A escuta é uma ação que permite “hospedar” o interlocutor no próprio universo de sentidos. Esse gesto, por sua vez, é capaz de transformar a realidade, principalmente da própria pessoa “escutante”: escutar é se deixar transformar pelo forasteiro, pelo desconhecido. Com isso, é possível aprender a conviver como iguais, sem precisar abrir mão de nossas respectivas diferenças.
A opinião é de Moisés Sbardelotto, jornalista, doutor em Ciências da Comunicação e autor de "Comunicar a fé: por quê? Para quê? Com quem?" (Ed. Vozes, 2020).
Publicada por IHU, 27/05/2022.
Eis o texto.
Neste domingo, 29 de maio, festa da Ascensão do Senhor, a Igreja celebra o 56º Dia Mundial das Comunicações Sociais. Em sua mensagem por ocasião dessa data, o Papa Francisco nos convida a “escutar com o ouvido do coração”, entendendo a escuta como um elemento “decisivo na gramática da comunicação e condição para um autêntico diálogo”.
A partir das páginas bíblicas, Francisco lembra que “a escuta corresponde ao estilo humilde de Deus”, que reconhece o ser humano como seu interlocutor e lhe dá ouvidos. “Deus ama o ser humano: por isso ‘inclina o ouvido’ para o escutar”, afirma o papa.
Disso decorrem duas necessidades, segundo Francisco. A primeira, de nível pessoal, é a “arte do discernimento, que se apresenta sempre como a capacidade de se orientar numa sinfonia de vozes”. A segunda, de nível eclesial, é o “apostolado do ouvido”, considerado pelo papa como “a obra mais importante” da ação pastoral. “Devemos escutar, antes de falar, como exorta o apóstolo Tiago: ‘Cada um seja pronto para ouvir, lento para falar’ (1,19).”
Hoje, em meio a divisões, intolerâncias e violências dos mais diversos gêneros, números e graus, a “escuta com o ouvido do coração” possibilita ir além dos ditos, dos não ditos e dos silêncios, para encontrar a verdade mais profunda e mais comum a todos nós: somos todos humanos, provindos todos do mesmo húmus. Somos todos “filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos” (Fratelli tutti, n. 8). Por isso, particularmente neste tempo histórico, é preciso dar ouvidos principalmente ao “desejo de estar em relação com os outros e com o Outro. Não fomos feitos para viver como átomos, mas juntos”, afirma Francisco em sua mensagem. É o reconhecimento de base dessa nossa comum humanidade que torna “boa e plenamente humana a comunicação”, segundo ele.
Como um convite à leitura na íntegra de todo a reflexão do papa, quero aqui articular a mensagem de Francisco com três ações que se revelam cada vez mais essenciais nos tempos atuais: hospedar, transformar(-se) e conviver. A escuta é uma ação que permite “hospedar” o interlocutor - seja ele quem for, venha de onde vier, fale a linguagem que seja - no próprio universo de sentidos. Esse gesto, por sua vez, é capaz de transformar a realidade, principalmente da própria pessoa “escutante”: escutar é se deixar transformar pelo forasteiro, pelo desconhecido. Com isso, é possível aprender a conviver como iguais, sem precisar abrir mão de nossas respectivas diferenças.
Escutar para hospedar
Francisco apresenta a escuta como um gesto de “acolher como dom a voz dos outros”. Trata-se, segundo ele, de prestar atenção “a quem ouvimos, àquilo que ouvimos e ao modo como ouvimos”, o que permite “crescer na arte de comunicar, cujo cerne não é uma teoria nem uma técnica, mas a capacidade do coração que torna possível a proximidade”.
Não por acaso, como exemplo disso, o papa cita os migrantes e a necessidade de ouvir as suas histórias, para que seja possível superar os preconceitos em relação a eles. Francisco afirma que é preciso reconhecer que eles não são apenas “números nem invasores perigosos”, mas “rostos e histórias de pessoas concretas, olhares, expectativas, sofrimentos de homens e mulheres para ouvir”.
É significativo que o papa traga à tona os migrantes para abordar o tema da escuta. Escutar é estabelecer uma relação acolhedora em relação ao hospes, do latim estrangeiro, forasteiro, peregrino. É romper a reação automática baseada no imaginário milenar de que “hospes, hostis”, ou seja, de que todo estrangeiro é inimigo.
Pelo contrário, é a recusa a escutar que acaba se transformando muitas vezes em agressividade contra o outro, reconhece Francisco. Escutar, por sua vez, é um enriquecimento, pois “sempre haverá alguma coisa, por mínima que seja, que posso aprender com o outro e fazer frutificar na minha vida”, continua o papa.
