22 agosto, 2024

Desigualdade tecnológica: IA e a experiência da pobreza

1) O que significa para a humanidade que as máquinas sejam chamadas de inteligentes?
2) Essas promessas se concretizaram? e
3) Quem foi ou é prejudicado nesse processo?

A IA é o espelho ideal para os ricos, feito pelos ricos para manter seu status, mas os pobres são um espelho real para a sociedade das lutas que ainda enfrentamos, lutas que demandam que trabalhemos juntos para resolvê-las com todas as vozes ouvidas.


Desigualdade tecnológica: IA e a experiência da pobreza

O comentário é de Mayla R. Boguslav, pesquisadora com pós-doutorado em Matemática pela Colorado State University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em AI and Faith, 03-07-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.

Em seu novo livro “Poor Technology: Artificial Intelligence and the Experience of Poverty” [Tecnologia pobre: inteligência artificial e a experiência da pobreza, em tradução livre], Levi Checketts afirma, acertadamente, que “o mundo está quebrado” (p. 185).

Pobreza, guerra, fome, polarização, pandemias etc. têm atormentado o mundo, especialmente nos últimos anos. Uma solução apresentada foi a inteligência artificial (IA): uma máquina que exibe inteligência humana.

Ela “promete uma vida melhor por meio de uma tecnologia inteligente. Ela revolucionará todos os aspectos da indústria... mudará o nosso lazer... aprimorará a nossa governança... melhorará os nossos resultados de saúde... tornará todos nós ricos” (p. XXIII).

Levi faz perguntas importantes sobre essa solução:

1) O que significa para a humanidade que as máquinas sejam chamadas de inteligentes?

2) Essas promessas se concretizaram? e

3) Quem foi ou é prejudicado nesse processo?

Ele explora essas questões por meio das lentes da pobreza e oferece outra solução: escutar as histórias dos pobres a fim de viver uma vida com dignidade.

O livro “Poor Technology” começa com a história da IA, da Inteligência Artificial Geral (AGI) até a riqueza por trás dela (capítulo 1). As teorias de Gottfried Wilhelm Leibniz, Claude Shannon e Alan Turing afirmam que uma máquina pode abrigar informações, que as informações podem ser reduzidas a um padrão de sequências binárias, e que os computadores digitais são máquinas que podem simular quaisquer outras máquinas (Máquina de Turing Universal).

Considerando que os humanos são simplesmente máquinas, você obtém a AGI: uma máquina com uma mente “humana” baseada na matemática. Para implementar essa visão, os cientistas da computação tiveram que responder a perguntas sobre a senciência e a consciência, acreditando que a AGI pode conhecer a verdade (Checketts usa “AGI” e “IA” de forma intercambiável): “A IA também pressupõe que haja um método universalmente válido para entender o universo” (p. 20).

Eles finalmente se estabeleceram na inteligência, pois ela é quantificável (por exemplo, o teste de QI). No entanto, as pessoas rapidamente perceberam a dificuldade em fazer a AGI e então se concentraram na IA Estreita: máquinas que podem realizar algumas partes de uma mente humana, como responder a perguntas, interpretar imagens médicas etc.

IA e classe privilegiada

“As afirmações ‘objetivas’ da IA ​​não só tendem a ser do âmbito de uma classe privilegiada dentro da sociedade, especialmente dos homens brancos, mas também são, elas mesmas, perspectivas controversas de dentro da tradição filosófica ocidental (em grande parte masculina)” (p. 25). Os ricos controlam a IA.

A IA promete um mundo melhor, incluindo uma maior riqueza, mas, nesse processo, conservou muitos vieses sociais (capítulo 2). “Os pesquisadores de IA esperam que a IA supere as fraquezas morais humanas e os pontos cegos intelectuais” (p. 30), mas isso não aconteceu.

Dados ruins de entrada significam dados ruins de saída. Por exemplo, o software projetado para reconhecer rostos humanos categorizou rostos afro-americanos como os de animais (chimpanzés) e não de humanos, replicando um racismo horrível. Além disso, todo o esforço da ciência da computação é profundamente tendencioso em termos de gênero – um “computador” inicialmente descrevia um trabalho ocupado principalmente por mulheres; somente quando a “computação” se tornou um trabalho masculino é que ela foi associada à inteligência. As mulheres são vistas como inferiores (veja o capítulo 2 para mais exemplos.)

