por Celso Pinto Carias
(Assessor da Ampliada Nacional das CEBs e do Setor CEBs da
CNBB)
As novas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja
no Brasil / 2019-2023 – DGAE – (Documento 109) apresentam uma necessidade
pastoral chamada pelo documento de comunidade eclesial missionária. Após o
primeiro momento de recepção e depois da realização do Sínodo para a Amazônia,
podemos agora nos debruçar sobre esta proposta pastoral com mais tranquilidade.
O documento reflete, nitidamente, um grande esforço para
celebrar a comunhão eclesial. Usa de imagens significativas: comunidade
missionária, Palavra, Pão, Caridade e Ação missionária. E pela primeira vez as
diretrizes enfrentam, de forma mais contundente, o desafio da realidade urbana.
Contudo, como se costuma afirmar na tradição eclesial católica, fica o desafio
da recepção.
Nossa perspectiva, quanto às diretrizes atuais, é a de que
elas possam permitir uma tomada de consciência na direção da complexidade do
trabalho pastoral de evangelização na realidade histórica do século XXI, afim
de não cair em propostas superficiais. Trata-se, como tem afirmado
continuamente o Papa Francisco, de instalar processos. Possivelmente, daqui a
quatro anos, se possa partir para uma realização mais prática de sugestões que
repercutam com mais efetividade no interior da vida eclesial.
Na reflexão aqui apresentada o objetivo é modesto, mas
relevante se queremos, de fato, levar em consideração a complexidade sob a qual
se assenta o trabalho pastoral em nossos dias. Se desejamos ser Igreja em Saída
e se queremos construir a unidade, será preciso colocar em prática a
sinodalidade, isto é, caminhar juntos para que não haja uma padronização dos
caminhos pastorais na direção de projetos uniformizadores. Projetos que podem
não levar em consideração à rica e saudável diversidade espiritual da Igreja
Católica e que podem cair na autorreferencialidadade e no clericalismo que
também tanto o Papa Francisco tem falado.
Embora, por exemplo, o documento 109 traga de volta o
conceito de comunidade com força, fato que na tradição latino americana vinha
desde Medellin, ele precisará ainda ser aprofundado nos próximos anos, pois
houve uma perda do vigor sinodal que esta forma de organização da vida eclesial
representa para enfrentar os desafios do mundo de hoje, sobretudo das culturas
urbanas. Neste sentido, foi uma pena que não se aproveitasse a experiência que
as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) acumularam nas últimas décadas.
Na conjuntura atual estamos vivendo o temor de certos
conceitos sem esgotarmos os seus verdadeiros significados. A acusação de
ideologização é apressada e vigorosa, trazendo uma suspeita injustificada, pois
predomina até mesmo o desconhecimento do conceito. Na onda da pós-verdade, das
fake news, etc., o que antes era visto de forma crítica agora pode ser vista
como demoníaca. Até mesmo o Papa Francisco, no interior da Igreja Católica, tem
sido alvo deste temor. E pior, muitas vezes quem faz os ataques se considera
puro do ponto de vista ideológico. Percebemos, nas entrelinhas do documento,
certo temor em desagradar quem não considera as CEBs uma expressão legitima da
ação evangelizadora da Igreja, embora diversos documentos magisteriais tenham
reconhecido as mesmas. Para citar apenas um documento, entre tantos, bastaria o
número 51 da Redemptoris Missio de São João Paulo II, onde se afirma que elas
são um sinal de vitalidade da Igreja.
Porém, no limite espacial destas linhas, vamos apontar três
conceitos que, a partir do 109, merecem ser aprofundados: missão, culturas
urbanas, e comunidade missionária.
Missão. As DGAE apresentam, evidentemente, fundamentação
teológica para refletir sobre a missão. Destacamos, como exemplo, os números
18, 23, e 36, entre outros. Porém, há uma afirmação no 36 que deveria guiar o
conjunto das reflexões: Toda comunidade cristã é essencialmente missionária,
“Igreja em saída”.
