13 outubro, 2016

Haiti: as catástrofes naturais e as ONGs



Tragédia provocada pelo furacão Metthew chama atenção para outro fenômeno: num país cujo Estado soçobrou, ONGs e doadores estrangeiros comandam assistência à população. Isso produz democracia?

Por Diego Araujo Góis e João Fernando Finazzi

O Haiti volta a ser manchete nos maiores jornais do mundo por conta de um novo desastre natural que assola o país. Em 2010, o catastrófico terremoto deixou mais de 200.000 mortos, desalojou em torno de 2 milhões de pessoas (segundo os dados mais recentes, 80.000 continuam em abrigos provisórios) e destruiu boa parte da infraestrutura urbana. Dessa vez, embora seja cedo para dizer ao certo quais serão os resultados da maior tempestade tropical a atingir o Haiti em 50 anos, algumas estimativas já indicam que em torno de 1 milhão de pessoas foram afetadas, incluindo aproximadamente 1000 mortos, feridos, grandes alagamentos, deslizamentos de terra, desmoronamento de casas e assolamento de plantações.

A destruição, no entanto, coloca a possibilidade de outros desdobramentos em evidência: as prováveis respostas da “comunidade internacional” e a já anunciada postergação das eleições presidenciais. A semelhança com o episódio de 2010 permite estimar que o acontecimento poderá servir, de um lado, para o fortalecimento do sistema de ajuda internacional por meio de ONGs em detrimento do Estado haitiano e, de outro, permitir a continuidade da (Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti) Minustah.

O Haiti é conhecido como a “República Mundial das ONGs”: segundo o ex-presidente dos EUA e então enviado especial da ONU para o Haiti em 2010, Bill Clinton, o país possui a segunda maior concentração de ONGs per capita do mundo, perdendo apenas para a Índia. Com a miséria extrema e a baixa oferta de serviços públicos, essas organizações são as principais responsáveis por prover ações que vão desde a formação escolar até cuidados médicos e alimentação da população mais pobre.

A alcunha de “Estado falido” também vem a reforçar essa dinâmica. As frequentes acusações de corrupção e de má gestão e funcionamento do Estado haitiano acabam por legitimar a prática da ação direta de ONGs e do financiamento exclusivo a elas. Após o terremoto, estima-se que somente 1% de toda a ajuda internacional para assistência emergencial tenha ido para as instâncias do governo e as próprias ONGs haitianas recebido cerca de 0,4% dessa quantia.

A ajuda, no caso do Haiti, tem como principal característica o fato de ser altamente internacionalizada e desregulada. A baixa capacidade do Estado haitiano em atuar na reconstrução acaba por ser inversamente proporcional ao grau de atuação das ONGs, agências internacionais e doadores. Nas operações de paz, devido à presença de inúmeros atores como as ONGs internacionais, o que predomina são as prioridades dos doadores em relação às prioridades da população local, de modo que essa dinâmica acaba por colocar estas organizações como elementos centrais na estrutura de poder dentro da sociedade haitiana (LESSARD, 2010).

De fato, contrariamente ao que defende o mito da intervenção humanitária – que atribui causas estritamente domésticas a problemas nacionais –, com o desastre dos últimos dias, uma das principais questões colocadas é a possibilidade do aprofundamento dessa dependência, que é suprida pelo financiamento internacional, principalmente dos EUA. Na realidade, de acordo com oBanco Mundial, o orçamento do Estado haitiano chegou a ser composto em 90% pela ajuda estrangeira. Devido a essa enorme dependência, muitas vezes o envio ou o congelamento de recursos serviu como alavanca de pressão com relação os rumos a serem tomados pelos diferentes governos haitianos desde os anos 90 (DEPUY, 2005).
Destruição causada pela passagem do furacão Matthew no Haiti

Destruição causada pela passagem do furacão Matthew no Haiti

O atual presidente provisório, Jocelerme Privert, já vem indicando que um dos principais desafios do Haiti no atual contexto será conseguir se sobrepor a essa dependência da assistência humanitária, como a doação direta de alimentos. Em entrevista na última sexta-feira (07/10), Privert pontuou que a ajuda deveria focar não na distribuição de produtos, mas na construção da infraestrutura necessária para a produção de comida ou o engarrafamento de água potável.

Além do desafio de se sobrepor à dependência externa, a passagem do furacão Matthew, acrescentou mais um elemento na permanente crise política que afeta o Haiti. As eleições para decidir o novo presidente, que seriam realizadas no ultimo domingo, 09/10, foram adiadas pela segunda vez. Desde que o pleito de outubro de 2015 foi invalidado devido a irregularidades, o Haiti não consegue realizar eleições para definir um governo para suceder a Michel Martelly (ultimo presidente eleito). O mandato provisório de Jocelerme Privert já havia se encerrado em 15 de junho deste ano, sendo prorrogado pelo parlamento até a realização de novas eleições.

Com os acontecimentos da última semana e a declaração de Privert, também se torna muito provável uma nova prorrogação do término da Minustah. Segundo o jornalista Kim Ives, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, já estaria indicando a possibilidade de uma renovação da missão, a qual terminaria o seu mandato no próximo dia 15/10. A reconstrução da infraestrutura destruída e a indefinição em relação às novas eleições pode muito provavelmente ser reivindicada como uma das justificativas para a manutenção da operação de paz no país, a qual originalmente fora planejada para durar 6 meses e já perdura por longos 12 anos.

Os fatos vêm demonstrando que a “comunidade internacional” fracassou na sua tentativa de construir um Estado haitiano capaz de lidar com as tensões sociais e com os desastres ambientais. Realmente não há nada que se possa fazer contra os desígnios da natureza. Mas a pobreza e a miséria, responsáveis por intensificar o desastre no Haiti, são resultado das ações humanas. Agora, o cenário que se desenha após a catástrofe será de possível intensificação do mesmo processo que mantém o Haiti vulnerável a este tipo de evento e o coloca como país mais pobre das Américas. Frente isso, os atores realmente movidos por ideais humanitários e que agora se articulam ao redor de um novo esforço de reconstrução poderiam se lembrar de um velho ditado haitiano: “Um tambor emprestado nunca faz uma boa dança”.

Referências bibliográficas

DUPUY, Alex (2010) “From Jean-Bertrand Aristide to Gerard Latortue: The Unending Crisis of Democratization in Haiti”. Journal of Latin American Anthropology, 10:1, 186-205.

LESSARD, Danielle (2010) “International NGOs and statebuilding: the case of Haiti, the phantom state. Master’s Thesis. Lund University. Disponível em:
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Fonte: http://www.outraspalavras.net

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