Reconhecido neurologista francês, que popularizou o conceito
de resiliência, destaca o papel em nosso desenvolvimento da atenção recebida
inclusive antes de nascer.
Há muitas maneiras de apresentar
Boris Cyrulnik. É o neuropsiquiatra que popularizou o conceito de
resiliência, a capacidade de superar as adversidades. É o autor de
numerosos livros que aproximaram do público das chaves de sua disciplina,
alguns lançados no Brasil, como Autobiografia de um Espantalho. É
um homem de 82 anos marcado pelo Holocausto e a Segunda Guerra Mundial. E é quem inspirou o
presidente francês, Emmanuel Macron, em suas
políticas sobre a educação pré-escolar e a escolaridade obrigatória aos três
anos de idade.
Pergunta. Tudo se
define nos seis primeiros anos, antes da educação primária?
Resposta. Nem tudo. Se
a pessoa fracassa nestes anos, ainda pode se recuperar. Eu não fui à escola. Mas são anos
em que a aprendizagem é fulgurante e fácil: as crianças
aprendem a toda velocidade porque os neurônios estão em ebulição. Depois,
pode-se continuar aprendendo, mas menos rápido.
P. Quais as
consequências dessa desigualdade na raiz?
R. Hoje em dia, a
sociedade seleciona por meio da escola e do diploma: é a nova aristocracia. Já
não é a aristocracia da força física nem a dos bens ou das fábricas, que ainda
existe, mas é menos importante. A nova
aristocracia é a do diploma. A partir dos três anos, as crianças que
estiveram bem acolhidas com antecedência serão os bons alunos, e as crianças
mal acolhidas acumularão tamanho atraso na linguagem que serão maus alunos, não
terão diplomas e terão dificuldades sociais, culturais, afetivas…
P. Pelo que o senhor diz, nem tudo
se define entre os três e os seis anos, mas inclusive antes.
R. Sim, a desigualdade
social já começa nos primeiros mil dias.
P. Como intervir nessa
idade, quando as crianças ainda não estão escolarizadas?
R. Agora que
as mulheres trabalham e que a aldeia já não existe mais, há
crianças que vivem num ambiente pobre e que serão maus alunos. Mas essas
crianças, se as enviarmos a creches, se as acolhermos, e se acolhemos os pais e
mães infelizes, se detectarmos dificuldades psicológicas e sociais dos pais,
poderemos melhorar
o nicho sensorial que cerca o bebê e haverá menos injustiças:
ao entrar na escola infantil, terá menos atraso.
P. O que fazer para
atenuar estas desigualdades?
R. Se for constatado,
desde antes do momento da concepção, que a mãe tem 14
anos, que não tem emprego, que não tem família, que se droga e vive
com um amante que tem 17 anos e é delinquente e consome cocaína, então é
possível predizer que o nicho sensorial que cerca o bebê será negativo e que
haverá um atraso no seu desenvolvimento. Por outro lado, se os pais estão
acolhidos e em segurança, pode-se predizer que o bebê terá um entorno que lhe
permitirá um bom desenvolvimento. Tudo começa antes do nascimento.
P. Como garantir a
existência desse entorno?
R. Detectando as
gestações patológicas. Uma em cada quatro mulheres sofre depressão
durante a gravidez. Os trabalhos sobre a epigenética mostram que
quando a mãe está infeliz segrega as substâncias do estresse que passam ao
líquido amniótico, e o bebê consome quatro a cinco litros de líquido amniótico
por dia, cheio de cortisona, catecolamina e substâncias do estresse que
danificam seu cérebro. A criança chega ao mundo com o cérebro prejudicado
porque a mãe é infeliz. E as causas da infelicidade da mãe são essencialmente o
isolamento, contra o qual socialmente pode-se lutar com a família e o bairro. É
a violência conjugal, contra a qual se deve lutar. E é a precariedade social
contra a que eu gostaria que se lutasse. Se protegermos as mães, protegeremos
as crianças.
P. Como foram seus
primeiros anos?
R. Nasci em 1937. Meu
pai se alistou no Exército francês em 1939. Foi ferido e detido na cama do
hospital pela polícia francesa, o país para o qual combatia. Depois foi
deportado e desapareceu em Auschwitz. Minha mãe
ficou sozinha, muito pobre, sem família: os homens estavam no Exército, os
jovens na Resistência, e os outros em Drancy [o campo nos subúrbios de Paris de
onde os judeus da França eram mandados para os campos de concentração e
extermínio] ou em Auschwitz. Em 1942 a Gestapo a deteve. Apesar disso, meus
primeiros anos devem ter sido fortificantes, porque conservei uma pequena
confiança em mim. Aos seis anos me detiveram e escapei. Depois me recolheram
uns justos [pessoas que desinteressadamente salvaram judeus em
situação de perigo], me senti seguro com eles e retomei o desenvolvimento
correto. A irmã da minha mãe me reencontrou depois da guerra, mas quase nunca
fui à escola. Passei num exame de acesso ao liceu [ensino médio], aceitaram-me,
o que é a prova da existência de Deus, e recuperei meu atraso e me virei.
P. Os primeiros anos,
com sua mãe, deram-lhe a força para sobreviver?
R. Sim, sem dúvida.
Crianças isoladas nos dois primeiros anos de vida perdem a confiança
em si
mesmas, têm medo do mundo e só têm atividades autocentradas.
P. E o senhor, por
outro lado, confiava em si mesmo.
R. Sim.
P. Seu pai e sua mãe
desapareceram.
R. Toda minha família,
exceto uma irmã e um irmão da minha mãe.
P. Não pôde enterrar
seus pais. Isso é uma ferida aberta?
R. Não morreram:
desapareceram. Não é o mesmo. Em um luto se sofre, se chora e se lhes devolve a
dignidade, se faz uma bela sepultura, dizem-se coisas amáveis, inscreve-se o
nome, colocam-se flores, cantam-se canções. Já meus pais não tiveram esta
dignidade, desapareceram. Depois da liberação, soube que viraram fumaça, sem
sepultura.
P. Aos 11 anos o
senhor já queria ser psiquiatra. Por que tão cedo? A essa idade os meninos
querem ser jogadores de futebol.
R. Ouvia dizer ao meu
redor que o nazismo era uma prova de loucura social. Ainda penso assim. Não era
individual, era a sociedade que delirava. Eu me disse que, se a sociedade
estiver louca, devia me tornar psiquiatra para impedir, e assim não voltaria a
haver guerras.
Fonte: El País
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