No último dia 22 de setembro, o governo publicou a Medida Provisória 746, que modifica o Ensino Médio no país. Desde o primeiro momento, a medida gerou críticas contundentes de organizações e pesquisadores da educação. Em entrevista ao portal da EPSJV/Fiocruz, 28-09-2016, Marise Ramos professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio - EPSJV/Fiocruz, analisa a medida ponto a ponto e explica porque a reforma apresentada pelo governo nem de longe resolve a situação do ensino médio brasileiro, pelo contrário, reforça as desigualdades e relega a maior parte dos jovens uma formação mínima e precarizada.
Eis a entrevista.
A justificativa do governo para apresentar a MP é a falência do ensino médio no Brasil, que, segundo o próprio governo, apresenta alta evasão e desempenho estagnado no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Esse é um diagnóstico correto?
Esses problemas existem, mas eu sempre destaco que a origem do problema da evasão e da própria estagnação das matrículas no ensino médio não está dentro do próprio ensino médio. Trata-se de uma questão da sociedade brasileira, da juventude brasileira, em especial da classe trabalhadora, daqueles que estudam na escola pública. Porque a faixa etária a partir da qual esses jovens ingressam no ensino médio é uma faixa etária também que desafia o jovem à realidade do emprego, do trabalho. Então, tem essa questão: a configuração do jovem como população economicamente ativa, como aquele que precisa trabalhar para complementar a renda familiar, pontualmente. Tem também a questão da própria sustentação no ensino médio. Por mais que tenhamos os programas de apoio, a passagem, o Programa Nacional do Livro Didático, a merenda escolar, por mais que se tenham ampliado os programas de assistência estudantil, ainda é um momento difícil para as famílias pobres, que têm dificuldade de sustentar o filho no ensino médio. Há outras questões diagnosticadas, todo mundo que estuda evasão também vê, por exemplo, a situação da gravidez precoce, o problema do uso de drogas, etc. Então esses são alguns aspectos que transcendem o conteúdo pedagógico da escola.
Mas não existe também problema interno à escola? O argumento é que o ensino médio não é atraente para os jovens...
Bom, entrando um pouco mais para a escola, claro que você tem nos sistemas estaduais de ensino redes bastante comprometidas do ponto de vista da qualidade da escola. Aí tem esse discurso: ‘a escola não é atrativa ao jovem’. Mas tem que se perguntar qual escola que não é atrativa ao jovem: a escola depredada, a escola sem condições dignas de estudo, de permanência? Obviamente. Então, esse já é um problema de qualidade propriamente. Aí entramos na questão do currículo, que também não é atraente ao jovem. A gente sabe que a escola passa por uma transição que tem a ver com a crise mais generalizada no plano cultural. As gerações que estão no ensino médio hoje vivem em uma sociedade em mudança, em transformação, uma sociedade em crise. E o ritmo da escola, a própria tradição da escola moderna, não incorpora as mudanças imediatamente. E também nem é o caso, porque um dos sentidos da educação, da escola, é ser uma experiência dos sujeitos em que uma das suas dimensões implica a incorporação, pelo jovem, da tradição de uma sociedade. Tradição no sentido daquilo que a sociedade construiu até o momento. É assim que a sociedade se sustenta, é preciso conhecer, incorporar a própria tradição para se questioná-la e transformá-la.
Então, de fato, eu não esperaria que a escola fosse algo que mudasse com a mesma dinâmica que os contextos sociais e culturais, porque esse confronto entre a tradição e a mudança, o novo, é formativo. Então, é preciso cautela com essa ideia de que a escola não é atraente aos jovens. Se de um lado se fala: ‘a escola não é atraente aos jovens’, de outro lado também se poderia perguntar: o que é atraente a esse jovem? É o que traz perspectivas, possibilidades formadoras para ele? Ou podem ser também lógicas deformadoras? Então, o desafio da escola está não só em incorporar os interesses dos jovens, convergir com os interesses dos jovens, mas educar esses próprios interesses. Os jovens, vindos de sua realidade — seja qual for, de uma vida burguesa, sofisticada, cara, ou de uma vida pobre, de carência —vão trazer os interesses que foram produzidos por essa realidade.