O livro “Weapons of Math Destruction” [Armas de destruição matemática, em tradução livre], de Cathy O’Neil, mergulha fundo nos preconceitos reproduzidos pelas máquinas. Esses exemplos levantam a questão do status moral das máquinas e de quem é o culpado por esses vieses.

Um preconceito não muito mencionado na literatura é o dos pobres, e Checketts se propõe a entender a perspectiva deles em relação à IA.

Para fazer isso, é preciso entender os objetivos da IA. Uma promessa da IA ​​é economizar dinheiro maximizando os lucros, por meio do aumento da eficiência (capítulo 3). Quem vê o dinheiro economizado? Não o trabalhador médio, porque “a maximização do lucro depende inteiramente da venda de produtos por um valor maior do que o do custo de produção” (p. 76). O salário do trabalhador médio é parte do custo de produção de um item, e, portanto, o objetivo é minimizar o custo de produção, incluindo o custo de compensação dos trabalhadores.

As máquinas substituem os humanos, deixando os trabalhadores sem empregos e mais empobrecidos. A meta é reduzir a inteligência dos humanos a números, a fim de criar uma IA que possa fazer a tarefa. “A inteligência artificial geral, então, é o fetiche dos fetiches. É o sonho, a fantasia, na verdade, da classe capitalista. Ela converte todas as informações reais em números” (p. 80).

Trabalhadores reduzidos a números

Não apenas os trabalhadores são reduzidos a números, mas os pobres, especialmente, também são vistos como “desvalorizados”. Os pobres são um espelho para os ricos do que eles não querem se tornar. Em uma sociedade capitalista, o dinheiro é valorizado, e, portanto, os pobres são desvalorizados.

“O destino dos fabricantes globais substituídos pela automação, as doações de caridade dirigidas à ‘segurança da IA’ em vez do alívio da pobreza, a inscrição algorítmica do viés estrutural, o racismo ambiental perpetuado na luta por minerais de terras raras e pelo consumo massivo de energia, e todos os incontáveis ​​pobres que são tratados como dispensáveis ​​no processo de treinamento de dados são todas questões urgentes deixadas de lado em favor de elogios triunfais aos ganhos de capital prometidos pela IA” (p. 81).

As condições de trabalho são insuportáveis, e muitas grandes corporações como a Amazon defendem vigorosamente políticas antitrabalhistas. Muito dinheiro está indo para a IA, mas ela realmente resolveu os problemas da humanidade, especialmente a pobreza? Os pobres têm voz para compartilhar suas preocupações?

Os ricos lutam contra os trabalhadores, escolhendo a história a ser contada sobre os pobres em relação à IA “objetiva”: “A natureza ‘objetiva’ das IAs que realizam essas tarefas no lugar de humanos fracos mostra que os pobres são os próprios culpados... Então, empresas de tecnologia poderosas que deslocam, policiam e empobrecem os pobres são consideradas ‘inovadoras’ em seu uso da tecnologia (o imaginário sociotécnico), e os pobres são considerados moralmente deficientes” (p. 83).

Perpetua-se a história de que os ricos conquistaram o seu lugar e de que os pobres merecem o deles. Essa narrativa mantém a divisão entre ricos e pobres. Somente se os pobres estiverem dispostos a jogar segundo as regras da sociedade (estabelecidas pelos ricos) é que eles terão um valor permitido.

As políticas até entram nesse jogo: Checketts argumenta que “toda política projetada para ajudar os pobres é envolta em requisitos e políticas projetadas para impor os valores burgueses contra os pobres. Se os pobres forem mais suscetíveis ao abuso de substâncias, os políticos dos Estados Unidos promulgarão testes de drogas para os beneficiários de assistência social (apesar de isso ser mais dispendioso)” (p. 85). Os pobres não conseguem contar sua história, mas ela é escrita para eles pelo capitalismo.

Checketts pretende compartilhar as realidades da pobreza (capítulo 4). Ele compartilha sua própria história de pobreza no prefácio. A “definição básica de pobreza empregada nesta obra é a escassez ou a insegurança em relação aos recursos necessários” (p. 92). Mesmo com essa definição, Checketts luta para contar a história devido a um “paradoxo: seja qual for a medida que possamos usar, os piores da sociedade estão fadados a ser aqueles cujas realidades não podem ser postas em palavras” (p. 94). Os pobres não têm voz nem nome. Só ouvimos as histórias a partir da perspectiva dos ricos.

