Rafael Braga, pobre, negro e com pouca educação é apenas o modelo ideal daqueles que são jogados na cadeia sem direito a um julgamento justo e sem ter seus direitos assegurados.
Em junho de 2013, enquanto o Brasil era sacudido pela maior onda de protestos populares até então exigindo passe livre e mais direitos sociais, Rafael Braga Vieira, à época morador de rua e catador de latas e outros materiais, foi preso no Rio de Janeiro por carregar duas garrafas de produtos de limpeza.
Mesmo com especialistas afirmando que os materiais apreendidos com ele (desinfetante Pinho Sol e água sanitária) não eram suficientes para a preparação de um coquetel molotov, muito menos feito em garrafas plásticas, ele foi condenado. Para piorar, Rafael nem sequer participava ou mesmo sabia do que se tratava a manifestação que acontecia perto do local em que ele foi preso.
Rafael foi condenado a cinco anos de prisão por carregar garrafas de material inflamável que poderia ser usado para cometer atos de vandalismo, ainda que a acusação não fizesse qualquer sentido não fosse o direcionamento tradicional do Judiciário brasileiro: sempre contrário à população negra e pobre.
O caso de Rafael Braga é semelhante ao de milhares de outros jovens negros e pobres, abandonados pela sociedade e depois varridos pra debaixo do tapete como se fossem lixo, jogados em presídios, mortos pela polícia ou submetidos a constantes humilhações até serem quebrados completamente. Alguns, como Rafael acabam presos, perseguidos, outros como Amarildo acabam mortos e seus corpos nunca mais são encontrados.
Os corpos somem, mas as balas nunca são “perdidas”, elas sempre encontram seus alvos. O Brasil vive uma constante guerra da elite – que tem a Polícia Militar para executar seus crimes – contra o resto. Contra o subproduto da exploração, do racismo, da violência.
Rafael foi condenado em 3 de dezembro de 2013, foi o único a ser condenado pelos protestos de 2013 de que ele, ironicamente, não participou. Não que outros não tivessem sido perseguidos, presos ao longo do processo, é bom lembrar. Durante os protestos mesmo quem carregasse garrafas de vinagre para amenizar os efeitos das bombas e do gás jogado pela polícia era detido, tratado como criminoso.
Mas ninguém foi condenado por carregar vinagre; Rafael foi condenado pro carregar desinfetantes – ele era pobre, descartável e alguém precisava servir de exemplo. No fim, Rafael Braga era apenas mais um pobre, negro e favelado a seguir o caminho “natural” imposto por um sistema judicial racista.
Em novembro de 2014, enquanto trabalhava fora da cadeia durante o dia – como faxineiro no escritório de advocacia que o representava, o Instituto de Defensores de Direitos Humanos – e retornava de noite para dormir no presídio, Rafael tirou uma foto em frente a uma pixação onde se lia “Você só olha da esquerda para a direita, o Estado te esmaga de cima p/baixo”. Foi o suficiente para que ele fosse jogado na solitária por dez dias. Era mais uma tentativa de quebrá-lo, de esmagá-lo.
Após permanecer preso por dois anos, Rafael foi solto em dezembro de 2015 e lhe permitiram servir o resto de sua sentença em liberdade contanto que usasse uma tornozeleira eletrônica. Sua liberdade, no entanto, durou pouco.
Ao sair da casa de sua mãe para comprar pão na favela da Vila Cruzeiro, Rafael foi abordado por policiais da UPP local que disseram ter encontrado 0,6 gramas de maconha e 9,3 gramas de cocaína com ele, além de um rojão, que é usado para alertar traficantes da chegada de policiais na favela – acusações que prontamente negou, dizendo estar sendo perseguido pela polícia.
Rafael diz ter sido incriminado, uma declaração corroborada pelo fato das 5 testemunhas de acusação, todos policiais, terem dado testemunhos conflitantes durante seu julgamento. Para seu advogado, Rafael foi vítima de um flagrante forjado.
Durante o julgamento, além das únicas provas da acusação se resumirem à palavra dos policiais que prenderam Rafael, sua defesa lhe foi negada: um vizinho que testemunharia a seu favor não foi ouvido por ter uma “relação familiar” com ele, assim como foi negado o pedido da defesa para acessar as câmeras dos carros dos policiais ou os dados da tornozeleira.
Rafael foi condenado a 11 anos de cadeia em abril de 2017 por tráfico de drogas e associação para o tráfico em um julgamento no mínimo suspeito – mas extremamente comum quando se trata de negros e pobres, as reais vítimas do sistema.
Não surpreende que o Brasil seja o quarto país no número de presos e os dados mais recentes apontam que os negros são a ampla maioria dos condenados (e muitos presos mesmo antes de julgamento e muitas vezes esquecidos nas cadeias), enquanto 95% dos presos são pobres e dois terços sequer completaram o primário.
Rafael Braga, pobre, negro e com pouca educação é apenas o modelo ideal daqueles que são jogados na cadeia sem direito a um julgamento justo e sem ter seus direitos assegurados.
Seus advogados, no entanto, decidiram apelar, pedindo um habeas corpus para Rafael. O sistema, porém, parece não falhar. Criado e mantido para controlar as massas, seguiu o roteiro tradicional e dois dos três desembargadores da 1ª Câmara Criminal do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio) decidiram manter sua prisão, enquanto o terceiro pediu vista.
Hoje, 8 de agosto, os desembargadores tomarão a decisão final sobre o habeas corpus; se Rafael permanecerá preso ou poderá esperar o julgamento de seu recurso em liberdade. Suas chances são pequenas, mas milhares de ativistas no Brasil e fora do País pressionam nas redes sociais e nas ruas, em protestos por várias cidades, pela sua libertação, para que a perseguição contra ele tenha fim.
Nas redes sociais a hashtag #LibertemRafaelBraga tem sido amplamente usada contra as arbitrariedades sofridas por ele. Rafael é um exemplo. É um exemplo do esmagamento que sofrem os mais pobres, da negação de direitos aos mais vulneráveis, da ausência de direitos humanos e a certeza de que o sistema está podre – na realidade, nasceu dessa forma, foi pensado desta forma.
Como escreveu o professor Pablo Ortellado:
“De símbolo da repressão política a protestos, Rafael está se tornando também símbolo do racismo institucional da polícia.”
Quem não tem dinheiro não tem nada no Brasil. Pobre, preto e favelado no País tem mais é que morrer, é o que pensam muitos e o que na prática fazem o Judiciário, a PM e o poder público.
Não há nada mais absurdo que a prisão de Rafael.
Não há causa mais urgente, mais nobre e mais necessária hoje.
Rafael não é apenas um, mas é uma multidão de jovens negros e pobres encarcerados sem cometer crimes, perseguidos e criminalizados por apenas existir.
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Fonte: Texto de Raphael Tsavkko Garcia , Jornalista, é ativista e doutorando em Direitos Humanos. Publicado no site do Huffpost no Brasil, 08/08/2017.
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