09 maio, 2017

Cenário político indigenista vivido no Brasil é caótico!

CARTA DE DOM ROQUE NA 55ª ASSEMBLEIA GERAL DA CNBB
“Felizes os mansos, porque receberão a terra em herança.” (Mt 5,5)
O cenário político indigenista vivido no Brasil é caótico. O risco iminente de retrocessos contra os direitos indígenas, de modo especial ligados ao território, é alto. O agravamento das violações de direitos humanos dos povos indígenas no Brasil é evidente.
As ameaças e ataques anti-indígenas ocorrem nos três poderes do Estado Brasileiro. Favorecidos com doações milionárias de grandes corporações, inclusive multinacionais, o ruralismo saiu ainda mais fortalecido das urnas, em 2014. O impeachment, de 2016, permitiu aumentar o ataque contra os povos indígenas em todo o território nacional.
A bancada ruralista, que já exercia forte pressão sobre o governo Dilma, agora assumiu, por completo, a condução política do governo Temer. Diferentes órgãos foram ocupados por pessoas com posicionamentos antagônicos aos povos indígenas, quilombolas, demais comunidades tradicionais e camponeses sem terra.
Até mesmo o Ministério da Justiça, que tem papel fundamental na condução dos procedimentos administrativos de demarcação das terras indígenas, foi assumido por um membro da bancada ruralista, o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), relator da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/00, principal instrumento legislativo contra os direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil.
O Ministro da Justiça destaca-se por ser um operador orgânico, empenhado nas ações que visam a desconstrução dos direitos dos povos indígenas no Brasil. Corporações empresariais ligadas ao agronegócio foram as principais financiadoras de sua campanha à Câmara dos Deputados. Como ministro do governo Temer, é o representante do núcleo duro da bancada ruralista, setor que atua de modo articulado, sistemático e violento no ataque aos povos e direitos indígenas.
Pelo enxugamento de recursos e descompromisso político, o governo Temer paralisou os procedimentos administrativos de demarcação das terras indígenas. Desde que assumiu o governo, em maio de 2016, nenhuma terra indígena foi homologada pelo Presidente e sequer declarada pelo Ministro da Justiça.
O Executivo federal também demitiu funcionários e cortou o orçamento da Fundação Nacional do Índio (Funai). Com isso, mais de cinquenta coordenações técnicas locais e ao menos cinco bases de proteção a povos isolados e de recente contato estão sendo fechadas pelo órgão indigenista.
O enxugamento da máquina governamental configura a desproteção dos povos indígenas, perpetua situações de vulnerabilidade sócio cultural, conflitos e violências enfrentadas pelos povos, de modo especial nas regiões Sul, Sudeste, Nordeste e Noroeste do país. Também favorece a invasão, loteamento e apossamento ilegal de terras indígenas já demarcadas; ao mesmo tempo em que fortalece o risco de genocídio contra diversos povos isolados, de modo especial na região Amazônica.
No Judiciário, de modo especial no Supremo Tribunal Federal (STF), há intensa disputa em torno da interpretação do atual texto constitucional. Os ruralistas e alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) defendem a tese político-jurídica do Marco Temporal, segundo a qual os povos somente teriam direito às terras nas quais estavam na posse em 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Brasileira. Naquele momento, muitos povos indígenas estavam encurralados em terras não demarcadas e impedidos de reivindicar seus territórios. Trata-se de matéria de profunda importância e gravidade. Eventual decisão majoritária do STF em favor dessa tese, significará, na prática, a legalização e legitimação de todas as ações violentas, cometidas por forças privadas e pelo próprio Estado brasileiro, até aquela data, que resultaram em expulsões dos povos de suas terras.
A mera possibilidade de legitimação dos esbulhos de terras indígenas cometidos até outubro de 1988, tem servido para insuflar a prática de novas invasões, loteamentos e apossamentos ilegais de terras indígenas já demarcadas, práticas que estão em curso especialmente nos estados de Rondônia e Pará.