Avaliamos que ainda não se retirou suficientemente os
elementos fundamentais de uma teologia da missão a partir do Concílio Vaticano
II. Predomina-se uma perspectiva quantitativa, isto é, aumento de fiéis, ou
mesmo de certa “burocracia” sacramental. O documento não acentua tal perspectiva,
mas quando não leva em consideração tal realidade corre o risco de ser
interpretado nesta direção. Evidentemente também que não se deve considerar o
expansão numérica de fiéis como algo ruim, mas este não pode ser o assento
principal.
Para alargar as possibilidades de reflexão, trazemos aqui
alguns pontos que o saudoso teólogo José Comblin fez ainda pelos idos de 1973,
em um pequeno livro intitulado justamente de Teologia da Missão. É simplesmente
extraordinária a atualidade desta obra. Ela repercute a tentativa de ler os
sinais dos tempos como indicou São João XXIII na abertura do Concílio Vaticano
II. Temos tido muita dificuldade para ler estes sinais e renovar a Igreja na
linha de responder os desafios oriundos da mudança de época pela qual estamos passando.
Geralmente respondemos perguntas novas com respostas velhas. Às vezes as
respostas até parecem boa, mas são superficiais e não vão até as raízes da
realidade cultural (EN 20).
Vamos recordar alguns assentos importantes de Comblin. É
preciso recordar sempre que a igreja vem depois da missão e não antes. A missão
é de Jesus Cristo. Ninguém deveria se colocar no processo missionário sem um
profundo enraizamento no Projeto do Nazareno. Um ponto de partida fundamental é
a ação do Verbo na história, isto é, Deus que vem ao encontro das pessoas.
Portanto, missão é antes de mais ir ao encontro das pessoas na situação em que
elas se encontram. Diz Comblin: Jesus Cristo veio para dirigir a palavra a
Pedro, João, André e a todos os Pedros, Joões, Antônios ou Severinos da
História. Hoje certamente o nosso teólogo acrescentaria nomes femininos também:
Antônias e Severinas. Enfim, poderíamos resumir dizendo que o papel da Igreja
não é levar os seres humanos para Deus, mas trazer Deus para os seres humanos.
A missão é força e fraqueza. Quando caímos na tentação do
poder dominador com o mais belo dos objetivos que é levar a Boa Nova de Jesus,
corrompemos a estrutura fundamental do agir de Deus. Quanto sofrimento, por
exemplo, tem causado a questão da pedofilia? Assim, mesmo que demore, um dia os
alicerces caem, pois será uma casa construída sobre areia. E a missão é antes
de qualquer coisa uma ação testemunhal. São Paulo VI repete por seis vezes a
necessidade do testemunho na Evangelli Nuntiandi (ns. 6, 15, 21, 26, 41 e 76).
No 41 o Papa reconhece a repetição, mas insisti: E antes de mais nada – sem
querermos repetir tudo aquilo já recordado anteriormente – é conveniente
realçar isto: para a Igreja, o testemunho de uma vida autenticamente cristã, …
Por fim, a missão exige que não levemos nem ouro, nem prata, nem alforge, nem
duas túnicas, nem sandálias e nem cajado (Mt 10,10). Não se pode pensar a
missão em termos de poder, mas somente em termos de serviço.
Ao longo da recepção das DGAE deveremos aprofundar o caráter
intrinsecamente missionário da Igreja em todas as dimensões nas quais a missão
se realiza. Precisaremos de um processo pedagógico que leve em consideração os
mecanismos pelos quais a sociedade funciona. E aqui a questão das culturas
urbanas merece grande atenção. Esta é uma questão sem volta. Desejos de retorno
ao passado não vão conduzir a Igreja em uma direção missionária adequada.
Culturas urbanas. A questão urbana vem sendo apresentada
como um desafio há bastante tempo. Ao final do Concílio Vaticano II já começou
a aparecer algumas reflexões de bispos, teólogos e sociólogos. Podemos citar um
documento elaborado em 1980, mas preparado no final dos anos 70, produzido
pelos bispos do Regional Sul 1 da CNBB: Pastoral de Comunidades e Ministérios,
no qual já se fala desta realidade. Por sinal, também consideramos o documento
de uma enorme atualidade. Parece que retrocedemos desde então.
