09 outubro, 2020

Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social Capítulo I - continuação

 


Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social 
Capítulo I - continuação 

Leitura da Carta Encíclica FRATELLI TUTTI do Santo Padre FRANCISCO sobre a Fraternidade e Amizade Social. 

Capítulo I: As sombras dum mundo fechado. 

nn. 29-31, Título 7: Globalização e progresso sem um rumo comum. 
nn. 32-36, Título 8: As pandemias e outros flagelos da história. 
nn. 37-41, Título 9: Sem dignidade humana nas fronteiras. 


CARTA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI DO SANTO PADRE FRANCISCO 
SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL 

Capítulo I 
AS SOMBRAS DUM MUNDO FECHADO 

Globalização e progresso sem um rumo comum 

29. O Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb e eu não ignoramos os avanços positivos que se verificaram na ciência, na tecnologia, na medicina, na indústria e no bem-estar, sobretudo nos países desenvolvidos. Todavia «ressaltamos que, juntamente com tais progressos históricos, grandes e apreciados, se verifica uma deterioração da ética, que condiciona a atividade internacional, e um enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido de responsabilidade. Tudo isto contribui para disseminar uma sensação geral de frustração, solidão e desespero, (…) nascem focos de tensão e se acumulam armas e munições, numa situação mundial dominada pela incerteza, pela decepção e pelo medo do futuro e controlada por míopes interesses económicos». Assinalamos também «as graves crises políticas, a injustiça e a falta duma distribuição equitativa dos recursos naturais (…). A respeito de tais crises que fazem morrer à fome milhões de crianças, já reduzidas a esqueletos humanos por causa da pobreza e da fome, reina um inaceitável silêncio internacional».[27] Perante tal panorama, embora nos fascinem os inúmeros avanços, não descortinamos um rumo verdadeiramente humano. 

30. No mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia doutros tempos. Vemos como reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilusão que se esconde por detrás desta ilusão enganadora: considerar que podemos ser omnipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco. Esta desilusão, que deixa para trás os grandes valores fraternos, conduz «a uma espécie de cinismo. Esta é a tentação que temos diante de nós, se formos por este caminho do desengano ou da desilusão. (…) O isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma renovação, mas é a proximidade, a cultura do encontro. O isolamento, não; a proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim».[28] 

31. Neste mundo que corre sem um rumo comum, respira-se uma atmosfera em que «a distância entre a obsessão pelo próprio bem-estar e a felicidade da humanidade partilhada parece aumentar: até fazer pensar que entre o indivíduo e a comunidade humana já esteja em curso um cisma. (...) Porque uma coisa é sentir-se obrigado a viver juntos, outra é apreciar a riqueza e a beleza das sementes de vida em comum que devem ser procuradas e cultivadas em conjunto».[29] A tecnologia regista progressos contínuos, mas «como seria bom se, ao aumento das inovações científicas e tecnológicas, correspondesse também uma equidade e uma inclusão social cada vez maior! Como seria bom se, enquanto descobrimos novos planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã que orbitam ao nosso redor!»[30] 

As pandemias e outros flagelos da história 

32. É verdade que uma tragédia global como a pandemia do Covid-19 despertou, por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos. Recordamo-nos de que ninguém se salva sozinho, que só é possível salvar-nos juntos. Por isso, «a tempestade – dizia eu – desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. (…) Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso “eu” sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, esta (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos».[31] 

33. O mundo avançava implacavelmente para uma economia que, utilizando os progressos tecnológicos, procurava reduzir os «custos humanos»; e alguns pretendiam fazer-nos crer que era suficiente a liberdade de mercado para garantir tudo. Mas, o golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controle obrigou, por força, a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que nos benefícios de alguns. Hoje podemos reconhecer que «alimentamo-nos com sonhos de esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração, fechamento e solidão; empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade. Buscamos o resultado rápido e seguro, e encontramo-nos oprimidos pela impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da realidade».[32] A tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência. 

34. Se tudo está interligado, é difícil pensar que este desastre mundial não tenha a ver com a nossa maneira de encarar a realidade, pretendendo ser senhores absolutos da própria vida e de tudo o que existe. Não quero dizer que se trate duma espécie de castigo divino. Nem seria suficiente afirmar que o dano causado à natureza acaba por se cobrar dos nossos atropelos. É a própria realidade que geme e se rebela… Vem à mente o conhecido verso do poeta Virgílio evocando as lágrimas das coisas, das vicissitudes da história.[33] 

35. Contudo rapidamente esquecemos as lições da história, «mestra da vida».[34] Passada a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e em novas formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam «os outros», mas apenas um «nós». Oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de aprender. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de respiradores, em parte como resultado de sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano após ano. Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as vozes, livre das fronteiras que criamos. 

36. Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio. Além disso, não se deveria ignorar, ingenuamente, que «a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição recíproca».[35] O princípio «salve-se quem puder» traduzir-se-á rapidamente no lema «todos contra todos», e isso será pior que uma pandemia. 