A prioridade de sobreviver

Ele continua afirmando que quatro características nos ajudam a entender a pobreza: falta de recursos, gostos cultivados, mentalidade de sobrevivência e consciência econômica (p. 97). Os pobres experimentam um mundo que não é ditado por eles, mas pelos ricos. Recursos, gostos, mentalidade e dinheiro são fortemente influenciados pela sociedade, que determina como “ajudar” os pobres, os quais, então, se tornam ainda mais definidos por sua falta de escolha e por sua mentalidade de curto prazo.

Sobreviver hoje em dia é sempre uma prioridade, e cada pessoa pega o que pode pagar, não importa o que seja: “Muitos indivíduos pobres estão dispostos a fazer o que for preciso para sobreviver. Assim, o crime contra a propriedade acompanha positivamente a desigualdade econômica. No entanto, o crime violento, não” (p. 120).

Essas generalidades não fazem justiça às experiências dos pobres, e, portanto, outras pessoas contaram suas narrativas por meio do cinema, incluindo as séries “Round 6” e “Trailer Park Boys”, os filmes “LadyBird: a hora de voar” e “Parasita” etc. Precisamos continuar ouvindo essas histórias.

A partir dessas histórias, Checketts levanta a questão: “Assim como o equivalente tecnológico ao Santo Graal, a IA oferece uma saída para esse sistema ou é apenas a ferramenta mais recente para reforçar as epistemologias burguesas?” (p. 126).

Ele acha que “talvez a visão da  IA que cumpre todas as fantasias consumistas possa ser reimaginada com uma IA que empodere os pobres a se defenderem, a garantirem melhores salários e a viverem livres da dominação burguesa” (p. 126). A IA pode ser uma ferramenta poderosa para ajudar o mundo quebrado se for usada em prol da humanidade e não focada em maximizar os lucros.

Ao mesmo tempo, os pobres tentaram se levantar no passado (ludismo), e não só falharam, mas também foram banidos pela lei (capítulo 5). Checketts afirma: “A IA é para os interesses dos ricos” (p. 131). Isso levanta a questão sobre se a IA resultará em um desfecho justo. Seja qual for a resposta, trata-se de um desfecho justo a partir da perspectiva de quem é mais bem servido pelo capitalismo e pela IA.

No entanto, podemos recorrer à religião para nos ajudar a focar nos pobres. Muitas religiões e filósofos promovem a ajuda a quem não tem meios. O judaísmo tem muitos mitzvot (mandamentos) específicos sobre os pobres, incluindo que os agricultores deixem toda sobra ou produto esquecido e os cantos de seus campos para que os pobres possam recolher algo (disponível em inglês aqui). O cristianismo também afirma: “Bem-aventurados os pobres, porque deles é o reino de Deus” (Lucas 6,20) (p. 133).

O filósofo Friedrich Nietzche também afirma que a Bíblia é uma inversão da moral dos fortes: “O pobre é aquele que deve ser reverenciado contra os poderosos e soberanos” (p. 133). Talvez o mais palpável disso seja Jon Sobrino ao ecoar Ignacio Ellacuria comparando a “civilização da pobreza” e o estilo laissez-faire da “civilização da riqueza” dos Estados Unidos (p. 138).

Civilização da pobreza

A civilização da pobreza “não busca o crescimento infinito ou a aquisição de capital; ela prioriza atender a todos os direitos humanos e a promover o florescimento ecológico e comunitário... O consumidor é substituído pelo cidadão” (p. 138). A IA faz parte da civilização dos ricos: “O futuro brilhante da automação nada mais é do que uma fantasia do consumidor, em que todo prazer é de alguma forma satisfeito sem nenhum custo, em que as máquinas mantêm tudo automaticamente, em que todos os problemas são resolvidos por meio da ciência e da tecnologia, em que o nosso poder é ilimitado. Em uma palavra, é uma fantasia utópica. Mas é uma utopia contada pela imaginação empobrecida da classe alta industrial” (p. 139).

