Decisão aprofunda sucateamento do órgão e deve intensificar conflitos agrários no país
Rute Pina - Brasil de Fato | São Paulo (SP),2 de Janeiro de 2019
Em um rápido aceno à bancada ruralista, o presidente de extrema direita Jair Bolsonaro (PSL) transferiu ao Ministério da Agricultura a identificação, delimitação e demarcação de terras indígenas e quilombolas poucas horas após sua posse.
Estas eram algumas das principais atividades executadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) nos últimos 30 anos. A alteração está na medida provisória que estabelece a nova estrutura do governo federal.
Agora, o ato será de responsabilidade da pasta, que está sob comando de Tereza Cristina (DEM-MS). A ministra, conhecida como “musa do veneno”, também integra a bancada ruralista. Em 2014, na campanha eleitoral em que disputava uma vaga na Câmara dos Deputados, ela recebeu R$ 2,8 milhões de empresários ligados ao agronegócio.
André Bezerra, membro da Associação Juízes para a Democracia e doutor pelo Programa em Humanidades e Direitos da USP, afirma que a medida vai reduzir a autonomia do órgão.
“Uma fundação pública como a Funai é, em sua essência, autônoma. Pode então uma canetada de uma medida provisória retirar essa autonomia, tirar poderes de algo que deveria ser autônomo?”, questiona.
Além disso, Bezerra considera que, com a transferência, os direitos dos povos indígenas serão fragilizados. Por isso, a medida seria inconstitucional.
“Os direitos dos povos indígenas estão previstos na Constituição em razão de uma situação historicamente existente no Brasil que é o colonialismo”, explica.
“Enfraquecer uma fundação que existe para defender os direitos dos povos indígenas significa enfraquecer os direitos dos povos indígenas. E isso é uma prática indiretamente inconstitucional. Eu falo indireto porque, aparentemente, não viola nenhum dispositivo específico da Constituição — mas viola toda uma sistemática de proteção conquistadas pelos povos indígenas”, alerta Bezerra.
Ele afirma ainda que a retirada das demarcações do âmbito da Funai aprofunda o esvaziamento do órgão e defende a revogação da medida.
Por e-mail, a assessoria de imprensa do órgão afirmou que “respeita a decisão do novo governo e continuará a cumprir a missão institucional de proteger e promover os direitos dos povos indígenas”.
Um funcionário da Funai que atua no Paraná e que não quis ser identificado afirmou ao Brasil de Fato que os colegas ainda estão “digerindo a novidade”. Segundo ele, mais do que esvaziar, a medida faz parte de um “verdadeiro sucateamento à vista”.
“O processo relativo às demarcações de terras era o que mantinha a essência do órgão indigenista federal. São 129 terras indígenas ainda em estudo. Cerca de 11 milhões de hectares. Isso para não falar das possíveis revisões das áreas já homologadas, como, por exemplo, Raposa Serra do Sol", disse o funcionário.
“Outro aspecto preocupante, é claro, trata-se da incumbência ser passada a quem mais tem interesse em não criar mais áreas que possam ‘atrapalhar’ o agronegócio.”
No Twitter, Bolsonaro afirmou nesta quarta-feira (2) que vai “integrar” indígenas e valorizar a todos os brasileiros. “Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs”, publicou na rede social.
Em nota, o Instituto Socioambiental (ISA) também se posicionou e afirmou que definição do Ministério da Agricultura como órgão responsável pelo reconhecimento de territórios dos povos indígenas e comunidades quilombolas estabelece "um inaceitável e inconstitucional conflito de interesses".
"A medida subordina os direitos fundamentais dessas minorias aos interesses imediatos de parcelas privilegiadas do agronegócio, parte diretamente interessada nos conflitos fundiários. É ainda mais grave considerado que o dirigente responsável pelas temáticas é representante da UDR [União Democrática Ruralista] e dos grandes proprietários de terra. Isso indica que a estratégia de estado não será orientada para o ordenamento do território e para a solução de conflitos, mas para a concentração fundiária e a submissão do interesse nacional a interesses corporativos", diz o texto do ISA.
A Funai foi criada em 1967 em substituição ao Serviço de Proteção ao Índio, fundado em 1910.
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