"Outra coisa interessante é ver os mapas de votação. No Nordeste e em quase todo o Norte dá Lula. No Centro-Oeste, na maior parte do Sudeste e no Sul deu Bolsonaro. Dentro dos estados, as regiões mais empobrecidas, como a metade sul do RS, votam no Lula. As mais ricas, como a Serra Gaúcha, votam no Bolsonaro. Dentro das cidades, a questão de classe é muito nítida também. Em geral, bairros muito ricos elegem Bolsonaro; bairros pobres elegem Lula com uma vantagem enorme. Não são as pautas progressistas que dividem o país, pelo contrário. A gente vive num país dividido, absurdamente desigual, de gente muito rica de um lado e muito pobre de outro, de muito racismo, de feminicídio, LGBTQIA+fobia. Lutar contra essas coisas nos coloca, de fato, contra quem pratica essas coisas. Porque somos, insisto, um país desigual.
Se Lula de fato se eleger, como tudo leva a crer, seu governo não vai ser fácil. Lula vai enfrentar um Congresso conservador e uma economia mundial em crise. Mas é um recomeço. É o começo do fim do pesadelo."
Texto recebido por e-mail - Brasil de Fato
A eleição da contradição
Quarta-feira, 05 de outubro de 2022
Nem só vitória nem só derrota: a esquerda (e o Brasil) teve ambas.
Estamos, na verdade, num cenário cheio de contradições.
Por um lado, é inegável que o PT foi o partido que mais foi alvo de ataques, de todos os lados, desde que surgiu lá nos anos 1980. Desde 2015, foi massacrado. Lula foi preso. Foi tirado da disputa eleitoral que liderava, depois de um processo judicial conduzido pelo juiz que viria a ser ministro de seu principal adversário. Desde então, a imprensa decretou várias vezes o fim do PT. E o partido está aí garantindo que o atual presidente não vá para o segundo turno na frente, o que nunca antes tinha acontecido, e quase elegendo um presidente da República.
Por outro lado, a gente viu a desgraça tomar conta do país nos últimos anos, viu presidente debochando de gente morrendo, viu discurso de ódio pra todo lado, viu violência pra caramba, e a gente achou que depois de tudo isso o bolsonarismo seria enterrado, o que não aconteceu. O bolsonarismo não só colocou Bolsonaro no segundo turno com uma votação considerável como elegeu muita gente, com muito mais votos do que a gente pensava. Ver o tamanho e a força do bolsonarismo é, sim, frustrante e assustador.
A direita tradicional à míngua
Enquanto isso, partidos de direita tradicionais, como o PSDB e o MDB, encolheram muito.
Não há dúvida de que todo o mundo que está no front democrático tem que se unir diante do bolsonarismo. O que talvez seja um pouco mais difícil é saber quem está no front democrático. Políticos históricos entenderam a importância desse posicionamento. Está aí Fernando Henrique Cardoso, adversário histórico de Lula, declarando apoio ao petista, pra não me deixar mentir.
Mas temos ao mesmo tempo o apoio "incondicional" de Rodrigo Garcia a Tarcísio e Bolsonaro, o desdém de Eduardo Leite ao PT e o anúncio bizarro de José Serra de que apoia Lula e Tarcísio ao mesmo tempo.
Talvez eles e outros estejam também iludidos pela força ainda grande do bolsonarismo, ao qual tentam se agarrar para sobreviver. Ou seja, parte do PSDB não está exatamente no front democrático. O PSDB está confuso. Está no meio de dois fronts. O que ele talvez não enxergue é que quem fica ali no meio é abatido e acaba morrendo.
O que nos leva à consolidação de uma mudança em uma das características principais da política nacional desde 1994. O pêndulo da polarização mudou. Ela deixou de ser entre esquerda e direita (PT e PSDB) e passou a ser entre a centro-esquerda e a extrema direita (o PT e o bolsonarismo). Diante disso, é preciso que se diga: posicionar-se neste momento não é só importante, é um imperativo ético.
O domínio das tais pautas morais
Insisto: essa é uma eleição de contradições. Temos Lula e Zema eleitos em MG. Lula quase eleito presidente enquanto governadores de extrema direita crescem em estados importantes. O deputado federal mais votado do Brasil é um guri ultraconservador do PL. Mas também temos Guilherme Boulos com uma votação histórica. Suplicy. Erundina, Benedita. Mulheres indígenas. Aumento do número de mulheres e de pessoas negras (que são, ambos, ainda baixo demais) no Congresso. Duas deputadas federais trans. Você deve ter visto circulando por aí uma lista de vitórias da esquerda nas urnas. Se não viu, clique aqui.
Enfim, a dialética.
Mas é interessante olhar onde se dá a disputa. Quando a gente fala de direita ultraconservadora, vem forte a lembrança da tal pauta de costumes. É, de fato, onde ela tem maior incidência. No bandido bom é bandido morto. Na criminalização do aborto, mesmo que crianças estupradas morram no caminho porque não conseguiram acessar o direito à interrupção da gravidez, pra eles não importa.