Acolher o dom do outro, de quem é diferente, de quem “vem de fora” é praticar uma comunicação hospitaleira, nem sempre fácil, muito menos simples. É transformar a hostilidade dos “ouvidos moucos” em hospitalidade escutante, dialogante, humanizante.
Reescrevendo e dando novos sentidos ao que Christian Dunker e Cláudio Thebas apresentam no livro “O palhaço e o psicanalista: como escutar os outros pode transformar vidas” (Planeta, 2019), podemos dizer que a relação com o hospes pode ocorrer por meio da constituição de três “lugares” metafóricos de escuta: a hospedaria, o hospital e o hospício.
A escuta como hospedaria envolve o acolhimento e a receptividade à outra pessoa do modo como ela é, seja quem for e de onde vier, independentemente do momento em que chegar e da linguagem que utilizar, com suas riquezas e pobrezas, sem exigências nem imposições. Trata-se de uma escuta não apenas simpática, mas radicalmente empática, disponível, aberta, heterorreferencial, não narcísica. Muitas vezes, significa entrar em contato com o desconhecido, com o ab-surdo, com aquilo que “soa mal” e “fora do tom” aos nossos ouvidos, apresentando-se, à primeira audição, como sem sentido. Com essa escuta sem receios, nem medos ou ameaças, pode-se aprender coisas novas, pois ela envolve “a capacidade de se deixar surpreender pela verdade – mesmo que seja apenas um fragmento de verdade – da pessoa que estamos escutando”, como diz Francisco.
A escuta como hospital diz respeito ao cuidado pela outra pessoa e pela relação com ela, especialmente nos momentos de dor, de sofrimento, de dissonância existencial. Trata-se do gesto de escutar o outro em suas necessidades, para ajudá-lo a se refazer, a se restabelecer, a restaurar suas forças. É acolher a vulnerabilidade, partilhando-a. O escutar hospitaleiro envolve aproximar-se da pessoa machucada interiormente e cuidar de suas feridas, de modo totalmente gratuito e desinteressado, como fez o bom samaritano (cf. Lc. 10,34). Por isso, Francisco também reconhece que “a capacidade de escutar a sociedade é ainda mais preciosa neste tempo ferido pela longa pandemia. (...) É preciso inclinar o ouvido e escutar em profundidade, sobretudo o mal-estar social” agravado pelo período de distanciamento e, hoje, por tantas formas de violência e desprezo pela vida no Brasil e no mundo.
Já a escuta como hospício é a postura contrária à da hospedaria e do hospital. O hospício traz as marcas de um passado histórico de silenciamento, isolamento, aprisionamento e reclusão daquilo que fugia aos padrões sociais, de quem era considerado “alienado”, “anormal”, “louco”. É o local em que se reconhecem apenas as alienações, anormalidades e loucuras alheias - nunca próprias. É, portanto, um lugar da não escuta, de uma surdez metódica ou, no máximo, de uma escuta ofensiva. É a tendência a “fugir da relação, a virar as costas e 'fechar os ouvidos' para não ter de escutar”, como afirma Francisco. Não se busca o cuidado ou mesmo a cura, mas apenas a exclusão do outro, considerado “estranho”, totalmente diferente, incompreensível, incoerente e até inaceitável. Ouve-se o que o outro diz, mas sem lhe dar voz, reconhecendo-lhe apenas insensatez e desrazão, até mesmo e principalmente quando se apresenta como porta-voz de verdades insuportáveis. Não há qualquer esforço para ir além das palavras pronunciadas, em busca dos sentidos mais profundos em jogo. Ouve-se o outro, mas apenas para confirmar os próprios pressupostos e preconceitos em relação a ele ou ela.
Em suma, escutar acolhendo o dom do outro e hospedando-o com hospitalidade é o primeiro passo para a construção de uma sociedade capaz de irmandade, capaz de reconhecer que somos todos “irmãos e irmãs”, com a mesma dignidade e o mesmo valor.
Para o papa, também na Igreja há uma grande necessidade de escuta recíproca, particularmente no atual processo de reflexão sobre a sinodalidade, ao qual Francisco também faz referência na mensagem, rezando para que o processo sinodal “seja uma grande ocasião de escuta recíproca” entre irmãos e irmãs. Citando o teólogo alemão Dietrich Bonhöffer, Francisco lembra que “devemos escutar através do ouvido de Deus, se queremos poder falar através da sua Palavra”. Pois, continua o pontífice, “quem não sabe escutar o irmão bem depressa deixará de ser capaz de escutar o próprio Deus”.