Por outro lado, a civilização da pobreza é “uma civilização em que as vozes dos pobres são elevadas, em que as necessidades humanas são atendidas, e em que o lucro é subordinado à justiça, como um corretivo necessário ao modo desumano como os pobres experimentam o mundo. Essa visão é tão utópica quanto a fantasia da IA, mas a utopia da civilização dos pobres é mais autêntica para a tradição cristã. Essa visão parte das promessas que Deus nos revela: os últimos serão os primeiros, toda lágrima será enxugada, as nações do mundo se reunirão em uma só” (pp. 139-140). A religião foca na unidade, buscando ver a humanidade. Checketts argumenta que a humanidade precisa se mover rumo à civilização da pobreza a fim de ajudar a consertar o mundo quebrado.

Os pobres vivem suas vidas e reconhecem que há mais na vida do que matemática e informação. Eles não buscam criar a si mesmos à sua própria imagem, como os cientistas da computação criaram a IA à sua imagem (veja a tabela abaixo). Quer você atribua o mistério da vida a Deus ou a qualquer outra coisa, a AGI visa a matematizar o belo mistério da humanidade, da consciência e da inteligência. A matemática não pode resolver tudo.

O Unabomber era um prodígio da matemática: “A mente matemática, afiada para ver problemas como solucionáveis ​​apenas em números puros, não poderia permanecer de pé contra a realidade bruta da existência humana – a crueldade das crianças violentas, a perversidade da ciência sem ética… o cálculo mecânico frio que pendura etiquetas de preço na natureza inestimável” (p. 163).

Chamar máquinas de humanas e/ou conceder direitos a máquinas enquanto outras pessoas não recebem o mesmo status moral (incluindo os pobres, as pessoas com deficiência etc.) é problemático (conclusão). “Quanto mais o modelo epistemológico da IA ​​é reforçado como normativo, a epistemologia dos pobres é ainda mais difamada. Dizer que a IA é “consciente”, que merece direitos humanos ou que deve receber autonomia legal é fazer uma reivindicação que nem sempre é dada aos pobres” (p. 177). Todos os humanos têm direito à dignidade, e ela não é definida pela inteligência.


Conclusão

O mundo está polarizado em muitos aspectos, e, mesmo assim, as pessoas que não têm escolhas sobre como viver (como os pobres) acreditam em coisas maiores do que elas mesmas. Nós, como humanidade, precisamos parar de tentar dominar o mundo e, em vez disso, viver e ajudar uns aos outros.

Quando o mundo desmoronou durante a pandemia da Covid-19, pelo menos no começo, a maioria das pessoas se mobilizou para ajudar umas às outras e não se importou com as diferenças! Voltemos a isso, mas de preferência sem uma crise.

Onde quer que você esteja em sua jornada e independentemente de como se sinta sobre um tema, pare de brigar! É bom que discordemos. Os desentendimentos são o meio pelo qual grandes coisas são feitas. Não precisamos nos matar. Ouça as histórias uns dos outros e cuide de seus semelhantes! Somos todos seres humanos!

Poor Technology” nos lembra que a IA é o espelho ideal para os ricos, feito pelos ricos para manter seu status, mas os pobres são um espelho real para a sociedade das lutas que ainda enfrentamos, lutas que demandam que trabalhemos juntos para resolvê-las com todas as vozes ouvidas.

Este livro é um chamado a lembrar a beleza do mistério da vida e a não ficar preso em como recriá-la. Para uma boa história da IA, dos pobres e de sua interação, recomendo fortemente o livro “Poor Technology” de Checkett.

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Fonte: IHU

20 agosto, 2024

Diaconato feminino na história da Igreja

RESUMO: Hoje, pela força do Espírito, a Igreja volta a debater sobre o diaconato feminino. Muitos artigos e pesquisas bíblico-teológicas são publicados no ambiente católico. Fica cada vez mais claro a inegável existência de mulheres que exerceram com abundantes frutos o ministério diaconal nos primeiros séculos do cristianismo. Este artigo tenta demonstrar não apenas a existência desse precioso ministério, mas também como ele foi instituído com rito sacramental de ordenação; isto é, de categoria sacramental no primeiro grau da Ordem. Espero contribuir para os debates que promovam este necessário e imprescindível ministério na Igreja, ministério que, há alguns séculos, a Igreja católica nega às mulheres.

