Artigo de Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
A lei da ficha limpa fazendo aniversário em boa hora
Dia 04 deste junho, a lei complementar à Constituição Federal nº 135, mais conhecida como lei da ficha limpa, completa cinco anos. Quando a nação inteira sofre os efeitos de uma escandalosa sucessão de notícias relacionadas com todo o tipo de prática criminosa praticada por agentes políticos, em co-autoria, ou não, com os seus partidos, os méritos dessa lei merecem cuidadoso exame crítico.
A lei da ficha limpa fazendo aniversário em boa hora
Dia 04 deste junho, a lei complementar à Constituição Federal nº 135, mais conhecida como lei da ficha limpa, completa cinco anos. Quando a nação inteira sofre os efeitos de uma escandalosa sucessão de notícias relacionadas com todo o tipo de prática criminosa praticada por agentes políticos, em co-autoria, ou não, com os seus partidos, os méritos dessa lei merecem cuidadoso exame crítico.
Desde a sua motivação e origem, sua aplicação, a oportunidade por ela aberta para uma tão sonhada quanto urgente reforma política, favorece a formação de uma consciência popular mobilizada em defesa de uma desejada limpeza ética dos mandatos políticos outorgados pelo povo.
Já sobre sua motivação e origem se encontra uma das verdades mais constrangedoras do poder político institucionalizado publicamente e mais demonstrativas do erro comum das elites em atribuir ao povo incapacidade cívica para agir em defesa dos seus direitos, sua dignidade e cidadania, permanentemente postas sob risco pelo exercício imoral de mandatos que ele outorga.
A lei 135 é das poucas de iniciativa popular que chegaram a ser promulgadas e está em vigência. Típica do chamado “direito achado na rua”, sua existência, validade e eficácia não partiram de nenhum poder público constituído. Partiu do povo organizado, do poder instituinte desse sujeito coletivo de direito, fazendo prevalecer sua vontade contrária às históricas apropriações do poder pelo poder, do que parasita o Estado para preservar privilégios, garantir sua permanência nas próximas eleições, elaborar leis classistas emanadas de interesses necessitados de aparência moral, mas de fundo opressor e excludente.
É uma lei visivelmente preocupada com a ética pública, pretende evitar o pernicioso vício do poder do dinheiro para comprar autoridades, viciar licitações, disfarçar formas de licença para ampliar negócios tendentes a explorar o trabalho alheio, depredar o meio ambiente, matar a terra, facilitar a usura, impedir qualquer mudança suficiente para desmascarar projetos de consequências prejudiciais para a população pobre e miserável.
Como bem refere a sua ementa, ela visa “proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.” Para tanto, modificou a lei complementar 64 de 1990, entre outras disposições, nas do seu artigo primeiro, inciso i. Na letra e) desse inciso, por exemplo, verifica-se a possibilidade de alguém ficar inelegível nas seguinte hipóteses:
e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:
1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;
2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência;
3. contra o meio ambiente e a saúde pública;
4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;
5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;
6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;
7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;
8. de redução à condição análoga à de escravo;
9. contra a vida e a dignidade sexual; e
10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando;
A ausência de caráter de agentes políticas/os, ultimamente revelada em gravações telefônicas, adverte a sociedade, outra vez, sobre o extremo cuidado a ser tomado com quem ela elege, seja pela esquerda, seja pela direita. Três falhas desse caráter, pelo menos, os casos de inelegibilidade, impostos pela lei de ficha limpa deixam claras: infidelidade aos fins buscados por toda a eleição, desvelando uma distorção solerte dos objetivos da própria democracia e da República; exercício do mandato em benefício próprio e criminosa fraude praticada contra as/os elitoras/es.
Seja no ambiente administrativo interno de cada um dos Poderes Públicos, com suas sindicâncias, comissões de inquérito, modalidades diversas de investigação de ilícitos, seja no Poder Judiciário, o devido processo legal também pode ser fonte de resultados pífios como ocorre comumente pela impunidade de crimes praticados por gente que engana o povo. Como toda a lei, a da ficha limpa não está livre disso. Também tem sua vigência e seus prometidos efeitos saneadores da política, em defesa da ética privada e pública, criticada ora por suas penas não serem suficientemente saneadoras, ora por serem demasiadamente rigorosas, mas muito mais pelos paradigmas hermenêuticos da sua interpretação, ainda fiéis, mesmo quando não o reconhecem, à cultura tradicional da licença, do jeito, da conveniência em se safar do aperto pela decretação da “falta de provas”, ainda que essas sejam até de domínio público.
O defeito não está nessa lei, então, e sim no parâmetro inspirador da sua aplicação. Entram em cena influente, em muitos casos, as mentiras proclamadas como verdades de uma e de outra das posições em conflito, particularmente quando envolvem disputa partidária, durante crises como essa atualmente sofrida pelo país, ou em véspera de eleições. A reforma política tem tanta dificuldade em ser implementada no Brasil, por mais que isso nos envergonhe, pelo fato de aquelas mentiras, travestidas de verdade, serem muito convenientes, tanto às campanhas eleitorais dos partidos como à parte da mídia que os apoia.
Uma vacina contra tal vício ainda não apareceu ao nível da infalibilidade. Uma delas, porém, parece acessível a qualquer do povo: analisar de quem parte a publicidade sobre a versão de um mérito pessoal ou coletivo qualquer, alardeado como verdadeiro e que prestação de serviço tal fonte prestou efetivamente à sociedade como um todo. Se essa versão estiver mais preocupada com a sustentação da ideologia ou do partido e seu/sua candidata/o ou eleita/o, as vítimas das suas mentiras de hoje serão aclamadas amanhã como mártires das verdades que as desvelaram.
Esse foi um trabalho que as Comissões de verdade, por mais poderoso fosse o empenho em atrapalhá-las, conseguiram, ainda que parcialmente, cumprir aqui no nosso país. Um/a prisioneiro/a político de ontem, vítima de todo o tipo de mentira passada como verdade, pode ser a/o presidente da república de hoje. Mandela, na África do Sul, Václav Havel na República Federativa Tcheca e Eslovaquia, Michele Bachelet no Chile, dão prova disso, mesmo que tais lembranças sejam tão incômodas para vários grupos moralistas de hoje, auto proclamados como os únicos fiéis à verdade, reconhecerem sua semelhança com o que está acontecendo no Brasil.
Prosseguir-se divulgando que a mudança de governo era necessária para eliminar de vez a corrupção política está se constituindo no melhor modo de preservá-la.
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