“para não nos perdermos, precisamos respirar a verdade das
histórias boas: histórias que edifiquem, e não as que destroem.”
Foi divulgada, nesta sexta-feira (24/01), a mensagem do Papa
Francisco para o 54° Dia Mundial das Comunicações Sociais. A seguir, o texto na
íntegra.
Mensagem do Papa Francisco para o LIV Dia Mundial das
Comunicações Sociais
« “Para que possas
contar e fixar na memória” (Ex 10, 2).
A vida faz-se
história »
Desejo dedicar a Mensagem deste ano ao tema da narração,
pois, para não nos perdermos, penso que precisamos de respirar a verdade das
histórias boas: histórias que edifiquem, e não as que destruam; histórias que
ajudem a reencontrar as raízes e a força para prosseguirmos juntos. Na confusão
das vozes e mensagens que nos rodeiam, temos necessidade duma narração humana,
que nos fale de nós mesmos e da beleza que nos habita; uma narração que saiba
olhar o mundo e os acontecimentos com ternura, conte a nossa participação num
tecido vivo, revele o entrançado dos fios pelos quais estamos ligados uns aos
outros.
1. Tecer histórias
O homem é um ente narrador. Desde pequenos, temos fome de
histórias, como a temos de alimento. Sejam elas em forma de fábula, romance,
filme, canção, ou simples notícia, influenciam a nossa vida, mesmo sem termos
consciência disso. Muitas vezes, decidimos aquilo que é justo ou errado com
base nos personagens e histórias assimiladas. As narrativas marcam-nos, plasmam
as nossas convicções e comportamentos, podem ajudar-nos a compreender e dizer
quem somos.
O homem não só é o único ser que precisa de vestuário para
cobrir a própria vulnerabilidade (cf. Gn 3, 21), mas também o único que tem
necessidade de narrar-se a si mesmo, «revestir-se» de histórias para guardar a
própria vida. Não tecemos apenas roupa, mas também histórias: de facto,
servimo-nos da capacidade humana de «tecer» quer para os tecidos, quer para os
textos. As histórias de todos os tempos têm um «tear» comum: a estrutura prevê
«heróis» – mesmo do dia-a-dia – que, para encalçar um sonho, enfrentam
situações difíceis, combatem o mal movidos por uma força que os torna
corajosos, a força do amor. Mergulhando dentro das histórias, podemos voltar a
encontrar razões heroicas para enfrentar os desafios da vida.
O homem é um ente narrador, porque em devir: descobre-se e
enriquece-se com as tramas dos seus dias. Mas, desde o início, a nossa narração
está ameaçada: na história, serpeja o mal.
2. Nem todas as
histórias são boas
«Se comeres, tornar-te-ás como Deus» (cf. Gn 3, 4): esta
tentação da serpente introduz, na trama da história, um nó difícil de desfazer.
«Se possuíres…, tornar-te-ás…, conseguirás…»: sussurra ainda hoje a quem se fia
do chamado «mentiroso» (cf. Jo 9, 44), para atingir os seus fins. Quantas
histórias nos narcotizam, convencendo-nos de que, para ser felizes, precisamos
continuamente de ter, possuir, consumir. Quase não nos damos conta de quão
ávidos nos tornamos de bisbilhotices e intrigas, de quanta violência e
falsidade consumimos. Frequentemente, nos «teares» da comunicação, em vez de
narrações construtivas, que solidificam os laços sociais e o tecido cultural,
produzem-se histórias devastadoras e provocatórias, que corroem e rompem os
fios frágeis da convivência. Quando se misturam informações não verificadas,
repetem discursos banais e falsamente persuasivos, percutem com proclamações de
ódio, está-se, não a tecer a história humana, mas a despojar o homem da sua
dignidade.
Mas, enquanto as histórias utilizadas para proveito próprio
ou ao serviço do poder têm vida curta, uma história boa é capaz de transpor os
confins do espaço e do tempo: à distância de séculos, permanece atual, porque
nutre a vida.
Numa época em que se revela cada vez mais sofisticada a
falsificação, atingindo níveis exponenciais (o deepfake), precisamos de
sapiência para patrocinar e criar narrações belas, verdadeiras e boas.
Necessitamos de coragem para rejeitar as falsas e depravadas. Ocorre paciência
e discernimento para descobrirmos histórias que nos ajudem a não perder o fio,
no meio das inúmeras lacerações de hoje; histórias que tragam à luz a verdade
daquilo que somos, mesmo na heroicidade oculta do dia a dia.