E isso cola numa sociedade empobrecida e esfacelada. Numa população que está sofrida. É muito mais difícil falar pra população que é um absurdo ela pagar mais caro pela comida e que pra que isso mude tem que mudar a política de preços da Petrobras. É mais fácil ver a luta contra o bandido, é mais próximo (mesmo que amanhã o filho dela seja morto pelo policial que o confundiu com um bandido e achou que tinha o direito de matar, mas quem acredita que isso vai acontecer com seu filho até que aconteça?). E isso não significa, em absoluto, que a população não sabe tomar decisões. Significa antes que o país está passando por uma profunda crise.
Ainda que fake news continuem circulando bastante nessas eleições, parece que elas pesaram muito menos do que no pleito de 2018. Não tivemos uma mamadeira de piroca ou kit gay, mesmo que o presidente continue propagando mentiras a rodo. O que se nota é que o bolsonarismo está mais consolidado pelo conservadorismo de suas pautas e talvez precise menos de fake news pra se sustentar. O que fazer com isso é outro problema.
Ao mesmo tempo (olha a contradição), a esquerda elegeu duas mulheres trans, como eu falava. Levou ao Congresso mulheres que defendem o direito da mulher ao seu próprio corpo. Ampliou a representação não só feminina, mas feminista. Mas sempre tendo que afirmar que Lula é cristão e não odeia evangélicos para que possa se eleger.
Isso tudo nos diz que a luta vai ser dificílima. Dificilmente essas representações progressistas vão nos conseguir fazer avançar de fato nas pautas mais progressistas, mas vão estar lá, tensionando, construindo e, acima de tudo, evitando retrocessos. É, infelizmente, um tempo de recuperar o básico e de reconstruir para no futuro avançar para um programa mais amplo de direitos.
A frente é ampla. E daí?
Faz falta conseguir enxergar na esquerda lideranças mais jovens que possam vir a construir uma alternativa para a Presidência no futuro (ainda que a luta seja coletiva, é fato que vivemos num sistema político ainda muito baseado em figuras individuais) pare que ela não precise depender apenas de Lula no processo eleitoral. Espero que já existam algumas se consolidando e que em breve sejam mais evidentes. Ao mesmo tempo, é ruim que não haja muitos nomes além do Lula, mas, ao mesmo tempo, felizmente há o Lula, porque sem ele é melhor nem imaginar.
A frente ampla que o Lula construiu nessa eleição é uma coisa inédita na história do Brasil. Ele colocou a Luciana Genro e o Henrique Meirelles sentados na mesma mesa. Isso não é pouco, e não é qualquer um que consegue aglutinar tantos setores da sociedade. Trouxe Marina Silva, Cristovam Buarque, Alckmin, as alas mais à esquerda do PSOL. Todo o campo democrático estava com Lula.
O ruim aí não é o Lula, é esse tanto de gente do campo democrático estar junta e ainda assim o bolsonarismo ter essa força que tem. E aí dialogo com José Genoino na mais recente edição do podcast Três por Quatro, que recomendo fortemente (é só clicar aqui pra ouvir no Spotify ou buscar em seu tocador preferido). O Lula articulou a frente ampla, importantíssima para recompor as forças democráticas e aproximar setores resistentes, mas quantos votos, no concreto, traz Henrique Meirelles? Talvez tenha faltado rua e redes, corpo a corpo. Ou talvez a força do discurso da extrema direita tenha sido maior do que o esperado mesmo. Talvez os setores democráticos tenham menos incidência na sociedade hoje.
Mas vale dizer ainda que a força da extrema direita é assustadora, mas também não é exclusividade do Brasil. A extrema direita está forte nos EUA, em diversos países da Europa, no mundo todo, o que talvez seja mais assustador ainda. Mas é isso, não se destrói o fascismo em quatro anos. Mas se vence. Esse dia vai chegar. O cenário, aliás, já é bem melhor do que era quatro anos atrás.
Nós contra eles?
Outra coisa interessante é ver os mapas de votação. No Nordeste e em quase todo o Norte dá Lula. No Centro-Oeste, na maior parte do Sudeste e no Sul deu Bolsonaro. Dentro dos estados, as regiões mais empobrecidas, como a metade sul do RS, votam no Lula. As mais ricas, como a Serra Gaúcha, votam no Bolsonaro. Dentro das cidades, a questão de classe é muito nítida também. Em geral, bairros muito ricos elegem Bolsonaro; bairros pobres elegem Lula com uma vantagem enorme. Não são as pautas progressistas que dividem o país, pelo contrário. A gente vive num país dividido, absurdamente desigual, de gente muito rica de um lado e muito pobre de outro, de muito racismo, de feminicídio, LGBTQIA+fobia. Lutar contra essas coisas nos coloca, de fato, contra quem pratica essas coisas. Porque somos, insisto, um país desigual.
Se Lula de fato se eleger, como tudo leva a crer, seu governo não vai ser fácil. Lula vai enfrentar um Congresso conservador e uma economia mundial em crise. Mas é um recomeço. É o começo do fim do pesadelo.
Cris Rodrigues
Coordenadora de redes sociais
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