Não cabe à escola simplesmente incorporar os seus interesses, ou então adequar-se aos seus interesses. O que cabe à escola é, em se conhecendo esses interesses, confrontá-los com as necessidades formativas desses jovens, à luz de um projeto de sociedade. Isso tem a ver com currículo escolar. Pensar esse currículo nas dimensões da vida desse estudante, trazer a ciência, o conhecimento, o trabalho, a cultura em todas as suas dimensões – a cultura juvenil, da mídia, a cultura erudita, enfim. Precisa haver um encontro entre projeto educacional e interesses do jovem. Antes de um encontro, na verdade, é preciso haver um confronto para se poder, então, se encontrar e se reconstruir a convergência entre a finalidade da escola e o interesse do jovem.
Mudanças nos currículos são necessárias para atender esses pressupostos?
São. A gente tem debatido isso desde a redemocratização do país. Mas se quisermos colocar um marco, as reformas desde a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996] trazem essa preocupação. Tanto que veio a reforma do ensino médio no governoFernando Henrique Cardoso, quando já se falou intensamente do protagonismo juvenil, da contextualização do conhecimento, da interdisciplinaridade, inclusive da lógica da formação por competência, porque traria um ensino mais diretamente vinculado aos objetivos de aprendizagem. Essa já foi uma reforma feita em nome do suposto interesse do jovem. Uma parte dos educadores, na qual eu me situo, já criticavam a reforma porque tentava-se fazer mudanças do ponto de vista curricular sem considerar as questões estruturais da sociedade e da própria escola.
Percebíamos a insuficiência daquela reforma, porque ela também representava, em certa medida, a ideia de que o jovem deve trazer os seus interesses e a escola deve se limitar a convergir com esses interesses. E aí vem a discussão que a gente consegue fazer posteriormente, já a partir de 2003, que redunda nas atuais Diretrizes Curriculares Nacionais [DCNs] do Ensino Médio, que expressam plenamente esse reconhecimento da necessidade de se repensar e se reorganizar o currículo do ensino médio tendo em vista a realidade dos seus estudantes, porém sem negligenciar a finalidade educacional, que é formar um jovem na sua plenitude.
Nesse sentido, as DCNs são muito positivas porque estabelecem a possibilidade de o estudante ter acesso e se apropriar do patrimônio científico, cultural, social, ético, político, produzido pela humanidade até então e, ao mesmo tempo, confrontar, questionar essa mesma tradição, do ponto de vista, inclusive, do seu tempo, do lugar onde se encontra, da forma como vê o mundo num determinado tempo. Então, as Diretrizes trazem plenamente essa preocupação. Quer dizer, se a questão do interesse do jovem pela escola é central, é um problema, o que se construiu até o momento, condensado nas DCNs do ensino médio, do meu ponto de vista, dão conta.
Esta Medida Provisória agrava os problemas do ensino médio?
Sim. Porque essa reforma traz essa mesma justificativa do índice de evasão, estagnação, etc., mas a maldade, digamos assim, é que ela reduz drasticamente o que podem ser os interesses da juventude. E delibera, inclusive sem ouvir a comunidade educacional, sem ouvir os próprios estudantes, sobre o que podem ser os seus interesses. Sabe o que eles dizem na MP que são os interesses do jovem? Ter uma formação mínima, que na prática é ter uma formação precária. É isso. Então a síntese dessa medida é uma formação precária, que vai se tornar realidade, principalmente, para os filhos da classe trabalhadora.
A MP limita a carga horária das disciplinas contidas na Base Nacional Curricular Comum (BNCC) a 1200 horas e a outra metade da carga horária a itinerários formativos que incluem linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica profissional. Por que isso expressa essa formação mínima?
Essa é a primeira questão que salta aos olhos. É o fato de se determinar qual é a carga horária máxima da formação da Base Nacional Curricular Comum [BNCC]. Hoje o ensino médio está regulado com 2400 horas, em termos de uma concepção de formação unitária. O parágrafo 2º do Artigo 36 da LDB, que foi revogado por essa MP, dava uma especificidade ao ensino médio com a formação profissional, mas essa possibilidade tinha como preceito o asseguramento da formação geral, pois a formação profissional só podia acontecer mediante acréscimo da carga horária. Então, as 2.400 horas hoje regulamentadas são de formação básica, e sob o princípio de uma formação unitária. A MP estabelece que essa formação básica e unitária se reduz necessariamente a 1200 horas, que é a metade da carga horária atualmente prevista. O que se faz com as outras 1200 horas? Aí se abrem itinerários formativos.