Perseguições ao Cimi, seus membros e colaboradores: A CPI do Cimi no Mato Grosso do Sul e a CPI da Funai/Incra na Câmara dos Deputados.
No advento dos 45 anos completados no último dia 23 de abril, o Cimi tem a alegria de informar sobre o arquivamento, por parte do Ministério Público Estadual (MPE) e Ministério Público Federal (MPF), do Relatório produzido pela CPI do Cimi no Mato Grosso do Sul. A Comissão Parlamentar de Inquérito criada e conduzida por parlamentares ruralistas invadiu a vida institucional do Cimi, de membros e colaboradores da organização durante oito meses, no período de setembro de 2015 a maio de 2016.
Ao longo de todo esse tempo, acusações marcadamente falaciosas foram amplamente divulgadas como se verdade fossem por diferentes veículos de comunicação, inclusive pela TV pública da própria Assembleia Legislativa daquele estado. Imagens de missionários e seus familiares e crianças foram divulgadas sem o menor respeito.
O arquivamento do Relatório da CPI do Cimi pelos órgãos de controle do Estado brasileiro demonstra que a luta por direitos e em defesa da Vida no Brasil não é e não pode ser tratada como crime em nosso país. Com o arquivamento do citado Relatório, fica novamente demonstrado, mais uma vez, que o Cimi, seus membros e colaboradores atuam, única e exclusivamente, dentro dos marcos político-legais vigentes no Estado brasileiro.
A motivação central do arquivamento do Relatório da CPI, a saber, por falta de provas, materializa o fato de que as acusações desferidas por parte de representantes do agronegócio sul mato-grossense contra o Cimi, seus membros e colaboradores tinham exclusivo viés político-ideológico e se deram num contexto de perseguição, tentativa de criminalização e na intenção de provocar danos morais contra uma organização reconhecida, nacional e internacionalmente, pelo compromisso com a vida dos povos indígenas e de uma sociedade plural e democrática.
Nesse contexto, o Cimi chama a atenção para o fato de que o referido Relatório, devidamente arquivado pelos Ministérios Públicos Estadual e Federal no Mato Grosso do Sul, foi requerido e pode estar sendo ‘requentado’ pelos ruralistas no âmbito da CPI da Funai/Incra na Câmara dos Deputados. O relatório desta nova CPI provavelmente será aprovado ainda neste mês de maio de 2017.
Por evidente, eventual menção e retomada, pela CPI da Funai/Incra, de acusações dirigidas ao Cimi, a seus membros e colaboradores que foram arquivadas junto com o Relatório da CPI do Cimi no Mato Grosso do Sul, significará prática recorrente, de modo consciente e deliberado, por parte de seus autores, de perseguição política, tentativa de criminalização e provocação de danos morais contra a organização, seus membros e colaboradores.
Cumpre lembrar que estas estratégias de acusações infundadas e tentativas de linchamento moral contra o Cimi não são inéditas. No advento do processo Constituinte, em 1987, na tentativa de desqualificar a luta dos povos indígenas pela garantia de seus direitos no texto Constitucional, o Cimi também sofreu um duro processo de acusações públicas feitas por meio do Jornal Estado de São Paulo. As acusações desembocaram numa Comissão Parlamentar de Inquérito no Congresso Nacional. Na ocasião, ao longo do funcionamento da CPI foi comprovado o caráter totalmente fraudulento dos documentos que embasavam as acusações contra o Cimi. Composta por maioria contrária ao Cimi e à causa indígena, a CPI finalizou sem a votação do relatório que necessariamente inocentaria o Cimi.
Incidência junto a Organismos Multilaterias em defesa da causa indígena no Brasil
Diante do caos vivido no Brasil quanto às violações de direitos humanos provadas por representantes dos interesses do agronegócio, bem como, do absoluto controle político das estruturas legislativas e de governo no Estado brasileiro pelo mesmo setor, a atuação política junto a organismos multilaterais em defesa dos direitos e da vida dos povos indígenas ganha ainda mais importância.
