09 outubro, 2020

Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social Capítulo I

Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social Capítulo I 

Leitura da Carta Encíclica FRATELLI TUTTI do Santo Padre FRANCISCO sobre a Fraternidade e Amizade Social. 

Capítulo I: As Sombras dum fechado. 

nn. 18-21, Título 4: O descarte mundial. 
nn. 22-24, Título 5: Direitos Humanos nãosuficientemente universais. 
nn. 25-28, Título 6: Conflito e medo. 

CARTA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI DO SANTO PADRE FRANCISCO SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL 


Capítulo I 
AS SOMBRAS DUM MUNDO FECHADO 

O descarte mundial 

18. Partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção que favorece a um setor humano digno de viver sem limites. No fundo, «as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem” (como os nascituros) ou “já não servem” (como os idosos). Tornamo-nos insensíveis a qualquer forma de desperdício, a começar pelo alimentar, que aparece entre os mais deploráveis».[13] 

19. A falta de filhos, que provoca um envelhecimento da população, juntamente com o abandono dos idosos numa dolorosa solidão, exprimem implicitamente que tudo acaba connosco, que só contam os nossos interesses individuais. Assim, «objeto de descarte não são apenas os alimentos ou os bens supérfluos, mas muitas vezes os próprios seres humanos».[14] Vimos o que aconteceu com as pessoas de idade nalgumas partes do mundo por causa do coronavírus. Não deviam morrer assim. Na realidade, porém, tinha já acontecido algo semelhante devido às ondas de calor e noutras circunstâncias: cruelmente descartados. Não nos damos conta de que isolar os idosos e abandoná-los à responsabilidade de outros sem um acompanhamento familiar adequado e amoroso mutila e empobrece a própria família. Além disso, acaba por privar os jovens daquele contacto que lhes é necessário com as suas raízes e com uma sabedoria que a juventude, sozinha, não pode alcançar. 

20. Este descarte exprime-se de variadas maneiras como, por exemplo, na obsessão por reduzir os custos laborais sem se dar conta das graves consequências que provoca, pois o desemprego daí resultante tem como efeito direto alargar as fronteiras da pobreza.[15] Além disso, o descarte assume formas abjetas, que julgávamos já superadas, como o racismo que se dissimula mas não cessa de reaparecer. De novo nos envergonham as expressões de racismo, demonstrando assim que os supostos avanços da sociedade não são assim tão reais nem estão garantidos duma vez por todas. 

21. Há regras económicas que foram eficazes para o crescimento, mas não de igual modo para o desenvolvimento humano integral.[16] Aumentou a riqueza, mas sem equidade, e assim «nascem novas pobrezas».[17] Quando dizem que o mundo moderno reduziu a pobreza, fazem-no medindo-a com critérios doutros tempos não comparáveis à realidade atual. Pois noutros tempos, por exemplo, não ter acesso à energia elétrica não era considerado um sinal de pobreza nem causava grave incómodo. A pobreza sempre se analisa e compreende no contexto das possibilidades reais dum momento histórico concreto. 

Direitos humanos não suficientemente universais 

22. Muitas vezes constata-se que, de facto, os direitos humanos não são iguais para todos. O respeito destes direitos «é condição preliminar para o próprio progresso económico e social de um país. Quando a dignidade do homem é respeitada e os seus direitos são reconhecidos e garantidos, florescem também a criatividade e a audácia, podendo a pessoa humana explanar suas inúmeras iniciativas a favor do bem comum».[18] Mas, «observando com atenção as nossas sociedades contemporâneas, deparamos com numerosas contradições que induzem a perguntar-nos se deveras a igual dignidade de todos os seres humanos, solenemente proclamada há 70 anos, é reconhecida, respeitada, protegida e promovida em todas as circunstâncias. Persistem hoje no mundo inúmeras formas de injustiça, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um modelo económico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o homem. Enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, outra parte vê a própria dignidade não reconhecida, desprezada ou espezinhada e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados».[19] Que diz isto a respeito da igualdade de direitos fundada na mesma dignidade humana? 

