A 30 quilômetros de Ipanema, a vida passa com menos de três reais por dia
A penas trinta quilômetros da praia de Ipanema, em Jardim Gramacho há pessoas não se vive, se sobrevive, morando em condições tão precárias como num pobre povoado da África. Jardim Gramacho, a comunidade que abrigou até 2012 o maior lixão de América Latina, famosa no mundo inteiro por um documentário do artista plástico Vik Muniz que chegou ao Oscar, poderia construir um monumento dedicado ao descaso e a promessas descumpridas. Mas não há tempo para pensar nisso. O bairro, em Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio, é um bolsão de pobreza extrema, a face dura e invisível da desigualdade do Brasil, do abandono do poder público, um lugar onde se vive, rodeado de cachorros sarnentos, com menos de três reais por dia.
A reportagem é de María Martín, publicada por El País, 13-12-2017.
Jardim Gramacho não tem água encanada, a eletricidade depende dos gatos e da aleatoriedade dos picos de energia que estouram os poucos eletrodomésticos que ainda funcionam. Aqui tampouco há rede de esgoto e, em algumas casas, nem banheiro. A higiene pessoal, para quem nem chuveiro tem, é feita numa laguna próxima e verde. As moradias construídas com portas de armários e chapas de madeira velha, servem para pouco nos dias de chuva. “Quando chove, cai mais água dentro do que fora”, ouve-se com frequência.
– Quando foi a última vez que você comeu carne?
– Ah, pouco tempo, umas duas semanas atrás.
– E peixe?
– Ihhh, nem lembro.
– E fruta?
– Fruta? Isso aqui é um luxo.
Vanessa Dias, grávida do sexto filho aos 31 anos, está sentada no degrau da entrada da sua casa de madeira. Uma cerca improvisada com tábuas delimita um quintal cheio de entulho e lixo. A precária dieta da família de Vanessa, longe de qualquer recomendação do que seria uma alimentação saudável, é só mais um exemplo da sua exclusão. A mulher, com vários dentes a menos e aparentando 20 anos a mais, trabalhou no antigo lixão desde a adolescência e nunca teve carteira assinada. O marido, um pedreiro desempregado de 42 anos, há tempos que não consegue um biscate. Suas duas únicas fontes de renda são os 150 reais que recebe do Bolsa Família pelos três filhos que moram com ela e uns 200 reais que consegue vendendo desinfetante.
Se divididos esses 350 reais pelos cinco membros da família, os Dias vivem com uma renda de 2,3 reais por dia e por pessoa. O último cálculo do Banco Mundial para determinar a linha da pobreza extrema é de 1,90 dólares por dia, ou 6,18 reais. Os brasileiros que vivem abaixo deste patamar devem passar de 2,5 milhões a 3,6 milhões entre 2016 e o final deste ano, segundo a instituição.
Enquanto Vanessa fala da sua rotina, três dos seus filhos de nove, oito, e dois anos brincam com dois gatinhos recém nascidos entre os escombros. Os bichos miam ao caírem torpemente no chão. Estão lançando eles alto demais. Um dos meninos, que só neste ano já foi internado sete vezes por pneumonia, briga com o outro. A mãe põe ordem com apenas um par de gritos. As moscas pousam com insistência no rosto da mulher, mas ela nem se move. Dentro da residência, limpa na medida do possível, é ainda pior. No interior do quarto e sala, onde todos dormem, elas voam em nuvens. Por todas partes. Ela não reclama de quase nada, “apenas gostaria de que chegasse água”.
A miséria no Jardim Gramacho percebe-se não apenas na dieta dos seus 20.000 moradores, as cáries das crianças, a alta evasão escolar, o analfabetismo, ou os ratos, insetos e escorpiões que infestam o bairro. A miséria exclui, ela isola. O morador de Jardim Gramacho não sai de Jardim Gramacho. Vanessa puxa a média para baixo, mas o resto dos seus vizinhos não tem dinheiro nem para pagar uma passagem de ônibus para ir no médico.
Segundo um levantamento da ONG Teto, que atua no local construindo casas desde 2013, a renda média per capita dos moradores de Jardim Gramacho é de 331,96 reais, 11 reais por dia, praticamente o valor de duas passagens de metrô ou de trem. A renda para os que trabalham triplica-se, mas aqui cerca de 45% dos vizinhos não tem emprego (a taxa nacional de desemprego é de 12,4%), segundo essa pesquisa realizada com mais de 700 moradores. Não é falta de vontade. Dezenas de vizinhos estão doentes, não tem formação nenhuma, ninguém com quem deixar os filhos ou precisam cuidar da casa.
A história do bairro é também a historia do seu lixão, o maior de América Latina, de onde seus mais de 1.500 catadores oficiais retiravam duas toneladas diárias de materiais recicláveis. Aquela montanha de 60 metros de lixo fez o bairro crescer e inspirou os cenários de uma das tramas da novela Avenida Brasil. Não era o melhor dos empregos, mas servia de sustento a famílias inteiras. Quando o local foi fechado, em 2012, foi como tirar os jalecos salva-vidas de gente que não sabe nadar no meio de uma tempestade. Prometeram a eles, nos diferentes níveis do poder público, cursos profissionalizantes, urbanização do bairro, novas fontes de renda... Mas ninguém cumpriu. Os antigos catadores chegaram a receber uma indenização de cerca de 14.000 reais quando o aterro fechou. Muitos abriram uma conta de banco pela primeira vez, mas esse dinheiro há tempos que acabou.
