Por Carlos Orsi
A irracionalidade e o oportunismo que vêm sustentando muito
do “hype” em torno do uso da cloroquina/hidroxicloroquina (CQ/HCQ), com ou sem
a ajuda do antibiótico azitromicina (AZ), no tratamento de pacientes de
COVID-19 parecem estar, finalmente, sendo expostos pelo que são — ainda que
muito mais devagar do que deveriam, se formos levar a tão propalada preocupação
com o bem-estar dos pacientes a sério.
A paisagem pintada pelas mídias – sociais e outras – a
respeito do assunto é um torvelinho de contradições e histórias mal contadas:
enquanto o Ministério da Saúde se propõe a disponibilizar a cloroquina “como terapia adjuvante no tratamento de formas
graves, em pacientes hospitalizados” (Nota Informativa 05/2020), um grupo
privado de medicina passa a fornecer o fármaco a pacientes ao primeiro sinal de
febre, e até mesmo via motoboy.
Aumentando ainda mais a confusão, o virologista da USP Paulo
Zanotto apareceu em um vídeo do YouTube sugerindo que a combinação de HCQ e
azitromicina, entre outros efeitos, atuaria na mitocôndria das células humanas,
bloqueando a produção de energia, o que impediria a captura dessa energia pelo
vírus e a subsequente multiplicação do invasor.
Pondo de lado o fato de que uma combinação de fármacos capaz
de impedir a produção de energia pela célula simplesmente mata a célula — o que
talvez seja desejável num tratamento oncológico, mas não num antiviral — o
mecanismo proposto é tão esdrúxulo, do ponto de vista biológico, que ombreia
com a ideia defendida por outro professor da USP, o falecido Gilberto Chierice,
de que o câncer é causado por mudanças no pH celular, e não por mutação
genética.
Em meio a isso tudo, a desinformação impera: há quem fale em
centenas pacientes recuperados “graças” à CQ, HCQ ou HCQ/AZ em São Paulo, mas
ninguém apresenta dados. E sem dados, a atribuição da cura a esses fármacos se
reduz a bravata.
É difícil não ver oportunismo na bravata. Estima-se, afinal,
que a taxa de recuperação das pessoas que contraem o vírus — mesmo entre as que
requerem hospitalização — é de mais de
90%. Sem controles adequados, atribuir parte desses 90% à HCQ faz tanto sentido
quanto atribuir a cura de um caso qualquer de câncer à fosfoetanolamina, tão
cara a Chierice, ou a cura de um resfriado à vitamina C.
O mérito, que por justiça deveria caber ao tratamento
convencional, acaba, por ingenuidade ou má-fé, sendo atribuído à nova fórmula.
A ampliação do uso para quem está no início da doença, ou
mesmo para aqueles que apresentam sintomas semelhantes, mas não chegaram a ser
testados — que podem ter uma alergia, uma gripe ou um resfriado, não o vírus
SARS-CoV-2 —, só fará aumentar ainda mais a ilusão de efeito: num cenário
hipotético de disseminação ampla da CQ/HCQ, milhares de pessoas que se
recuperariam naturalmente da COVID-19, ou que nem sequer chegaram a contrair o
vírus, passarão a atribuir suas “curas”, reais ou imaginadas, ao remédio.
Estudos atacados
Mas, entre contradições e bravatas, alguns fatos concretos
insistem em aparecer. No fim da semana passada, o artigo científico que pôs a
combinação cloroquina/azitromicina no mapa viu-se sob ataque, até mesmo, dos
responsáveis pelo periódico que o publicou. Depois de ter sido impiedosamente
demolido nas críticas pré e pós-publicação, o trabalho do grupo francês de
Didier Raoult tornou-se alvo de uma nota de preocupação emitida pela própria
sociedade científica que mantém o International Journal of Antimicrobial
Agents. O estudo “não atende aos padrões esperados de qualidade” científica,
diz a crítica.
Enquanto isso, um estudo chinês com 62 pacientes, que teria
encontrado as primeiras evidências concretas de benefício da HCQ contra a
COVID-19, derrete sob o escrutínio da comunidade científica. Descobriu-se, por
exemplo, que os autores mudaram as condições do teste no meio do caminho: a
versão registrada junto ao governo chinês previa um estudo com 300 pacientes,
para verificar redução na carga viral, uma métrica objetiva.
O que veio apresentado no artigo foi um trabalho com 62
pacientes e baseado em métricas menos “duras”, como tempo de recuperação,
duração da febre e da tosse. Uma
explicação comum para esse tipo de desvio de rota é que o estudo original
encaminhava-se para um resultado negativo, e os autores “pescaram” o que
puderam para salvar a publicação.
Além disso, o grupo de pacientes que recebeu a HCQ incluiu
um número maior de pessoas que já havia entrado no estudo com tosse e febre — o
que sugere que a melhora mais rápida, vista nesse grupo, pode ser atribuída à
evolução natural da doença, e não ao medicamento.
Nesta terça-feira, dia 7, a Folha de S. Paulo publicou
entrevista com o infectologista Marcus Lacerda, que coordena um estudo
controlado da HCQ, e que não está encontrando diferença significativa entre as
taxas de sobrevivência de pacientes que receberam o fármaco e os que ficaram
restritos ao tratamento convencional. Lacerda chama ainda atenção para o dado
de que a dose mais alta testada mostrou-se tóxica.
Vampirismo
O protocolo para uso precoce da combinação HCQ/AZ, proposto
por Zanotto e também pela médica Nise Yamaguchi, é inspirado no que o médico
americano Vladimir Zelenko diz ter posto em prática numa comunidade judaica de
Nova York. “Diz ter praticado”, porque, assim como Zanotto, Zelenko não
apresenta dados, apenas bravatas via YouTube. Como bem resume o serviço Estadão
Verifica, do jornal O Estado de S. Paulo, “não há evidências de que essa
pesquisa tenha realmente sido realizada, a não ser a palavra do próprio
médico”.
O uso precoce, é bom repetir, representa um modo perfeito de
gerar falsos positivos e multiplicar “casos de sucesso” espúrios: se mais de
90% dos diagnosticados se recuperam por conta própria ou com base nos cuidados
médicos usuais, o acréscimo, sem controles adequados, de novas drogas constitui
prática de vampirismo epistêmico — o novo tratamento, mesmo se for inócuo ou,
até, prejudicial, suga para si as glórias do sucesso que, na verdade, cabem à
natureza ou às demais medidas curativas adotadas.
Carlos Orsi é
jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência
Fonte: Revista Questão de Ciência
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