Sem dignidade humana nas fronteiras 

37. Tanto na propaganda dalguns regimes políticos populistas como na leitura de abordagens económico-liberais, defende-se que é preciso evitar a todo o custo a chegada de pessoas migrantes. Simultaneamente argumenta-se que convém limitar a ajuda aos países pobres, para que toquem o fundo e decidam adotar medidas de austeridade. Não se dão conta que, atrás destas afirmações abstratas difíceis de sustentar, há muitas vidas dilaceradas. Muitos fogem da guerra, de perseguições, de catástrofes naturais. Outros, com pleno direito, «andam à procura de oportunidades para si e para a sua família. Sonham com um futuro melhor, e desejam criar condições para que se realize».[36] 

38. Infelizmente, outros são «atraídos pela cultura ocidental, nutrindo por vezes expetativas irrealistas que os expõem a pesadas decepções. Traficantes sem escrúpulos, frequentemente ligados a cartéis da droga e das armas, exploram a fragilidade dos imigrantes, que, ao longo do seu percurso, muitas vezes encontram a violência, o tráfico de seres humanos, o abuso psicológico e mesmo físico e tribulações indescritíveis».[37] As pessoas que emigram «experimentam a separação do seu contexto de origem e, muitas vezes, também um desenraizamento cultural e religioso. A fratura tem a ver também com as comunidades de origem, que perdem os elementos mais vigorosos e empreendedores, e as famílias, particularmente quando emigra um ou ambos os progenitores, deixando os filhos no país de origem».[38] Por conseguinte, também deve ser «reafirmado o direito a não emigrar, isto é, a ter condições para permanecer na própria terra».[39] 

39. Ainda por cima, «nalguns países de chegada, os fenómenos migratórios suscitam alarme e temores, frequentemente fomentados e explorados para fins políticos. Assim se difunde uma mentalidade xenófoba, de clausura e retraimento em si mesmos».[40] Os migrantes não são considerados suficientemente dignos de participar na vida social como os outros, esquecendo-se que têm a mesma dignidade intrínseca de toda e qualquer pessoa. Consequentemente, têm de ser eles os «protagonistas da sua própria promoção».[41] Nunca se dirá que não sejam humanos, mas na prática, com as decisões e a maneira de os tratar, manifesta-se que são considerados menos valiosos, menos importantes, menos humanos. É inaceitável que os cristãos partilhem esta mentalidade e estas atitudes, fazendo às vezes prevalecer determinadas preferências políticas em vez das profundas convicções da sua própria fé: a dignidade inalienável de toda a pessoa humana, independentemente da sua origem, cor ou religião, e a lei suprema do amor fraterno. 

40. «As migrações constituirão uma pedra angular do futuro do mundo».[42] Hoje, porém, são afetadas por uma «perda daquele sentido de responsabilidade fraterna, sobre o qual assenta toda a sociedade civil».[43] A Europa, por exemplo, corre sérios riscos de ir por este caminho. Entretanto, «ajudada pelo seu grande património cultural e religioso, possui os instrumentos para defender a centralidade da pessoa humana e encontrar o justo equilíbrio entre estes dois deveres: o dever moral de tutelar os direitos dos seus cidadãos e o dever de garantir a assistência e o acolhimento dos imigrantes».[44] 



41. Compreendo que alguns tenham dúvidas e sintam medo à vista das pessoas migrantes; compreendo-o como um aspeto do instinto natural de autodefesa. Mas também é verdade que uma pessoa e um povo só são fecundos, se souberem criativamente integrar no seu seio a abertura aos outros. Convido a ultrapassar estas reações primárias, porque «o problema surge quando [estas dúvidas e este medo] condicionam de tal forma o nosso modo de pensar e agir, que nos tornam intolerantes, fechados, talvez até – sem disso nos apercebermos – racistas. E assim o medo priva-nos do desejo e da capacidade de encontrar o outro».[45] 

______________ 

[27] Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 21. 

[28] Francisco, Discurso ao mundo académico e cultural (Cagliari – Itália 22 de setembro de 2013): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 29/IX/2013), 8. 

[29] Idem, Carta «Humana communitas» ao Presidente da Academia Pontifícia para a Vida por ocasião do XXV aniversário da sua instituição (6 de janeiro de 2019), 2.6: L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 22/I/2019), 8-9. 

[30] Idem, Vídeo-mensagem ao encontro internacional TED2017 em Vancouver (26 de abril de 2017): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 04/V/2017), 16. 

[31] Homilia durante o Momento extraordinário de oração em tempos de epidemia (27 de março de 2020): L´Osservatore Romano (29/III/2020), 10. 

[32] Francisco, Homilia durante a Santa Missa (Skopje – Macedónia do Norte 7 de maio de 2019): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 14/V/2019), 11. 

[33] Cf. Eneida I, 462: «Sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt – são lágrimas das coisas, as peripécias dos mortais confrangem a alma». 

[34] «Historia (…) magistra vitae» (Cícero, De Oratore, 2, 36). 

[35] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 204: AAS 107 (2015), 928. 

[36] Idem, Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit (25 de março de 2019), 91. 

[37] Ibid., 92. 

[38] Ibid., 93. 

[39] Bento XVI, Mensagem para o 99º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado em 2013 (12 de outubro de 2012): AAS 104 (2012), 908. 

[40] Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit (25 de março de 2019), 92. 

[41] Idem, Mensagem para o 106º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado em 2020 (13 de maio de 2020): L’Osservatore Romano (16/V/2020), 8. 

[42] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (11 de janeiro de 2016): AAS 108 (2016), 124. 

[43] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (13 de janeiro de 2014): AAS 106 (2014), 84. 

[44] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (11 de janeiro de 2016): AAS 108 (2016), 123. 

[45] Francisco, Mensagem para o 105º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado em 2019 (27 de maio de 2019): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 04/VI/2019), 12. 

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