PALAVRAS-CHAVE: Mulheres. Ministério Diaconal. Igreja.

Leiam na íntegra, clique AQUI


16 agosto, 2024

Mês da Bíblia: Ezequiel 04 o projeto sadocita de poder

Mês da Bíblia: Ezequiel 03 voltar ao passado

Mês da Bíblia: Ezequiel 02 Passos de conversão

Mês da Bíblia; Ezequiel 01 introdução

Criança: cidadã ou consumista? Artigo de Frei Betto

"Se você adora passear com seu filho em shoppings, não estranhe se, no futuro, se tornar um adulto ressentido por não possuir tantos bens finitos. Se você, porém, incutir nele apreço aos bens infinitos – generosidade, solidariedade, espiritualidade – ele se tornará uma pessoa feliz e, quando adulto, será seu companheiro de amizade, e não o eterno filho-problema a lhe causar tanta aflição", escreve Frei Betto, escritor, autor de Batismo de sangue (Rocco), entre outros livros.



Eis o artigo.

Precisamos refletir sobre o que temos feito com as nossas crianças. Estamos formando futuros cidadãos ou consumistas? Pesquisas indicam que as crianças brasileiras costumam passar 4 horas por dia na escola e o dobro de olho em equipamentos eletrônicos. Impressiona o número de peças publicitárias destinadas a crianças ou que as utilizam como isca de consumo.

A pesquisadora Susan Linn, da Universidade de Harvard, constatou que o excesso de publicidade causa nas crianças distúrbios comportamentais e nutricionais. De obesidade precoce, pela ingestão de alimentos ricos em açúcares ou gorduras saturadas, como refrigerantes e frituras, à anorexia provocada pela obsessão da magreza digna de passarela.

Sexualidade precoce e desajustes familiares são outros efeitos da excessiva exposição à publicidade. São menos felizes, constatou a pesquisadora, as crianças influenciadas pelas ideias de que sexo independe de amor, a estética do corpo predomina sobre os sentimentos, a felicidade reside na posse de bens materiais.

Impregnada desses falsos valores, tão divulgados como absolutos, a criança exacerba suas expectativas. Ora, sabemos todos que o tombo é proporcional ao tamanho da queda. Se uma criança associa felicidade a propostas consumistas, tanto maior será sua frustração e infelicidade, seja pela impossibilidade de saciar o desejo, seja pela incapacidade de cultivar a autoestima a partir de valores enraizados em sua subjetividade. Torna-se, assim, uma criança rebelde, geniosa, impositiva, indisciplinada em casa e na escola.

A praga do consumismo é, hoje, também uma questão ambiental e política. Montanhas de plástico se acumulam nos oceanos e a incontinência do desejo dificulta cada vez mais uma sociedade sustentável, na qual os bens da Terra e os frutos do trabalho humano sejam partilhados entre todos.

Um dos fatores de deformação infantil é a desagregação do núcleo familiar. No Dia dos Pais um garoto suplicou ao pai, em bilhete, que desse a ele tanta atenção quanto dedica à TV... Um filho de pais separados pediu para morar com os avós após presenciar a discussão dos pais de que, um e outro, queriam se ver livre dele no fim de semana.

Causa-me horror o orgulho de pais que exibem seus filhos em concursos de beleza. Uma criança instigada a, precocemente, prestar demasiada atenção ao próprio corpo, tende à esquizofrenia de ser biologicamente infantil e psicologicamente “adulta”. Encurta-se, assim, seu tempo de infância. A fantasia, própria da idade, é transferida à TV e ao apelo de consumo. Não surpreende, pois, que, na adolescência, o vazio do coração busque compensação na ingestão de drogas.

Com frequência pais me indagam o que fazer frente à indiferença religiosa dos filhos adolescentes. Respondo que a questão é colocada com dez anos de atraso. Se os filhos fossem crianças, eu saberia o que dizer: ore com eles antes das refeições; leiam em família textos bíblicos; evitem fazer das datas litúrgicas meros períodos de miniférias, como a Semana Santa e o Natal, e celebrem com eles o significado religioso dessas efemérides; incutam neles a certeza de que são profundamente amados por Deus e que Deus vive neles.