Contudo, de forma mais orgânica, é a primeira vez que as
Diretrizes enfrentam a questão. Sem dúvida há uma complexidade na temática. No
Objetivo Geral se fala de evangelizar no Brasil cada vez mais urbano. Na
verdade, a questão urbana não pode mais ser reduzida a dimensão territorial.
Trata-se de uma mentalidade com consequências em diversos níveis, inclusive o
territorial naturalmente. Hoje não podemos mais separar o mundo rural do
urbano.
As Diretrizes avançam quando reconhecem e trabalham a
perspectiva urbana em relação ao trabalho pastoral. No entanto, como já dito,
será necessário um olhar mais penetrante para dentro da realidade urbana.
Apenas para exemplificar, como podemos fazer chegar a Palavra, os valores, os
princípios fundamentais da vida cristã, no contexto de grandes metrópoles onde
o direito a cidade é negado de forma ostensiva e desumana? Falemos somente do direito
ao descanso semanal, que tradicionalmente é o Domingo. Precisaríamos de muitas
páginas se quiséssemos enfrentar honestamente esta questão.
A questão do direito à cidade é fundamental no processo de
ocupação urbana. Para nós é uma diretriz cujo exercício está associado ao
conjunto dos Direitos Humanos. Contudo, as cidades, no atual estágio das
relações capitalistas, tornaram-se um grande balcão de negócios. O caso típico
de Barcelona na Espanha, que é citada predominantemente como um bom exemplo,
não se configura exatamente como os arautos de tal posição apregoam. Os mais
pobres estão sendo excluídos do direito fundamental de usufruir dos avanços
construídos em grandes eventos, e são tratados como cidadãos de segunda
categoria. No Brasil este fator é mais grave. E a causa não pode ser reduzida
apenas ao mercado imobiliário, mas sobretudo ao modo como se pensa a cidade.
Como diz Raquel Rolnik, urbanista que muito tem nos ajudado nesta reflexão, “a
cidade inclui sem incluir”. Por quê? Na verdade, em nome de uma modernização
dos grandes centros urbanos, empurram-se os mais pobres cada vez mais longe de
seus postos de trabalho e de atendimentos humanitários básicos. Até mesmo a
escola pode não estar perto de casa. Os mais pobres não têm acesso aos
equipamentos sociais e culturais produzidos nessas reformas urbanas. Portanto,
é uma questão eminentemente política. Imaginar que se possa evangelizar
abstraindo a realidade na qual o ser humano está envolvido seria como tratar
depressão como uma mera situação de força de vontade.
Ora, assim sendo, uma pastoral centralizada em matrizes
paroquiais que estão longe da vida cotidiana do povo abrem espaço para as
pessoas estarem em comunidades religiosas que se aproximem de sua vida seja
qual for a denominação, ou até mesmo de tradições não filiadas diretamente ao
cristianismo. Também é uma realidade que pode ser usada, justamente por não se
perceber a dimensão política da mesma, até mesmo por grupos criminosos.
Favelas, morros, periferias das periferias, cortiços, ou mesmo condomínios de
classe média, muitas vezes não possuem presença significativa de agentes de
pastoral católicos. E agentes que possam ter um mínimo de condição humana para
tratar com gente.
As DGAE 2019-2023 inclusive não usam com o devido rigor o
conceito de individualidade. O aprofundamento da dimensão individual na
modernidade, do ponto de vista antropológico, não foi algo ruim, muito pelo
contrário. Foi e é uma critica de coletivismos que passavam por cima da
subjetividade humana. Agora, o individualismo sim é um problema. Porém, o
documento não faz uma boa distinção entre estes dois conceitos (ex. 49 e 53).
Portanto, temos muito ainda a refletir se queremos alcançar
a realidade social onde de fato as pessoas estão. Muitas vezes na Igreja
Católica começamos a enfrentar os problemas, mas corremos o risco de não dar
continuidade. Estas diretrizes, por exemplo, precisariam estar em profunda
sintonia com o Documento 100: Comunidade de Comunidades: uma nova paróquia.