3. A História das
histórias
A Sagrada Escritura é uma História de histórias. Quantas
vicissitudes, povos, pessoas nos apresenta! Desde o início, mostra-nos um Deus
que é simultaneamente criador e narrador: de facto, pronuncia a sua Palavra e
as coisas existem (cf. Gn 1). Deus, através deste seu narrar, chama à vida as
coisas e, no apogeu, cria o homem e a mulher como seus livres interlocutores,
geradores de história juntamente com Ele. Temos um Salmo onde a criatura se
conta ao Criador: «Tu modelaste as entranhas do meu ser e teceste-me no seio de
minha mãe. Dou-Te graças por me teres feito uma maravilha estupenda (…). Quando
os meus ossos estavam a ser formados, e eu, em segredo, me desenvolvia,
recamado nas profundezas da terra, nada disso Te era oculto» (Sal 139/138,
13-15). Não nascemos perfeitos, mas necessitamos de ser constantemente
«tecidos» e «recamados». A vida foi-nos dada como convite a continuar a tecer a
«maravilha estupenda» que somos.
Neste sentido, a Bíblia é a grande história de amor entre
Deus e a humanidade. No centro, está Jesus: a sua história leva à perfeição o
amor de Deus pelo homem e, ao mesmo tempo, a história de amor do homem por
Deus. Assim, o homem será chamado, de geração em geração, a contar e fixar na
memória os episódios mais significativos desta História de histórias: os
episódios capazes de comunicar o sentido daquilo que aconteceu.
O título desta Mensagem é tirado do livro do Êxodo,
narrativa bíblica fundamental que nos faz ver Deus a intervir na história do
seu povo. Com efeito, quando os filhos de Israel, escravizados, clamam por Ele,
Deus ouve e recorda-Se: «Deus recordou-Se da sua aliança com Abraão, Isaac e
Jacob. Deus viu os filhos de Israel e reconheceu-os» (Ex 2, 24-25). Da memória
de Deus brota a libertação da opressão, que se verifica através de sinais e
prodígios. E aqui o Senhor dá a Moisés o sentido de todos estes sinais: «Para
que possas contar e fixar na memória do teu filho e do filho do teu filho (…)
os meus sinais que Eu realizei no meio deles. E vós conhecereis que Eu sou o
Senhor» (Ex 10, 2). A experiência do Êxodo ensina-nos que o conhecimento de
Deus se transmite sobretudo contando, de geração em geração, como Ele continua
a tornar-Se presente. O Deus da vida comunica-Se, narrando a vida.
O próprio Jesus falava de Deus, não com discursos abstratos,
mas com as parábolas, breves narrativas tiradas da vida de todos os dias. Aqui
a vida faz-se história e depois, para o ouvinte, a história faz-se vida: tal
narração entra na vida de quem a escuta e transforma-a.
Também os Evangelhos – não por acaso – são narrações.
Enquanto nos informam acerca de Jesus, «performam-nos»[1] à imagem de Jesus,
configuram-nos a Ele: o Evangelho pede ao leitor que participe da mesma fé para
partilhar da mesma vida. O Evangelho de João diz-nos que o Narrador por
excelência – o Verbo, a Palavra – fez-Se narração: «O Filho unigénito, que é
Deus e está no seio do Pai, foi Ele quem O contou» (1, 18). Usei o termo
«contou», porque o original exeghésato tanto se pode traduzir «revelou» como
«contou». Deus teceu-Se pessoalmente com a nossa humanidade, dando-nos assim
uma nova maneira de tecer as nossas histórias.
4. Uma história que
se renova
A história de Cristo não é um património do passado; é a
nossa história, sempre atual. Mostra-nos que Deus tomou a peito o homem, a
nossa carne, a nossa história, a ponto de Se fazer homem, carne e história. E
diz-nos também que não existem histórias humanas insignificantes ou pequenas.
Depois que Deus Se fez história, toda a história humana é, de certo modo,
história divina. Na história de cada homem, o Pai revê a história do seu Filho
descido à terra. Cada história humana tem uma dignidade incancelável. Por isso,
a humanidade merece narrações que estejam à sua altura, àquela altura
vertiginosa e fascinante a que Jesus a elevou.