Nesse processo de escuta sinodal, podemos questionar: qual daqueles três “lugares” de escuta tem sido mais praticado e frequentado pela prática eclesial nos últimos tempos? Em que aspectos a escuta colabora com a “conversão pastoral” pedida por Francisco?
Escutar para transformar(-se)
Segundo Dunker e Thebas, a escuta é um “ato político”, porque suspende e subverte os lugares estabelecidos e constituídos, colocando todo centro e poder naquilo que está efetivamente sendo dito, independentemente de quem esteja falando.
Esse ato político, porém, não é automático, muito menos na Igreja, e demanda um grande esforço - às vezes até o “martírio da paciência”, nas palavras de um cardeal diplomata citado pelo papa.
Afinal, para que se escuta? O objetivo principal não é concordar com o outro nem discordar dele. Muito menos ser apenas condescendente com o interlocutor, “emprestando-lhe o ouvido” como um favor. No fundo, escuta-se porque se reconhece a importância da voz alheia e que, com ela, pode-se aprender algo, rever as próprias premissas, corrigir o rumo, transformar a si mesmo, em primeiro lugar.
Pelo contrário, quem busca se manter no centro e deter todo o poder pode até fingir ouvir, mas assume aprioristicamente que o outro não tem nada a lhe acrescentar. Já se sente satisfeito com as próprias suposições e pressuposições. Fecha-se à mudança, não reconhece a necessidade de mudar. Na cultura em geral, é justamente isso que as mulheres criticam em relação à escuta masculina, quando os homens interrompem ou até silenciam a fala feminina (o chamado manterrupting), pressupondo que sabem mais ou podem explicar às próprias mulheres aquilo que elas já sabem ou mesmo acabaram de afirmar (mansplaining).
Alguns membros da Igreja e da hierarquia muitas vezes têm agido dessa forma. O papa lamenta o surgimento de “partidos ideológicos” inclusive na Igreja, que deixam de escutar para dar lugar a “estéreis contraposições”. Em tais casos, “estamos simplesmente à espera que o outro acabe de falar para impor o nosso ponto de vista”, sintetiza Francisco. Escuta-se, mas como um gesto de tolerância e transigência, que, no fundo, busca apenas reafirmar o próprio poder de fala e a “função magisterial” de poucos. Em tempos de processo sinodal, seria um testemunho de coerência reconhecer, evitar e denunciar também os inúmeros casos, globais e locais, de “churchterrupting” e “churchsplaining” (ou seria melhor dizer “clericterrupting” e “clericsplaing”?), não apenas em relação às vozes femininas, mas também às de outras minorias eclesiais e “periferias existenciais” da cultura em geral.
O documento preparatório para o Sínodo sobre a Sinodalidade afirma explicitamente que “a capacidade de imaginar um futuro diferente para a Igreja e para as suas instituições, à altura da missão recebida, depende em grande medida da escolha de encetar processos de escuta, diálogo e discernimento comunitário, em que todos e cada um possam participar e contribuir” (n. 9).
Por isso, o documento - embora com um foco ainda um pouco excessivo no papel dos Pastores e na estrutura hierárquica (cf. n. 14) - afirma a importância de que, do papa aos fiéis em geral, cada um esteja à escuta dos outros, e todos à escuta do Espírito Santo, o “Espírito da verdade” (n. 15), com a mente e o coração abertos, “sem preconceitos” (n. 30).
Disso decorrem algumas perguntas fundamentais para uma autoavaliação eclesial: “Conseguimos identificar preconceitos e estereótipos que impedem a nossa escuta? Como ouvimos o contexto social e cultural em que vivemos?” (n. 30).
Esse é o grande desafio: praticar uma escuta que não seja apenas cosmética, mas verdadeiramente ética, em que o interlocutor - seja ele ou ela quem for - seja levado em consideração pela Igreja e possa, assim, contribuir para uma “renovação eclesial inadiável” (EG 27, afirmação de quase uma década atrás, ainda no primeiro ano de pontificado de Francisco). Como uma “boa mãe”, a Igreja deve não apenas saber escutar as preocupações dos seus filhos, mas também aprender com eles (EG 139). É essencial saber escutar, desde que estejamos “dispostos também a mudar de ideia, a modificar as próprias hipóteses iniciais”, reconhece o papa na mensagem.