Suponhamos que eu seja estudante do ensino médio: eu me contento com uma formação básica de 1.200 horas e o restante da carga horária eu vou fazer guiado por aquilo que seria o meu interesse mais direto. Então, eu admito que posso ser menos formado. É isso que a medida está dizendo. A MP diz que a escola pode oferecer um ou mais itinerários. Então, um estudante que por ventura tenha suposto — porque a gente não pode nem dizer que ele saiba isso nessa fase da vida —que não tem interesse por ciências da natureza pode fazer a sua formação sem nunca mais ter o contato com as ciências da natureza. Ou seja, ele não vai ter uma formação que contemple minimamente o conjunto. Porque a Base Nacional Comum vai ser reduzida igualmente, já que não se pode prever para a Base um conteúdo que demande mais do que 1200 horas.
O governo Temer quando assumiu anunciou que o processo de elaboração da Base seria paralisado. Então, não sabemos se o documento final irá se assemelhar a segunda versão que chegou a ser divulgada, sobre a qual já pesavam muitas críticas. O que esperar da BNCC após a edição dessa MP?
A lei impõe uma base diferente, porque certamente se estava trabalhando com a ideia das 2400 horas. Portanto, agora se terá um ano e meio para o trabalho desse conteúdo. O estudante sequer poderá redescobrir o interesse por alguma outra área que ele supostamente considera não gostar, provavelmente porque não teve uma boa experiência, não teve uma formação completa ou não esteve em uma escola com condições boas. E aí pronto, já está sacramentado, ele não tem mais chance.
A MP fala que depois da conclusão do ensino médio, o estudante pode optar por cursar um segundo itinerário formativo. Isso não resolve o problema?
Essa é outra maldade. Se o estudante, por alguma razão, quiser ou necessitar de uma formação mais ampla, ele tem que ampliar o seu tempo de ensino médio. Então, se o jovem amplia o seu interesse, ele acaba penalizado porque vai ter que voltar e cursar mais tempo. Isso se o sistema oferecer vaga, porque o jovem pode querer e não poder, já que está claramente expresso na MP que isso está sujeito à oferta de vaga.
Contando que a escola pode oferecer um ou mais itinerários, isso significa que podemos ter escolas que só ofereçam, por exemplo, a área de linguagens ou formação técnica?
Isso é um retorno muito piorado, tanto à lei 4024/61 quanto à 5692/71. O sistema de ensino define o que vai oferecer. Se quiser definir com ênfase em linguagem ou em ciências humanas, por exemplo, pode-se ter uma escola em que se prescinda da existência de laboratórios, precarizando mais ainda uma estrutura já precária. Some-se a isso o fim da obrigatoriedade do ensino de artes e educação física no ensino médio que a MP também traz. Então, a escola poderá não precisar ter laboratório, teatro, quadra esportiva... Quer dizer, é um artifício para se ter escolas ainda mais empobrecidas na sua infraestrutura. Como é que isso pode ser uma resposta aos interesses dos jovens? Tem um paradoxo aí, não é?
Em relação à formação profissional, que pode ser um dos itinerários formativos, voltamos à separação tão criticada entre formação geral e os cursos técnicos?
Voltamos exatamente ao patamar das leis que mencionei. Aqueles que eram considerados bons currículos do segundo grau técnico, na época da lei 5.692, tinham 50% de formação geral e 50% de formação profissional. Os não tão bons tinham menos formação geral e mais formação técnica. Mas, por exemplo, se você pegar a realidade das escolas técnicas federais à época, tipicamente os seus currículos mantinham essa divisão de 50%. Então, agora, você simultaneamente consegue trazer o que tem de pior nas duas leis passadas: da 4.024, porque restringe a formação dos estudantes nas áreas específicas, a exemplo do que foi o científico e o técnico profissional, e ressuscita a 5.692, numa lógica de um currículo de 50% para cada coisa. Outro agravante é o parágrafo único do artigo 24 da MP, que diz que a carga horária anual, que atualmente é de 800 horas, poderá ser progressivamente ampliada no ensino médio para 1.400 horas.