Vós «sois uma carta de Cristo – escrevia São Paulo aos
Coríntios –, confiada ao nosso ministério, escrita, não com tinta, mas com o
Espírito do Deus vivo; não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne que são
os vossos corações» (2 Cor 3, 3). O Espírito Santo, o amor de Deus, escreve em
nós. E, escrevendo dentro de nós, fixa em nós o bem, recorda-no-lo. De facto,
re-cordar significa levar ao coração, «escrever» no coração. Por obra do
Espírito Santo, cada história, mesmo a mais esquecida, mesmo aquela que parece
escrita em linhas mais tortas, pode tornar-se inspirada, pode renascer como
obra-prima, tornando-se um apêndice de Evangelho. Assim as Confissões de
Agostinho, o Relato do Peregrino de Inácio, a História de uma alma de Teresinha
do Menino Jesus, os Noivos prometidos (Promessi sposi) de Alexandre Manzoni, os
Irmãos Karamazov de Fiódor Dostoevskij… e inumeráveis outras histórias, que têm
representado admiravelmente o encontro entre a liberdade de Deus e a do homem.
Cada um de nós conhece várias histórias que perfumam de Evangelho: testemunham
o Amor que transforma a vida. Estas histórias pedem para ser partilhadas,
contadas, feitas viver em todos os tempos, com todas as linguagens, por todos
os meios.
5. Uma história que
nos renova
Em cada grande história, entra em jogo a nossa história. Ao
mesmo tempo que lemos a Escritura, as histórias dos Santos e outros textos que
souberam ler a alma do homem e trazer à luz a sua beleza, o Espírito Santo fica
livre para escrever no nosso coração, renovando em nós a memória daquilo que
somos aos olhos de Deus. Quando fazemos memória do amor que nos criou e salvou,
quando metemos amor nas nossas histórias diárias, quando tecemos de
misericórdia as tramas dos nossos dias, nesse momento estamos a mudar de
página. Já não ficamos atados a lamentos e tristezas, ligados a uma memória
doente que nos aprisiona o coração, mas, abrindo-nos aos outros, abrimo-nos à
própria visão do Narrador. Nunca é inútil narrar a Deus a nossa história: ainda
que permaneça inalterada a crónica dos factos, mudam o sentido e a perspetiva.
Narrarmo-nos ao Senhor é entrar no seu olhar de amor compassivo por nós e pelos
outros. A Ele podemos narrar as histórias que vivemos, levar as pessoas,
confiar situações. Com Ele, podemos recompor o tecido da vida, cozendo as
ruturas e os rasgões. Quanto nós, todos, precisamos disso!
Com o olhar do Narrador – o único que tem o ponto de vista
final –, aproximamo-nos depois dos protagonistas, dos nossos irmãos e irmãs,
atores juntamente connosco da história de hoje. Sim, porque ninguém é mero
figurante no palco do mundo; a história de cada um está aberta a possibilidades
de mudança. Mesmo quando narramos o mal, podemos aprender a deixar o espaço à
redenção; podemos reconhecer, no meio do mal, também o dinamismo do bem e
dar-lhe espaço.
Por isso, não se trata de seguir as lógicas do «mentiroso»,
nem de fazer ou fazer-se publicidade, mas de fazer memória daquilo que somos
aos olhos de Deus, testemunhar aquilo que o Espírito escreve nos corações,
revelar a cada um que a sua história contém maravilhas estupendas. Para o
conseguirmos fazer, confiemo-nos a uma Mulher que teceu a humanidade de Deus no
seio e – diz o Evangelho – teceu conjuntamente tudo o que Lhe acontecia. De
facto, a Virgem Maria tudo guardou, meditando-o no seu coração (cf. Lc 2, 19).
Peçamos-Lhe ajuda a Ela, que soube desatar os nós da vida com a força suave do
amor:
Ó Maria, mulher e mãe, Vós tecestes no seio a Palavra
divina, Vós narrastes com a vossa vida as magníficas obras de Deus. Ouvi as
nossas histórias, guardai-as no vosso coração e fazei vossas também as
histórias que ninguém quer escutar. Ensinai-nos a reconhecer o fio bom que guia
a história. Olhai o cúmulo de nós em que se emaranhou a nossa vida, paralisando
a nossa memória. Pelas vossas mãos delicadas, todos os nós podem ser desatados.
Mulher do Espírito, Mãe da confiança, inspirai-nos também a nós. Ajudai-nos a
construir histórias de paz, histórias de futuro. E indicai-nos o caminho para
as percorrermos juntos.
Roma, em São João de Latrão, na Memória de São Francisco de
Sales, 24 de janeiro de 2020.
[Franciscus]
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