“Jardim Gramacho tem a situação mais gritante onde já trabalhei”, afirma Carolina Thibau, coordenadora da Teto. “O fechamento do aterro foi uma ação do poder público que depois não deu a assistência que havia prometido. Não garantir os direitos básicos dos moradores é uma decisão política, não é falta de recursos”, lamenta Thibau, lembrando que o município de Duque de Caxias é o terceiro maior PIB do Estado e o 21º do Brasil, segundo dados do IBGE. “Não é por mero acaso essa situação que eles estão vivendo, e muito menos por opção. É por falta de oportunidade e respeito ao seus direitos. Essas pessoas não estão sendo ouvidas!”.
Rogério de Santos, de 56 anos, trabalhou um quarto de século no lixão que ocupou por mais de três décadas a região. O homem, castigado fisicamente e com um pequeno tumor no olho esquerdo, nunca deixou de ser catador. Hoje consegue uns 20 reais por dia recolhendo lixo dos depósitos ilegais que se multiplicaram no bairro. Rogério, sujo dos pés a cabeça, é um dos moradores que não tem banheiro. O vaso sanitário é o mato do fundo da residência. “Poxa, eu vivia mil vezes melhor antes do aterro fechar. Hoje não tenho nada. Meu almoço de hoje foi mingau puro”, lamenta na porta da casa-sala que divide com mais dois catadores e que fede a comida podre. “Não repare na sujeira”, pede com vergonha.
“Já morei muito pior, tinha só um par de havaianas”
A máquina de lavar está por fim funcionando do lado de fora da casa. As roupas batem numa água enegrecida, enquanto Fátima Catarina, de 33 anos, prepara o almoço familiar e o lixo queima no quintal. Maria Joaquina e Cirilo, dois porcos recém nascidos de estimação, ziguezagueiam pelos três espaços da residência: uma cozinha anexa ao banheiro, uma salinha com dos sofás onde dormem quatro crianças e um dormitório. Calças, camisetas e toalhas da família estão em todo lugar. Aqui, como em muitas outras casas, não há armários. A louça se lava no chão da rua, com baldes e água de chuva.
“Eu tinha sete anos quando me mudei do Recife para o Rio. Viemos aqui por conta do lixão. Trabalhei aí dos 13 aos 16 anos, até que fiquei grávida pela primeira vez”, relembra Fátima. “A gente catava, mas éramos felizes. Hoje, muitos dos que trabalhavam com a gente se envolveram com o tráfico. Não tem mais emprego”.
Cada um dos seis membros da família de Fátima conta com 5,8 reais por dia. “A gente se vira, mas nunca fizemos lanche, nem vamos no shopping. Este Natal, nem sei como vai ser. Eu não lembro a última vez que saí daqui”, explica a mãe que nunca mais voltou à sua cidade natal. Fátima não vai nem ao mercado. Muita da comida dos moradores de Jardim Gramacho vem do descarte dos supermercados. É comida fora da data de validade ou no seu limite que não pode ser mais vendida ao cliente oficial, mas que aqui tem saída a preço de saldo. “Carrefour é chique para nós”, diz Fátima. Ela, que reclama dos ratos e da falta de água como se fossem seus únicos problemas –“já morei muito pior, só tinha um par de havaianas”–, sim, sonha em se mudar. “Tenho que proteger meus filhos. Os traficantes já começam olhar minhas meninas desse jeito, sabe?”.
O tráfico que manda em tudo
As normas que regem a comunidade passam longe do poder público que, segundo os moradores, “só aparece na eleição”. Aqui manda o tráfico. Em tudo. Nos lixões clandestinos que servem de único sustento para muitos, nas brigas entre vizinhos, e na ordenação do território, na beira de um manguezal da Baia de Guanabara. É o chefe do tráfico quem decide quem, onde e quando alguém pode construir seu barraco. O local, embora nessas condições, atrai famílias em desespero.
A família de Manuel Oliveira da Silva, de 35 anos, recebeu um ultimato duas semanas atrás: eles têm que deixar o apartamento onde moram porque não conseguem mais pagar os 450 reais do aluguel. Estão na rua. De novo. “Sou pedreiro, mas estou desempregado há um ano e meio”. A família cata material nas ruas junto aos seus filhos de quatro e cinco anos, que ficaram fora da escola por falta de vaga, e um bebê. Recebem um real pelo quilo de garrafas pet – umas 36 garrafas.
A família, sem ter onde ir, recebeu permissão para se instalar num terreno de uns 20 metros quadrados do Jardim Gramacho. Eles vão ter um máximo de 90 dias para construir uma casa, e se instalar. Manuel mostra seu novo lar que já tem quatro paredes erguidas. “Não repare na bagunça que sou pobre”, diz com sarcasmo. “Você acha que eu queria estar com minha esposa fazendo um barraco desses? Mas quando a gente é honesto é assim. Depois daqui vamos catar a madrugada toda para comprar o leite do bebê. Não temos nem para isso”.
No processo de capinar o local, coberto de entulho e lixo, uma senhora apareceu reclamando seu pedaço de terra. Levava semanas construindo um lugar para o filho morar. Mas demorou mais do acordado. Em pleno conflito por quem ficaria com essas quatro paredes, a mulher perdeu. Poderá ficar com outro terreno, mas terá que levantar tudo do zero. “As regras são as regras”, lembra para ela Henrique Portela, uma espécie de síndico do local que começou a trabalhar no lixão aos sete anos e só parou aos 30, quando fechou. A lógica, como a vida no bairro, é cruel: “Não entrou [no terreno], não quer”.
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