Neste sentido, o Cimi tem mantido presença, por meio de seus missionários, e contribuído para garantir a participação de lideranças indígenas em diferentes espaços de incidência internacional, tais como: o Fórum Permanente da ONU sobre Povos Indígenas, o Conselho de Direitos Humanos da ONU, as representações diplomáticas do Brasil junto à ONU e à OEA; a Relatoria Especial da ONU para Povos Indígenas, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligadas à Organização dos Estados Americanos (OAE).
Destacamos, neste contexto, a atuação do Cimi, por meio de suas assessorias e missionários, no Caso Xucuru, que está em julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, e a apresentação de denúncia formal sobre violações e violências sofridas pelos Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em conjunto com organizações parceiras, em 2016.
Importante salientar ainda, que, em 2016, o Cimi obteve o Status Consultivo Especial no Conselho Econômico e Social da ONU. O fato atesta o reconhecimento da Organização das Nações Unidas relativamente à atuação do Cimi em defesa da Vida e dos direitos dos povos indígenas no Brasil e fortalece a missão e a responsabilidade do Organismo de Pastoral junto a instâncias multilaterais.
A visita ao Brasil e o Relatório produzido pela Relatora Especial da ONU sobre povos indígenas, Victoria Tauli Corpus, em 2016, em que constam informações sobre violações e violências cometidas, especialmente, contra povos indígenas no Mato Grosso do Sul, Bahia e Pará, bem como as recomendações feitas pela mesma , atestam a gravidade da situação vivida pelos povos indígenas em nosso país.
Os ataques violentos feitos por milicianos de modo organizado e com requintes de crueldade, desferidos após a visita da Relatora Especial da ONU e já no contexto do Governo Temer, especialmente nos casos do conhecido “Massacre de Caarapó”, contra os Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul em junho de 2016, e o ataque contra os Gamela, neste domingo 30 de abril de 2017, no Maranhão, demonstram o agravamento da situação e a total desconsideração às normas legais vigentes no Brasil e às recomendações de organismos internacionais por parte de representantes do agronegócio no Brasil.
Parece-nos fortemente paradoxal e não razoável o fato de que uma notícia, por exemplo, sobre a ocorrência de eventual caso de febre aftosa em um boi numa determinada região do Brasil provoque restrição, suspensão e até mesmo o fechamento dos mercados à importação de carne bovina brasileira, ao mesmo tempo em que notícias como o massacre de Eldorado do Carajás, ocorrido no Pará, em 1997, o Massacre de Caarapó, no Mato Grosso do Sul, em 2016, e o Massacre de Colniza, no Mato Grosso, em 2017, não tenham consequências, tais como, de restrição, suspensão ou fechamento nestes mesmos mercados à importação de commodities produzidas pelo agronegócio nessas regiões.
A Avides como motivação dos ataques anti-indígenas
Em momentos de crise no sistema capitalista, as grandes corporações intensificam suas iniciativas na perspectiva de manter e ampliar as taxas de lucro, potencializando a concentração de capital no mundo . Para tanto, atuam fortemente em todos os níveis, para flexibilizar os direitos conquistados pelos trabalhadores, para se apropriar de bens estatais por meio de privatizações e para expandir a posse e a exploração de bens naturais.
O acesso, a exploração e a transformação de bens naturais em mercadoria comercializável é um mecanismo de geração de lucro fácil e rápido. O movimento expansionista vigente em toda a América Latina, e no Brasil em especial, dá-se nessa perspectiva. As terras que estão na posse dos povos indígenas e de outras populações tradicionais são ricas em bens naturais. Por isso, essas áreas estão sob permanente assédio e o direito sobre elas estão sob intenso ataque.
Os Povos Conscientes e em luta na defesa de seus direitos e projetos de vida.
Diante disso tudo, por óbvio, os povos indígenas não ficariam de “braços cruzados”. O ataque sistemático e violento aos seus direitos e às suas vidas faz com que se mobilizem em todas as regiões do país. Nas aldeias, nas estradas, nas retomadas, nas autodemarcações, nas incidências e mobilizações, no Brasil e em instâncias multilaterais, continuam fazendo as denúncias contra os projetos de morte do agronegócio e anunciando, em alto e bom som, que estão vivos e que darão suas vidas pelo direito à Vida e ao futuro de sus gerações em seus territórios demarcados e protegidos.
