Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social
Capítulo III
PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO
[nn.87-127]
Visão geral do capítulo
1. Mais além [88-90]
2. O valor único do amor [91-94]
3. A progressiva abertura ao amor [95-96]
4. Sociedades abertas que integram a todos [97-98]
5. Noções inadequadas de amor universal [99-100]
6. Superar um mundo de sócios [101-102]
7. Liberdade, igualdade e fraternidade [103-105]
8. Amor universal que promove as pessoas [106-111]
9. Promover o bem moral [112-113]
10. O valor da solidariedade [114-117]
11. Repropor a função social da propriedade [118-121]
12. Direitos sem fronteiras [121-123]
13. Direitos dos povos [124-127]
Leitura da Carta Encíclica FRATELLI TUTTI do Santo Padre FRANCISCO sobre a Fraternidade e Amizade Social.
Capítulo III: Pensar e gerar um mundo aberto.
nn.87-99. Título 1: Mais além.
nn.91-94. Título 2: O valor únicodo amor.
nn. 95-96. Título 3: A progressiva abertura ao amor.
CARTA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI DO SANTO PADRE FRANCISCO SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL
Capítulo III
PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO
87. O ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude «a não ser no sincero dom de si mesmo»[62] aos outros. E não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros: «Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que comunico com o outro».[63] Isso explica por que ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já que «a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte».[64]
Mais além
88. A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro.[65] Feitos para o amor, existe em cada um de nós «uma espécie de lei de “êxtase”: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser».[66] Por isso, «o homem deve conseguir um dia partir de si mesmo, deixar de procurar apoio em si mesmo, deixar-se levar».[67]
89. Mas não posso reduzir a minha vida à relação com um pequeno grupo, nem mesmo à minha própria família, porque é impossível compreender-me a mim mesmo sem uma teia mais ampla de relações: e não só as do momento atual, mas também as relações dos anos anteriores que me foram configurando ao longo da minha vida. A minha relação com uma pessoa, que estimo, não pode ignorar que esta pessoa não vive só para a sua relação comigo, nem eu vivo apenas relacionando-me com ela. A nossa relação, se é sadia e autêntica, abre-nos aos outros que nos fazem crescer e enriquecem. O mais nobre sentido social hoje facilmente fica anulado sob intimismos egoístas com aparência de relações intensas. Pelo contrário, o amor autêntico, que ajuda a crescer, e as formas mais nobres de amizade habitam em corações que se deixam completar. O vínculo de casal e de amizade está orientado para abrir o coração em redor, para nos tornar capazes de sair de nós mesmos até acolher a todos. Os grupos fechados e os casais autorreferenciais, que se constituem como um «nós» contraposto ao mundo inteiro, habitualmente são formas idealizadas de egoísmo e mera autoproteção.
90. Não é sem razão que muitas populações pequenas e sobrevivendo em áreas desérticas conseguiram desenvolver uma generosa capacidade de acolhimento dos peregrinos que passavam, dando assim um sinal exemplar do dever sagrado da hospitalidade. Viveram-no também as comunidades monásticas medievais, como se verifica na Regra de São Bento. Embora pudessem perturbar a ordem e o silêncio dos mosteiros, Bento exigia que se tratasse os pobres e os peregrinos «com toda a consideração e carinho possíveis».[68] A hospitalidade é uma maneira concreta de não se privar deste desafio e deste dom que é o encontro com a humanidade mais além do próprio grupo. Aquelas pessoas reconheciam que todos os valores por elas cultivados deviam ser acompanhados por esta capacidade de se transcender a si mesmas numa abertura aos outros.