23. De modo análogo, a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra. Com efeito, «duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos».[20] 

24. Reconhecemos igualmente que, «apesar de a comunidade internacional ter adotado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este fenómeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura. (…) Hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma conceção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objeto. (…) Com a força, o engano, a coação física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim». As redes criminosas «utilizam habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo».[21] E a aberração não tem limites quando são subjugadas mulheres, forçadas depois a abortar; um ato abominável que chega mesmo ao sequestro da pessoa, para vender os seus órgãos. Isto torna o tráfico de pessoas e outras formas atuais de escravatura num problema mundial que precisa de ser tomado a sério pela humanidade no seu conjunto, porque «assim como as organizações criminosas usam redes globais para alcançar os seus objetivos, assim também a ação para vencer este fenómeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes atores que compõem a sociedade».[22] 

Conflito e medo 

25. As guerras, os atentados, as perseguições por motivos raciais ou religiosos e tantas afrontas contra a dignidade humana são julgados de maneira diferente, segundo convenham ou não a certos interesses fundamentalmente económicos: o que é verdade quando convém a uma pessoa poderosa, deixa de o ser quando já não a beneficia. Estas situações de violência vão-se «multiplicando cruelmente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir os contornos daquela que se poderia chamar uma “terceira guerra mundial por pedaços”».[23] 

26. Isto não surpreende, se atendermos à falta de horizontes capazes de nos fazer convergir para a unidade, pois em qualquer guerra o que acaba destruído é «o próprio projeto de fraternidade, inscrito na vocação da família humana», pelo que «toda a situação de ameaça alimenta a desconfiança e a retirada».[24] Assim, o nosso mundo avança numa dicotomia sem sentido, pretendendo «garantir a estabilidade e a paz com base numa falsa segurança sustentada por uma mentalidade de medo e desconfiança».[25] 

27. Paradoxalmente, existem medos ancestrais que não foram superados pelo progresso tecnológico; mais ainda, souberam esconder-se e revigorar-se por detrás das novas tecnologias. Também hoje, atrás das muralhas da cidade antiga está o abismo, o território do desconhecido, o deserto. O que vier de lá não é fiável, porque desconhecido, não familiar, não pertence à aldeia. Trata-se do território do que é «bárbaro», do qual há que defender-se a todo o custo. Consequentemente, criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o «meu» mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser apenas «os outros». Reaparece «a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer os muros, muros no coração, muros na terra, para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas. E quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes. Porque lhe falta esta alteridade».[26] 

28. A solidão, os medos e a insegurança de tantas pessoas que se sentem abandonadas pelo sistema, fazem com que se crie um terreno fértil para as máfias. Com efeito, estas impõem-se apresentando-se como «protetoras» dos esquecidos, muitas vezes através de vários tipos de ajuda, enquanto perseguem os seus interesses criminosos. Há uma pedagogia tipicamente mafiosa que, com um falso espírito comunitário, cria laços de dependência e subordinação, dos quais é muito difícil libertar-se. 

______________ 

[13] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (11 de janeiro de 2016): AAS 108 (2016), 120. 

[14] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (13 de janeiro de 2014): AAS 106 (2014), 83 84. 

[15] Cf. Idem, Discurso à Fundação «Centesimus annus pro Pontifice» (25 de maio de 2013): Insegnamenti I,1 (2013), 238. 

[16] Cf. São Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 14: AAS 59 (1967), 264. 

[17] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 22: AAS 101 (2009), 657. 

[18] Francisco, Discurso no encontro com as autoridades e o corpo diplomático (Tirana – Albânia 21 de setembro de 2014): AAS 106 (2014), 773. 

[19] Idem, Mensagem aos participantes na Conferência internacional sobre «Os direitos humanos no mundo contemporâneo: conquistas, omissões, negações» (10 de dezembro de 2018): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 11/XII/2018), 16. 

[20] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013), 212: AAS 105 (2013), 1108. 

[21] Idem, Mensagem para o 48º Dia Mundial da Paz de 2015 (8 de dezembro de 2014), 3-4: AAS 107 (2015), 69-71. 

[22] Ibid., 5: o. c., 72. 

[23] Idem, Mensagem para o 49º Dia Mundial da Paz de 2016 (8 de dezembro de 2015), 2: AAS 108 (2016), 49. 

[24] Idem, Mensagem para o 53º Dia Mundial da Paz de 2020 (8 de dezembro de 2019), 1: L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 17-24/XII/2019), 8. 

[25] Francisco, Discurso sobre as armas nucleares (Nagasáqui – Japão 24 de novembro de 2019): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 03/XII/2019), 9. 

[26] Idem, Discurso aos professores e estudantes do Colégio São Carlos de Milão (6 de abril de 2019): L´Osservatore Romano (08-09/IV/2019), 6. 

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