Professor de história e estudos afro-americanos na
Universidade de Harvard, Sidney Chalhoub indica cinco livros que revelam a
marca deixada pela escravidão na literatura
A escravidão moldava a literatura brasileira do século 19 de
diferentes formas, nem sempre muito aparentes. Apesar de tudo que se escreveu
sobre ela de modo direto – em peças teatrais, poesia, romances, contos e
crônicas –, a tendência de longo prazo, salvo exceções, como no caso da poesia
de Castro Alves, foi incorporar ao cânone obras outras, que supostamente nada
diziam sobre a horrenda instituição.
Playing in the dark: whiteness and the literary
imagination
Toni Morrison
(Vintage Books, 1993)
O problema das representações sobre a escravidão em obras
canônicas, quase sempre escritas por homens brancos, era comum às literaturas
das principais sociedades escravistas do século 19 – Estados Unidos, Brasil e
Cuba. Em texto de reflexão teórica sobre a presença da escravidão e do racismo
no cânone literário norte-americano, Morrison mostra que, apesar de ocupar
pouco espaço na superfície do texto, episódios que revelavam a injustiça racial
estruturante da experiência histórica dos autores e seus personagens eram com
frequência a chave de narrativas que aparentemente giravam em torno de outros
assuntos.
Memórias póstumas de
Brás Cubas
Machado de Assis
(1881, várias edições)
Machado de Assis inventou narradores muito fincados em seu
lugar de classe, gênero e raça. Brás Cubas foi sujeito de família ilustre,
herdeiro de grossos cabedais, senhor de escravos e, quanto às mulheres,
imaginava-se grande sedutor e controlador delas. Ao rememorar episódios de sua
vida, conta dos preparativos para uma festa quando ainda era menino, para a
qual “lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas, escadas, castiçais,
arandelas”. O uso da voz passiva esconde os sujeitos desses verbos todos a
descrever o trabalho realizado: os escravizados da família labutaram para
garantir o desfrute de Brás e seus pares.
Quincas Borba
Machado de Assis
(1891, várias edições)
O narrador de “Quincas Borba” tem acesso livre às mentes das
personagens da estória que conta. Todavia, exerce essa prerrogativa a partir de
sua subjetividade, marcada por seu lugar social. Nas dezenas de capítulos
iniciais do romance, acompanha de perto os pensamentos de Rubião, nada diz
sobre o que ia na cabeça de Sofia, de modo que os leitores são levados a
acreditar que esta mulher casada ardia por ter um caso com aquele simplório de
Barbacena. Acusada por Palha, seu marido, de ter dado corda ao conquistador,
Sofia chega ao auge de sua irritação com o cônjuge ao ver “um pobre preto velho
que, em frente à casa dela, trepava com dificuldade um pedaço de morro. As
cautelas do preto buliam-lhe com os nervos”. O narrador não explica, talvez não
entenda, que Sofia percebeu compartilhar com o negro escravizado a experiência
do jugo senhorial, masculino, de gente como Palha, que se achava senhor tanto
dela quanto de negros escravizados.
Escritos de
liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista
Ana Flávia Magalhães
Pinto (Editora Unicamp, 2018)
Para entender a imaginação literária de alguém como Machado
de Assis, nenhuma massa de informação é suficiente, mas muita coisa é
indispensável. “Escritos de liberdade” insere Machado de Assis num elenco
formidável de intelectuais negros seus contemporâneos, entre os quais Luiz
Gama, José do Patrocínio e Ferreira de Menezes. Ao observar o processo de crise
da escravidão e a configuração das ideologias racistas do período, esses
pensadores negros enfrentavam o problema comum de lidar com gente como Silvio
Romero, autor influente à época, capaz de acreditar em estultices tais como
esta: “o negro é um ponto de vista vencido na escala etnográfica”.
As máscaras de Lélio:
política e humor nas crônicas de Machado de Assis (1883-1886)
Ana Flávia Cernic
Ramos (Editora Unicamp, 2016)
A literatura brasileira do século 19 acontecia na imprensa.
Era lá que romances apareciam em capítulos nos folhetins, ao lado de contos,
poesia e muita matéria jornalística carregada de procedimentos de
ficcionalização – quer dizer, marcada por estratégias narrativas pertinentes à
literatura. A crônica era o gênero por excelência dessa convivência entre
notícia e literatura, entre jornalismo e experimentação literária. “As máscaras
de Lélio” é um estudo denso e inspirador de uma série coletiva de crônicas,
intitulada “Balas de Estalo”, na qual Machado de Assis participou por alguns
anos, e na qual comentou em detalhe a crise da escravidão na década de 1880.
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Sidney Chalhoub é
professor dos departamentos de História e de Estudos Africanos e
Afro-americanos, Harvard University. É professor titular colaborador da
Unicamp. Fez a indicação editorial e escreveu o posfácio do romance “Fantina:
cenas da escravidão”, de Duarte Badaró, de 1881, republicado em 2019 pela Chão
Editora.
Fonte: .nexojornal.com.br
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