Diversidade e combate à fome e desnutrição são eliminadas institucionalmente por Medida Provisória.
“A institucionalização da participação de representantes de diferentes setores da sociedade civil tem sido importante instrumento de escuta" / Montagem via Jotainfo e Agência Brasil
Além de reformular a composição ministerial do próximo governo, aMedida Provisória (MP) 870 de 2019, divulgada no primeiro dia de gestão de Jair Bolsonaro (PSL), também indicou as prioridades temáticas do mandato que se inicia em 2019.
Dois temas pelos quais o novo ocupante do Planalto demonstrou pouca proximidade, bem como os órgãos participativos a eles ligados, foram alvo da MP que instituiu a primeira reforma administrativa de Bolsonaro: segurança alimentar e a promoção de direitos LGBTI.
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consae), espaço responsável por levar demandas e propostas da sociedade civil ao governo, teve suas competências, determinadas pela Lei 11.346 de 2006, esvaziadas pela MP. Antes vinculado diretamente à Presidência da República, a Medida Provisória não menciona o Conselho como parte integrante da estrutura do Executivo.
“A institucionalização da participação de representantes de diferentes setores da sociedade civil [..] tem sido importante instrumento de escuta da sociedade civil para o aprimoramento de políticas públicas e fortalecimento do Estado brasileiro. O formato de participação social adotado pelo Brasil na área de segurança alimentar e nutricional tem sido exemplo para inúmeros países”, afirmaram em nota os conselheiros representantes da sociedade civil diante da notícia.
A nutricionista e pesquisadora Elisabetta Recine, indicada pela sociedade civil como presidenta do Consea em 2017, avaliou a modificação trazida pela MP como uma “mutilação”.
“Todo o processo de diálogo entre governo e sociedade civil, onde estes setores tinham a oportunidade de colocar suas necessidades e propostas, está comprometido. Coloca o Estado de costas para as necessidades da população, principalmente os grupos em situação de maior vulnerabilidade”, afirmou ao Brasil de Fato.
Recine explica que uma das principais funções dos conselhos, mais do que o de sugerir políticas públicas, é o de debater a articulação entre diversas ações. Como fruto dos debates no interior do Consea, e em outras instâncias, ela cita políticas de fomento à agricultura familiar, como o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar; ações de prevenção à obesidade e a formulação do Guia Alimentar para o Povo Brasileiro.
Já a questão LGBTI vive uma indefinição na reforma administrativa. O Conselho de Combate à Discriminação LGBT, conhecido como Conselho Nacional LGBT foi mantido. A dúvida é que secretaria nacional do Ministério das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos – comandado pela pastora e advogada Damares Alves – assumirá a Diretoria sobre questão LGBTI, antes vinculada à Secretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, agora extinta. As alterações foram criticadas pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT).
“A pauta LGBTI, que antes estava com status de diretoria e submetida à Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, caso possua alguma estrutura de gestão ou mesmo quando for trabalhada pela gestão nacional estará provavelmente sob a tutela das seguintes secretarias: Secretaria Nacional de Proteção Global e Secretaria Nacional da Família, ambas as denominações dizem muito sobre como será conduzida a relação com nossa pauta”, disse a entidade em nota.
O documento continua: “O Conselho Nacional de Combate à Discriminação, que conhecemos como Conselho Nacional LGBT, continua, mas de acordo com seu decreto tem a função de formular e propor diretrizes de ação governamental, a execução depende de uma pasta especifica que ainda não sabemos se mantida como diretoria, como antes estava, e onde será alocada”.
Symmy Larrat, presidenta da ABLGBT, explica que mesmo que a questão LGBTI nunca tenha tido uma secretaria própria, é possível vislumbrar na MP que o tema não terá prioridade.
“Todas as MPs que vieram antes também foram assim [mencionando ministérios e secretarias]. Só o decreto do Ministério dirá onde estará essa Diretoria. A questão é que algumas pautas 'subiram' [ao nível de secretaria nacional], como a da pessoa idosa. Eles demonstraram que algumas pautas serão priorizadas e outras não”, aponta.
Ela continua, dizendo que o governo Bolsonaro sinaliza que tratará a questão LGBT apenas do ponto de vista reativo e repressivo, sem ações afirmativas, se limitando a formalmente coibir a violência contra o segmento, violência “que ele mesmo promoveu durante sua campanha”.
“A Secretaria ao qual estava ligada não existe mais. Sobraram duas: a da Família e a outra de Proteção Global. O que é proteção global? É algo genérico. Ou vai tratar na lógica da família que eles defendem - excluindo várias configurações, entre elas a homoafetiva, ou vai na Proteção Global: se for agredida, protege, mas não promove cidadania”, interpreta.
Julian Rodrigues, militante de direitos humanos e do movimento LGBTI, entende que, independente do formato institucional, o governo Bolsonaro representará um “retrocesso” na área.
“Toda campanha do Bolsonaro, inclusive no discurso de posse, se baseou na ideia de que é preciso combater políticas afirmativas. Desconstituir direitos assegurados pela Constituição e por políticas públicas que existem, a rigor, desde o governo FHC. Promoverá o discurso anti-direitos. Vamos voltar a meados do século 20”, afirma.
Como ato do Executivo, a MP ainda deve ser apreciada pelo Congresso Nacional no prazo de 120 dias.
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Rafael Tatemoto - Brasil de Fato | São Paulo (SP),2 de Janeiro de 2019
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