Crianças são seres miméticos por natureza. A melhor maneira de interessar um bebê em música é colocá-lo ao lado de outro que já tenha familiaridade com um instrumento musical. Ora, o que esperar de uma criança que presencia os pais humilharem a faxineira, tratarem garçons com prepotência, xingarem motoristas no trânsito, jogarem lixo na rua, passarem a noite se deliciando com futilidades televisivas?

Criança precisa de afeto, sentir-se valorizada e acolhida, mas também de disciplina e, ao romper o código de conduta, de punição sem violência física ou oral. Só assim aprenderá a conhecer os próprios limites e respeitar os direitos do outro. Só assim evitará tornar-se um adulto invejoso, competitivo, rancoroso, pois saberá não confundir diferença com divergência e não fará da dessemelhança fator de preconceito e discriminação.

É preciso conversar com elas, através da linguagem adequada, sobre situações-limites da vida: dor, perda, ruptura afetiva, fracasso, morte. Incutir nelas o respeito aos mais pobres e a indignação frente à injustiça que causa pobreza; senso de responsabilidade social (há dias vi alunos de uma escola varrendo a rua), de preservação ambiental (como a economia de água), de protagonismo político (saber acatar decisão da maioria e inteirar-se do que significam os períodos eleitorais).

Se você adora passear com seu filho em shoppings, não estranhe se, no futuro, se tornar um adulto ressentido por não possuir tantos bens finitos. Se você, porém, incutir nele apreço aos bens infinitos – generosidade, solidariedade, espiritualidade – ele se tornará uma pessoa feliz e, quando adulto, será seu companheiro de amizade, e não o eterno filho-problema a lhe causar tanta aflição.

Saber educar é saber amar.


Fonte: IHU




Lei do “Pacote do Veneno” é questionada no Supremo

Partido políticos e centrais trabalhistas questionam retrocessos da nova lei de agrotóxicos, sancionada no fim do ano passado e que viola direitos à saúde, meio ambiente e administração pública.

A reportagem é publicada por Observatório do Clima, 15-08-2024.

A Lei 14.785/2023, conhecida como “Pacote do Veneno”, é objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) protocolada nesta quarta-feira (14/8), Dia de Combate à Poluição, no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Rede Sustentabilidade, Partido dos Trabalhadores (PT), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar). A iniciativa conta com o apoio técnico e jurídico de organizações socioambientais e movimentos populares.

A ação destaca que a norma, ao enfraquecer a regulamentação de agrotóxicos, viola princípios constitucionais norteadores da administração pública, como legalidade e eficiência, e direitos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, à saúde, dos povos indígenas, à vida digna, do consumidor, de crianças e adolescentes, entre outros. Em vista disso, os autores da ADI requerem que seja reconhecida a inconstitucionalidade antes do encerramento do julgamento da ação, por meio de uma medida cautelar.

Jakeline Pivato, da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, explica que a lei vai na contramão das reais necessidades de saúde e meio ambiente apontadas historicamente pela sociedade civil organizada.

“Flexibilizar uma lei tornando-a incapaz de proteger o ser humano e o meio ambiente é incentivar a morte. Historicamente, os movimentos, organizações e a sociedade civil têm denunciado os impactos dos agrotóxicos no Brasil. A Lei do Pacote do Veneno traz, para uma realidade já trágica, produtos ainda mais perigosos. Além de limitar a capacidade de ação de nossos órgãos reguladores, como Anvisa e Ibama. Portanto, denunciamos que essa lei fere o direito à alimentação saudável, ao meio ambiente sustentável e a saúde da população brasileira. Nesse sentido, seguimos em luta afirmando sua inconstitucionalidade “, diz Pivato.
Flexibilização da lei

A Lei 14.785/2023 constitui uma mudança profunda na legislação anterior, a Lei 7.802/1989. Na legislação anterior, cabia ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) a atribuição conjunta de avaliação, a partir de critérios técnicos e científicos, para a liberação ou veto de registros e fiscalização dos agrotóxicos. Na nova legislação, a atribuição tornou-se tarefa exclusiva do Mapa, pasta sob forte influência do agronegócio. Aos demais órgãos cabe apenas a revisão complementar.

