Era sábado, dia de festa. Dia de ir aquietando aos poucos os movimentos. Domingo chegando e vida pedindo descanso. Mas naquele salão a vida não para. O movimento se faz, e como é bonito.
Sábado à tarde: encontro de mulheres e homens... Gente buscando vida... Gente gestando sonhos. Gente de movimento e em movimento.
Era sábado e naquele salão se reunia o movimento de população de rua... Mas o movimento não estava só, havia outros grupos, outros corpos em movimento dançando a dança da luta, dança do compromisso, dança da utopia, os catadores e catadoras de papel também se faziam presente e a força feminina trazia seu encanto e gingando.
Era sábado e a tarde e a vida se fazia. Tempo de reflexão e questionamentos. Tempo de fazer política e construir com as próprias mãos os sonhos possíveis: as buscas pelos direitos fundamentais: moradia, alimentação, educação, saúde e lazer. Na história e em unidade diversa, os grupos se reuniam naquele salão para discutir, dialogar, aprender e reaprender desde a prática e desde a vida concreta. Assim,
ninguém aprende fora da história. Ninguém aprende individualmente apenas. Quer dizer, nós somos sócio-históricos, ou seres histórico-sociais e culturais, e que, por isso mesmo, o nosso aprendizado se dá na prática geral da qual fazemos parte, na prática social (Freire; Guimarães, 2000, p. 27)
Era sábado e o encontro se aprendia que a luta se faz junto... Não existe caminho único. Naquela tarde, foi possível perceber que a luta dos moradores de rua se torna a luta dos catadores de papel e a luta dos catadores de papel se torna a luta das mulheres e assim vão se formando círculos interligados, pois a luta é uma só e é a luta pela vida. Ali onde a vida se encontra ameaçada, exatamente aí a vida precisa ser olhada.
Círculos se formando e gente lutando... Alguns meio acanhados tomando a palavra. Ah! Tomar a palavra. Era isso que dizia Paulo Freire. É tomar a palavra... E...na história das mulheres, na vida de tantas mulheres, quanta palavra ficou ocultada, quanta palavra silenciada, quanta vida abafada, escondida... E naquela tarde de sábado: as mãos se erguiam, as vozes se soltavam e aos poucos o grupo ia tomando a palavra, fazendo política, fazendo de seus direitos, reclamando e clamando vida. Era tarde de sábado e a vida se fazia valer na luta daqueles corpos femininos e masculinos.
A palavra, quando dita, anuncia ou denuncia e assim sendo faz com que o ser humano intervenha no mundo possibilitando sua transformação. Dentro da perspectiva de uma educação chamada bancária, as pessoas vivem aquilo que se chamou de cultura do silêncio. Ali, alguns dizem a palavra e outros escutam. A prática de uma educação libertadora, no entanto, ou ainda, os movimentos em dança mostram que a palavra deve ser dita e até mesmo proclamada. É pela palavra que as pessoas se libertam. A pronúncia da palavra possibilita àquelas se expressarem, inventarem, reinventarem, criarem e recriarem.
A palavra, tendo o poder quase mágico de criar mundos, está no centro do processo educativo como ação cultural. Romper o silêncio, subverter a histórica cultura do silêncio: condição primeira para os homens e mulheres se assumirem como seres culturais. Mas há um silenciar que a educação precisa cultivar. É aquele silêncio que torna possível o verdadeiro diálogo, a palavra autêntica. Que não escuta não pode falar com, mas fazer discursos para, ou e termos de cultura, vai continuar perpetuando invasões culturais (Almeida; Streck, 2008, p. 305)
Era sábado e a palavra estava sendo dita por aquelas mulheres e homens. Mas também houve silêncio, um silêncio profundo e fecundo. Em determinado momento, um morador de rua compartilhou seus desafios: “Outro dia estava eu com uns colegas a rua... ai chegou os policiais e nos tiraram do lugar, batendo e agredindo. Tiraram as roupas das pessoas só porque eram moradores de rua. Isso não pode. Até as partes íntimas dos moradores deixaram à vista. Isso não pode [...]” (sic) E repetia: “Isso não pode”. Fez-se um silêncio no espaço. Uma das mulheres disse: “Nossa como eles sofrem... mas a gente também leva uma vida muito difícil.” (sic). De novo silêncio. Aquelas mulheres e homens que até pouco tempo falavam reivindicando, agora silenciavam, mas não era um silêncio fruto da educação bancária. Era o silêncio daquele e daquela que compartilha a dor. Silêncio. Pausa em meio ás discussões para escutar o grito, o sussurro da vida... Em meio ao caos, meio à luta, se faz necessário o silêncio, mas o silêncio que escuta o outro e se une a ele em sua dor.
Em dia de sábado a vida recriava naquele salão e naquela tarde ficou ressoando a riqueza do movimento, ou melhor, a riqueza dos movimentos. Foi falado sobre movimentos sociais e a pergunta surgia e ressurgia a todo o momento: mas como fazer? De que modo? E resposta surgia e sumia... Sumia e surgia: para fazer o movimento acontecer é preciso tomar palavra e silenciar. Será possível? Sim. Mas como? Fazendo Política, construindo redes, movimentando-se, interligando-se.
Segundo Paulo Freire, os homens e as mulheres se distinguem dos animais pelo fato de estarem no mundo e por serem pessoas de relação, seres inacabados, incompletos. O ser humano se debruça sobre a realidade, busca conhece-la e, a partir daí, produz cultura. Neste sentido, tomar a palavra e silenciar constitui parte fundamental do processo de fazer política, pois levam as pessoas a um caminho de escolhas e decisão.
Segundo Brandão (2002), este processo nos leva àquilo que ele chama de “vocação de escolhas”, ou seja, isto implica escolha de sujeitos, de modo a desenvolver o processo de libertação.
Nesse sentido, no caminho vão-se fazendo escolhas, mas estas podem e devem ser modificadas e ressignificadas se o caminho assim o pedir.
Naquele sábado, homens e mulheres estavam ressignificando suas escolhas num processo educativo e ao mesmo tempo político. No encontro, enquanto o movimento se fazia. Segundo Freire,
ar de encontro de pessoas conscientes de si, de seus outros e de seu mundo, é qualquer tempo e lugar de envolvimento político. Porque, o desvelamento crítico da realidade social de algum modo obriga, no sentido mais essencial desta palavra, a uma “tomada de consciência”, como gostávamos de dizer “naqueles tempos, esta tomada deságua em alguma forma de ação política (Brandão, 2002.p. 335).
Era sábado... E naquela tarde, mulheres e homens estavam tomando a palavra, silenciando e ao mesmo tempo tomando consciência, ou melhor, fazendo política. Tudo... tudo numa dança concêntrica, em movimentos circulares... Em movimentos onde a vida se recria... Em movimento onde a vida se entrelaça, grita e proclama palavras de liberdade ou ainda cantos de libertação.
Salvador, 20 de fevereiro de 2011.
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ALVES DA SILVA, Fernanda Priscila. Cartas da Vida: Relatos e vivências entre mulheres em contexto de prostituição. São Leopoldo. CEBI.
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