Para enfrentar o desafio das culturas urbanas a vida
comunitária é fundamental. Diversos setores da sociedade têm percebido, até
mesmo pessoas sem adesão religiosa estão percebendo isso. Um grande exemplo são
as chamadas ecovilas, lugares de consciência ambiental e comunitária. E aqui a
experiência cristã tem uma longa tradição que não pode ser engolida, aí sim,
pelos individualismos e subjetivimos de uma lógica da concorrência religiosa
onde os indivíduos, homens e mulheres, crianças e jovens, podem ser reduzidos a
consumidores e clientes, ou mesmo reduzidos a escravos do desempenho, sem tempo
para nada, e que pode levar, como diz o filosofo Byung-Chul Han, no livro
Sociedade do Cansaço, a um infarto da alma.
Comunidades missionárias. Como já foi indicado, o documento
afirma que toda comunidade cristã é essencialmente missionária. Assim sendo, o
que seria propriamente uma comunidade missionária? Aqui também está um conceito
que vai merecer maiores esclarecimentos nos próximos anos.
Entendemos perfeitamente que o desafio da realidade urbana
nos convoca para uma ação missionária para a qual não temos todas as respostas.
A missão se torna um imperativo fundamental se pretendemos, como fez o
cristianismo em outros tempos, inculturar o Evangelho neste novo cenário
civilizatório que se apresenta. Sem dúvida, será preciso chamar a atenção para
um estado permanente de missão. Neste sentido, compreende-se que a comunidade
eclesial missionária, sustentada pelos pilares da Palavra, do Pão, da Caridade
e, especificamente, da Ação Missionária, seja um norteador pastoral que possa
nutrir planos de ação que respondam as necessidades do mundo de hoje.
Nos capítulos 3 e 4 da DGAE se procura dar indicativos para
que haja uma ação eclesial que concretize o objetivo geral da mesma. Mas será
necessário especificar melhor o modo operacional de um fazer pastoral que
reconheça a diversidade das espiritualidades e das organizações eclesiásticas.
Não se pode reduzir esta ação a um único modelo, como por exemplo, o
pentecostal. Seria traição à tradição católica.
Precisaremos estar abertos a um diálogo que contemple a
larga experiência latino-americana, entre as quais se encontram as Comunidades
Eclesiais de Base. Compreendemos que as diretrizes não fazem oposição entre
comunidades missionárias e comunidades de base. Mas quando não se leva em
consideração a diversidade pastoral que enriqueceu a Igreja, inclusive
missionariamente falando, com multiplicação de comunidades em vários contextos,
e não somente rural, mas também em periferias de cidade, corre-se o risco de
cair naquilo que Papa Francisco tanto tem chamado de autorreferencialidade.
O Documento 100 já preconiza a necessidade das paróquias
atuarem como rede. Preconiza a descentralização das matrizes para valorizar as
comunidades, sejam territoriais, sejam ambientais. No número 319 faz uma série
de sugestões que em muitos lugares ainda não se percebeu que aí está um
caminho.
Ora, lembrando de novo o limite espacial deste texto, não é
possível falar de comunidades eclesiais missionárias, se não for resgatado uma
forma de viver a fé cristã que possibilite experimentar a vida no contexto onde
ela se encontra e aí verificar que “Deus habita a cidade”. Mergulhados/as na
dinâmica da urbanidade, seja no interior ou na metrópole, em uma luta pela
sobrevivência que pode nos adoecer a ponto de acreditarmos, contrariamente aos
princípios fundamentais do Caminho de Jesus Cristo, que a violência pode ser
uma saída, que ódio é uma experiência legitima, que existem pessoas que podem
ser humilhadas e perseguidas por viverem de modo diferente de nós, então
estaremos muito longe do que São Paulo VI nos disse sobre evangelização e que
agora o Papa Francisco nos recordou, de forma brilhante, na Evangelli Gaudium.
E aqui uma Igreja toda ela ministerial se torna, como nos
primeiros anos do Caminho, uma característica tremendamente atual para
responder aos desafios do mundo de hoje. E aqui as CEBs tem o seu lugar. Que
possamos responder aos desafios com o critério paulino: Tende em vós o mesmo
sentimento de Cristo Jesus (Fl 2,5).
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