A escuta é transformadora quando permitimos que uma diferença positiva e produtiva se introduza no nosso universo de sentidos pelo poder de fala do outro. Escutar é deixar-se transformar pelo outro, nem que seja pelo fato de momentaneamente sair do centro e perder poder - mas esse “momento”, quando acolhido, pode ser semente e impulso de uma duradoura (auto)transformação.
Para que a Igreja não seja “monótona”, ela precisa reconhecer e escutar a “polifonia” da cultura contemporânea, com sua pluralidade e variedade das vozes, afirma Francisco. Só assim, continua o papa, é possível construir uma “Igreja sinfônica”, em que cada um canta com a própria voz, acolhe como dom as vozes dos outros e manifesta a harmonia cujo compositor é o próprio Espírito Santo. É o dom e o desafio da convivência.
Escutar para conviver
Em uma conferência proferida há 15 anos, o teólogo italiano Rosino Gibellini retomava o pensamento do teólogo alemão Theo Sundermeier, analisando particularmente os seus quatro modelos para compreender o estrangeiro. Podemos desdobrar esses modelos pensando-os como “modelos de escuta do outro” em geral.
O primeiro modelo de escuta se fundamenta em uma igualdade extrema: “O outro é igual a mim em tudo”. Com isso, exacerba-se uma similaridade absoluta. Não se reconhecem, assim, as diferenças culturais e de linguagem, correndo o risco de favorecer a mera assimilação.
O segundo é um modelo de escuta baseado em uma alteridade extrema: “O outro é totalmente diferente de mim”. Com isso, ele é percebido como uma ameaça, como inimigo. Enfatizam-se as diferenças, sem levar em conta a igualdade em humanidade.
O terceiro é um modelo de escuta complementar: “O outro me complementa”. Reconhece-se a diferença, mas ela é subordinada à própria identidade e aos próprios interesses, não reconhecendo a dignidade do outro, que serve apenas para nos enriquecer culturalmente. É uma escuta que instrumentaliza os outros para os próprios interesses, como diz o papa na mensagem.
O quarto modelo é o da escuta convivial. Nesse modelo, mantêm-se unidas a igualdade e a diferença. A convivialidade reconhece as diferenças, respeita-as, mas sem isolá-las: pelo contrário, busca o seu encontro pacífico e mutuamente construtivo. Para Francisco, “na verdadeira comunicação, o eu e o tu encontram-se ambos ‘em saída’, tendendo um para o outro” - em uma “tensão convivial”, poderíamos dizer.
Segundo Gibellini, “a convivência não assimila, como no primeiro modelo; não exclui, como no segundo modelo; não subordina a si, como no terceiro modelo; mas cria espaços de compreensão (...) e de comunicação”. É a escuta pensada como ajuda recíproca e, ao mesmo tempo, como aprendizagem recíproca: “A convivência visa à reciprocidade”, continua o autor.
Essa experiência de convivialidade se torna cada vez mais rara hoje em dia, particularmente no Brasil. Opta-se ou pela total indiferença ou pela violência direta. Na Fratelli tutti, Francisco reitera a necessidade de escuta e diálogo para construir a “amizade social”, ou seja, a experiência de “uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças. Na realidade, de todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil, ninguém é supérfluo” (n. 215).
Gibellini também já afirmava que “a fraternidade cristã é amor ao irmão, como ser humano”, permitindo não apenas viver juntos, mas viver bem juntos. E Francisco relaciona a fraternidade justamente com o “milagre de uma pessoa amável”, que “deixa de lado as suas preocupações e urgências para (...) possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença” (n. 224). Essa escuta amável ou amabilidade escutante, continua o papa, quando se torna cultura, transforma profundamente o estilo de vida pessoal e as relações sociais, porque cria uma convivência sadia que supera as incompreensões e evita os conflitos.
A convivialidade possibilitada pela escuta aponta para relações interpessoais e sociais em que as diferenças não são negadas, mas sim reconhecidas e respeitadas. Reconhecem-se e respeitam-se as diferenças entre os iguais e a igualdade entre os diferentes, sem fazer da igualdade uma homogeneidade, nem da diferença uma desigualdade.
Isso favorece a construção do comum - experiências de comunidade e de comunhão por meio de gestos de comunicação. Abandona-se uma perspectiva relacional dicotômica (“nós” versus “eles”) para uma perspectiva relacional complexa (“nós neles” e “eles em nós”). Trata-se de uma ação comunicacional que valoriza a diversidade e a multiplicidade, evitando a dispersão e a divisão. Por meio dessa comunicação convivial, é possível construir uma “sociedade boa que permite uma vida boa” (Alain Caillé), para todas e todos.
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