O valor único do amor
91. As pessoas podem desenvolver algumas atitudes que apresentam como valores morais: fortaleza, sobriedade, laboriosidade e outras virtudes. Mas, para orientar adequadamente os atos das várias virtudes morais, é necessário considerar também a medida em que eles realizam um dinamismo de abertura e união para com outras pessoas. Este dinamismo é a caridade, que Deus infunde. Caso contrário, talvez tenhamos só uma aparência de virtudes, que serão incapazes de construir a vida em comum. Por isso, dizia São Tomás de Aquino – citando Santo Agostinho – que a temperança duma pessoa avarenta nem sequer era virtuosa.[69] Com outras palavras, explicava São Boaventura que as restantes virtudes, sem a caridade, não cumprem estritamente os mandamentos «como Deus os compreende».[70]
92. A estatura espiritual duma vida humana é medida pelo amor, que constitui «o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana».[71] Todavia há crentes que pensam que a sua grandeza está na imposição das suas ideologias aos outros, ou na defesa violenta da verdade, ou em grandes demonstrações de força. Todos nós, crentes, devemos reconhecer isto: em primeiro lugar está o amor, o amor nunca deve ser colocado em risco, o maior perigo é não amar (cf. 1 Cor 13, 1-13).
93. Procurando especificar em que consiste a experiência de amar, que Deus torna possível com a sua graça, São Tomás de Aquino explicava-a como um movimento que centra a atenção no outro «considerando-o como um só comigo mesmo».[72] A atenção afetiva prestada ao outro provoca uma orientação que leva a procurar o seu bem gratuitamente. Tudo isto parte duma estima, duma apreciação que, em última análise, é o que está por detrás da palavra «caridade»: o ser amado é «caro» para mim, ou seja, é estimado como de grande valor.[73] E «do amor, pelo qual uma pessoa me agrada, depende que lhe dê algo grátis».[74]
94. Sendo assim o amor implica algo mais do que uma série de ações benéficas. As ações derivam duma união que propende cada vez mais para o outro, considerando-o precioso, digno, aprazível e bom, independentemente das aparências físicas ou morais. O amor ao outro por ser quem é, impele-nos a procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando esta forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos.
A progressiva abertura do amor
95. Enfim, o amor coloca-nos em tensão para a comunhão universal. Ninguém amadurece nem alcança a sua plenitude, isolando-se. Pela sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, maior capacidade de acolher os outros, numa aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um sentido pleno de mútua pertença. Disse-nos Jesus: «Vós sois todos irmãos» (Mt 23, 8).
96. Esta necessidade de ir além dos próprios limites vale também para as diferentes regiões e países. De facto, «o número sempre crescente de ligações e comunicações que envolvem o nosso planeta torna mais palpável a consciência da unidade e partilha dum destino comum entre as nações da terra. Assim, nos dinamismos da história – independentemente da diversidade das etnias, das sociedades e das culturas –, vemos semeada a vocação a formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros».[75]
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[62] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 24.
[63] Gabriel Marcel, Du refus à l’invocation (Paris 1940), 50.
[64] Francisco, Alocução do Angelus (10 de novembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 12/XI/2019), 3.
[65] Cf. São Tomás de Aquino, Scriptum super Sententiis, lib. III, dist. 27, q. 1, a. 1, ad 4: «Dicitur amor extasim facere, et fervere, quia quod fervet extra se bullit et exhalat – diz-se que o amor produz êxtase e efervescência, contanto que o efervescente ferva fora de si e expire»
[66] Karol Wojtila, Amore e responsabilità (Casale Monferrato 1983), 90.
[67] Karl Rahner, Kleines Kirchenjahr. Ein Gang durch den Festkreis (Friburgo 1981), 30.
[68] Regula, 53, 15: «Pauperum et peregrinorum maxime susceptioni cura sollicite exhibeatur».
[69] Cf. Summa theologiae II-II, q. 23, art. 7; Santo Agostinho, Contra Julianum, 4, 18: PL 44, 748: «De quantos prazeres se privam os avarentos, para aumentar os seus tesouros ou com medo de os ver diminuir!»
[70] «Secundum acceptionem divinam»: São Boaventura, Scriptum super Sententiis, lib. III, dist. 27, a. 1, q. 1, concl. 4.
[71] Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de dezembro de 2005), 15: AAS 98 (2006), 230.
[72] Summa theologiae II-II, q. 27, art. 2, resp.
[73] Cf. ibid. I-II, q. 26, art. 3, resp.
[74] Ibid., q. 110, art. 1, resp.
[75] Francisco, Mensagem para o 47º Dia Mundial da Paz de 2014 (8 de dezembro de 2013), 1: AAS 106 (2014), 22.
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