O projeto de lei que originou a atual lei do Pacote do Veneno é de autoria do ex-senador Blairo Maggi (PP-MT), conhecido como “rei da soja”. O projeto contou com intenso lobby do agronegócio e esforço de sua bancada vinculada à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). O argumento central era a necessidade de atualização da normativa, pois a legislação então vigente impedia a era impeditiva à aprovação de novos registros.

No entanto, apesar desse argumento, o Brasil teve, nos últimos anos, uma escala crescente de novas autorizações de agrotóxicos. Somente no ano de aprovação do “Pacote do Veneno”, foram 555 novos registros.
Na direção contrária

Além da centralização do processo de liberação de registro no Mapa, a nova lei tem uma definição mais vaga do critério para veto a registros de agrotóxicos com maior grau de toxidade, além de revogar uma série de regras relativas a pagamento de taxas ambientais e dispensa do registro de agrotóxicos para fins de exportação, entre outras medidas.

O documento protocolado hoje argumenta que a lei “vai na direção contrária à tendência mundial de limitação e proibição desse tipo de substância tóxica, aumenta o risco de contaminação ambiental e humana, eleva o perigo de incidência de câncer e outras doenças agudas e crônicas relacionadas à exposição da população brasileira aos agrotóxicos, contamina os ecossistemas nos diferentes biomas brasileiros e põe em risco sobretudo o trabalhador rural e contraria os princípios da prevenção, precaução, agroecologia e do desenvolvimento sustentável”.
Impactos à saúde e ao meio ambiente

À época da aprovação do projeto de lei pelo Congresso Nacional, a Anvisa destacou em nota que a medida, caso fosse implementada, colocava “vidas brasileiras em risco”. Já o Ibama classificou o projeto de lei como um “flagrante retrocesso socioambiental”.

Ao longo da tramitação legislativa, a proposta foi amplamente repudiada e denunciada por órgãos públicos, autoridades nacionais e internacionais, conselhos de direitos e controle social, órgãos do Sistema de Justiça, como por Relatorias Especiais da ONU, Conselho Nacional de Direitos e Instituto Nacional do Câncer (Inca).

Desde 2011, o Brasil está no topo do ranking de países que mais usam agrotóxicos. Só em 2022, foram aplicados aqui mais agrotóxicos do que a quantia somada dos Estados Unidos e China – ao todo, 800 mil toneladas , segundo a FAO/ONU. Entre 2010 e 2019, o Ministério da Saúde registrou a intoxicação de 56.870 pessoas por agrotóxicos no país. “Considerando a expressiva subnotificação nesses casos, da ordem de 1 para 50, o número é potencialmente bem maior, podendo chegar a 2.843 milhões de pessoas intoxicadas por agrotóxicos no país”, aponta a ação. Os autores ainda destacam o alto risco de registros e uso de agrotóxicos com potencial cancerígeno.

Na ADI ainda se destaca a vinculação do uso de agrotóxicos à produção de commodities, como soja e milho, e não de maneira genérica a alimentos das famílias brasileiras como é presente no discurso do agronegócio. Outro destaque é o impacto ambiental. “Já é fartamente documentado que esse tipo de produção agropecuária gera desmatamento e, consequentemente, contribui para as emissões de GEE [gases de efeito-estufa]”, enfatizam os autores.

“A Ação Direta de Inconstitucionalidade elaborada pelos partidos políticos em conjunto com organizações da sociedade civil e movimentos sociais traz medidas justas e necessárias”, afirma Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima. “A nova lei dos agrotóxicos contém um conjunto de retrocessos inaceitáveis. Não há como aceitar a inconsequente flexibilização de regras e o enfraquecimento do controle governamental que ela impõe.”

Fonte: IHU

12 agosto, 2024

Você não sabe o valor que a capoeira tem!

 


Você não sabe o valor que a capoeira tem!

“Eu falo da capoeira com muita emoção
Mexe com meu corpo todo com meu coração
Se é pra falar de amor, ela que me conquistou
Ela me botou nos braços e me tirou do chão

Um dia um grande amigo ele me disse assim
Vamos jogar capoeira, vamos lá brincar
Muita gente conheci, ai foi que eu entendi
Que a capoeira ela veio pra me ajudar”

(Alexsandro Silva dos santos, “Você não sabe o valor que a capoeira tem”)