Continuidade e audácia do nosso compromisso com os povos indígenas
Eu trago do 14º Acampamento “Terra Livre”, de Brasília, os gritos dos povos indígenas para essa nossa assembleia da CNBB: “demarcação já!”, “respeito aos territórios demarcados!”, “respeito à vida dos povos indígenas”. O Relatório de Violência contra os povos indígenas no Brasil nos obrigou, novamente, de divulgar uma realidade triste. Dentre outras violências graves, mais de 650 casos de omissão e morosidade na regularização de terras, cerca de 600 óbitos de crianças de 0 a 5 anos, e dezenas de assassinados no ano de 2015 foram registrados.
Até hoje, a defesa dos povos indígenas é uma luta pela vida e contra a morte. Pecado não é apenas “matar índios”. “Pecado” significa também, indiferença diante das ameaças de sua causa pelos três poderes, ingenuidade de parcerias e indigenismo de gabinete.
Faz 10 anos que se realizou, aqui em Aparecida, a Va Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Lhes asseguro, caros colegas no ministério episcopal, que as missionárias e os missionários do Cimi têm “um compromisso com a realidade” (DAp 491), como o Documento de Aparecida (DAp) nos recomendou e que esse compromisso “nasce do amor apaixonado por Cristo que acompanha o Povo de Deus na missão de inculturar o Evangelho na história” (DAp 491). Mas esse compromisso do testemunho pascal levou o Cimi, muitas vezes, aos limites entre vida e morte. Celebramos este ano o jubileu de dois mártires do Cimi: o salesiano Rodolfo Lunkenbein (1939-1976) e o jesuíta Vicente Cañas (1939-1987), Rodolfo assassinado, faz 40 anos, porque defendeu o território dos Bororo, Vicente, faz 30 anos, porque defendeu o território dos Enawenê Nawê. Rodolfo era conselheiro do Cimi, Vicente sua consciência inquieta. Mas os primeiros mártires da causa indígena foram os próprios índios.
Por fim, agradeço profundamente o apoio, o envolvimento e o empenho da Presidência da CNBB em relação à causa indígena no Brasil e, de modo particular, ao Cimi. Estou convicto de que se não fosse isso, a situação descrita neste pronunciamento seria muito mais grave.
Quero terminar essa comunicação com um breve testemunho de Dom Aldo Mongiano, meu antecessor de Roraima. Ao despedir-se da diocese, em 1996, D. Aldo escreveu uma Carta Pastoral que poderia ser do apóstolo Paulo: “Fui espionado, sofri ameaças, insultos, falsos testemunhos. […] Durante vinte anos, políticos, jornais e rádios locais alvejaram atirando contra a Igreja de Roraima, lançando contra mim e contra os missionários da Consolata as críticas mais venenosas e as calúnias mais infames. […] Quando parti para Roraima, tinha comigo só o passaporte, a passagem e o documento de Roma, no qual tinha sido nomeado bispo. Quando fui embora, nem isso tinha” (Mongiano, Aldo. Roraima entre profecia e martírio, Diocese de Roraima, 2011). Mas lutar não foi em vão. Eis a nossa esperança também hoje. Faz tempo que o território dos povos indígenas de Roraima e dos Bororo e dos Enawenê Nawê do Mato Grosso foram demarcados. O martírio aponta para o núcleo da esperança de uma causa aparentemente perdida, de uma causa que na última instância e antecipadamente recebeu o veredito de Deus fiel e justo: “serás livre e tua causa viverá”. Vivemos de esperança em esperança, porque acreditamos: “Felizes os mansos, porque receberão a terra em herança.” (Mt 5,5).
Dom Roque Paloschi
Arcebispo de Porto Velho, Rondônia, e Presidente do Cimi

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