Fonte: IHU
A antropóloga Walquiria
Domingues Leão Rêgo testemunhou,
nos últimos cinco anos, a uma mudança de comportamento nas áreas mais pobres e,
talvez, machistas do Brasil. O dinheiro do Bolsa Família trouxe poder de
escolha às mulheres.
A reportagem é de Mariana
Sanches e
publicada pela Marie
Claire, 03-12-2012 .Foto: Editora Globo.
Uma revolução está em curso. Silencioso e lento -
52 anos depois da criação da pílula anticoncepcional - o feminismo começa a
tomar forma nos rincões mais pobres e, possivelmente, mais machistas do Brasil.
O interior do Piauí, o litoral de Alagoas, o Vale do Jequitinhonha, em Minas, o
interior do Maranhão e a periferia de São Luís são o cenário desse movimento.
Quem o descreve é a antropóloga Walquiria
Domingues Leão Rêgo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nos últimos
cinco anos, Walquiriaacompanhou, ano a
ano, as mudanças na vida de mais de cem mulheres, todas beneficiárias do Bolsa
Família. Foi às áreas mais isoladas, contando apenas com os próprios recursos,
para fazer um exercício raro: ouvir da boca dessas mulheres como a vida delas
havia (ou não) mudado depois da criação do programa. Adiantamos parte das
conclusões de Walquiria que será publicada em livro.
Mulheres sem direitos
As áreas visitadas por Walquiria são aquelas onde,
às vezes, as famílias não conseguem obter renda alguma ao longo de um mês
inteiro. Acabam por viver de trocas. O mercado de trabalho é exíguo para os
homens. O que esperar, então, de vagas para mulheres. Há pouco acesso à
educação e saúde. Filhos costumam ser muitos. A estrutura é patriarcal e
religiosa. A mulher está sempre sob o jugo do pai, do marido ou do
padre/pastor. “Muitas dessas mulheres passaram pela experiência humilhante de
ser obrigada a, literalmente, ‘caçar a comida’”, afirma Walquiria. “É gente que vive
aos beliscões, sem direito a ter direitos”. Walquiria queria saber se,
para essas pessoas, o Bolsa Família havia se transformado numa bengala
assistencialista ou resgatara algum senso de cidadania.
Batom e Danone
“Há mais liberdade no dinheiro”, resume Edineide, uma das
entrevistadas de Walquiria, residente em
Pasmadinho, no Vale do Jequitinhonha. As mulheres são mais de 90% das titulares
do Bolsa Família: são elas que, mês a mês, sacam o dinheiro na boca do caixa. Edineide traduz o
significado dessa opção do governo por dar o cartão do benefício para a mulher:
“Quando o marido vai comprar, ele compra o que ele quer. E se eu for, eu compro o que
eu quero.” Elas passaram a comprar Danone para as crianças. E, a ter direito à
vaidade. Walquiria testemunhou
mulheres comprarem batons para si mesmas pela primeira vez na vida. Finalmente,
tiveram o poder de escolha. E isso muda muitas coisas.
O dinheiro leva ao
divórcio e à diminuição do número de filhos?
“Boa parte delas têm uma renda fixa pela primeira
vez. E várias passaram a ter mais dinheiro do que os maridos”, dizWalquiria. Mais do que
escolher entre comprar macarrão ou arroz, o Bolsa-Família permitiu a elas
decidir também se querem ou não continuar com o marido. Nessas regiões, ainda é
raro que a mulher tome a iniciativa da separação. Mas isso começa a acontecer,
como relata Walquiria: “Na primeira
entrevista feita, em abril de 2006, com Quitéria
Ferreira da Silva, de 34 anos, casada e mãe de três filhos
pequenos,em Inhapi, perguntei-lhe sobre as questões dos maus tratos. Ela chorou
e me disse que não queria falar sobre isso. No ano seguinte, quando retornei,
encontrei-a separada do marido, ostentando uma aparência muito mais tranquila.”
A despeito do assédio dos maridos, nenhuma das
mulheres ouvidas por Walquiria admitiu ceder aos
apelos deles e dar na mão dos homens o dinheiro do Bolsa. “Este dinheiro é meu,
o Lula deu pra mim (sic) cuidar dos meus filhos e netos. Pra que eu vou dar pra
marido agora? Dou não!”, disse Maria
das Mercês Pinheiro Dias, de 60 anos, mãe de seis filhos, moradora de São
Luís, em entrevista em 2009.
Walquiria relata ainda que
aumentou o número de mulheres que procuram por métodos anticoncepcionais. Elas
passaram a se sentir mais à vontade para tomar decisões sobre o próprio corpo,
sobre a sua vida. É claro que as mudanças ainda são tênues. Ninguém que visite
essas áreas vai encontrar mulheres queimando sutiãs e citando Betty
Friedan. Mas elas estão começando a romper com uma dinâmica
perversa, descrita pela primeira vez em 1911, pelo filósofo inglês John
Stuart Mill. De acordo com Mill, as mulheres são
treinadas desde crianças não apenas para servir aos homens, maridos e pais, mas
para desejar servi-los.
Aparentemente, as mulheres mais pobres do Brasil
estão descobrindo que podem desejar mais do que isso.