Escritos de liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista
Ana Flávia Magalhães Pinto (Editora Unicamp, 2018)

Para entender a imaginação literária de alguém como Machado de Assis, nenhuma massa de informação é suficiente, mas muita coisa é indispensável. “Escritos de liberdade” insere Machado de Assis num elenco formidável de intelectuais negros seus contemporâneos, entre os quais Luiz Gama, José do Patrocínio e Ferreira de Menezes. Ao observar o processo de crise da escravidão e a configuração das ideologias racistas do período, esses pensadores negros enfrentavam o problema comum de lidar com gente como Silvio Romero, autor influente à época, capaz de acreditar em estultices tais como esta: “o negro é um ponto de vista vencido na escala etnográfica”.


As máscaras de Lélio: política e humor nas crônicas de Machado de Assis (1883-1886)
Ana Flávia Cernic Ramos (Editora Unicamp, 2016)

A literatura brasileira do século 19 acontecia na imprensa. Era lá que romances apareciam em capítulos nos folhetins, ao lado de contos, poesia e muita matéria jornalística carregada de procedimentos de ficcionalização – quer dizer, marcada por estratégias narrativas pertinentes à literatura. A crônica era o gênero por excelência dessa convivência entre notícia e literatura, entre jornalismo e experimentação literária. “As máscaras de Lélio” é um estudo denso e inspirador de uma série coletiva de crônicas, intitulada “Balas de Estalo”, na qual Machado de Assis participou por alguns anos, e na qual comentou em detalhe a crise da escravidão na década de 1880.

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Sidney Chalhoub é professor dos departamentos de História e de Estudos Africanos e Afro-americanos, Harvard University. É professor titular colaborador da Unicamp. Fez a indicação editorial e escreveu o posfácio do romance “Fantina: cenas da escravidão”, de Duarte Badaró, de 1881, republicado em 2019 pela Chão Editora.

Fonte: .nexojornal.com.br

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