Você acrescenta então aí 600 horas por ano, que é mais ou menos o equivalente a um turno a mais por dia, exatamente o horário integral. Muito bem, de forma desavisada poderíamos bater palmas, pois ampliou-se a carga horária do ensino médio para o tempo integral. Mas essa ampliação só pode acontecer para os itinerários formativos, não pode ser uma ampliação na carga horária da formação básica comum, porque a formação da base nacional comum é limitada às 1.200 horas. Se os sistemas e os estabelecimentos de ensino ampliam, devem ampliar para 600 horas por ano e só podem fazê-lo na parte diversificada. Então, você aumenta a formação na especialização, essa que supostamente seria o interesse do jovem, e ele não vai ter mais a possibilidade de descobrir que teria outro interesse também.
Mas como você disse, a ampliação do Ensino Médio integral é uma demanda da sociedade e também uma das metas do Plano Nacional de Educação (PNE). Além do problema da expansão da carga horária na parte diversificada, que outros pontos críticos tem o atual projeto de ensino médio integral apresentado pelo governo no mesmo dia da edição da MP?
Pois é, alguém poderia falar assim: ‘não, mas o horário integral é uma questão positiva’. Eu própria falaria. Mas há muitos problemas. De um lado, a gente já viu que a ampliação só se efetiva nos itinerários e não na formação geral. E a outra questão é a obrigatoriedade do horário integral, que pode ampliar a concorrência hoje já existente entre trabalho e escola. Porque se o horário integral no ensino médio for obrigatório, quantos jovens podem ser impedidos de estudar porque a sua vida, estruturalmente, exige conciliar educação e trabalho, ou exige conciliar o ajudar em casa com o estudo? Enfim, o que não se leva em conta é quais são as condições objetivas para que essa ampliação possa corresponder a um direito ou uma necessidade do próprio estudante, e não ser uma imposição que vai redundar na exclusão. Uma outra observação que eu quero fazer é comparar a possibilidade da implementação dessa MP nas escolas de elite e nos sistemas públicos de ensino predominantemente utilizados pelas frações empobrecidas da classe trabalhadora. Assim como aconteceu em outras reformas, as escolas de elite nunca negligenciaram a formação básica, sólida, de cultura geral.
Quando houve a profissionalização obrigatória pela lei 5.692/61, ou elas transgrediam a lei ou faziam a profissionalização por via das formações consideradas formações em serviços, que acabavam sendo uma oportunidade para ampliar a formação na área das ciências humanas. Então, escolhiam profissões que podiam abrir para ampliar a formação geral: por exemplo, comunicação, secretariado, que amplia na língua estrangeira ou turismo, que abre a possibilidade de ampliar o estudo da geografia, da história. Tanto que não deu certo, chegou a lei 7.044 depois, que simplesmente regulamentou o que já estava acontecendo, que eram as escolas que não atendiam a obrigatoriedade da educação profissional.
As elites não atendiam porque não concordavam em tirar a carga horária de formação geral em nome da formação profissional. As escolas mal equipadas não atendiam porque não conseguiam fazer uma formação profissional decente já que não tinham os recursos para montar bons laboratórios. Então, uma escola de elite pode tranquilamente oferecer a diversidade dos eixos, pode optar por oferecer todos os itinerários e arranjos que permitam o aprofundamento da formação geral, até porque essas escolas não têm problemas de espaço físico e nem de falta de professor. E as escolas dos sistemas públicos é que vão fazer efetivamente a redução. Então, você tem reiterada e legalizada uma dualidade por dentro do sistema de ensino.
Só para deixar bem claro: a MP pode fazer com que um jovem só tenha acesso a uma escolha de itinerário formativo, levando em conta que a escola na qual estuda, que na maioria das vezes é a mais próxima de casa, pode oferecer só um tipo de formação?
Sim, porque inclusive isso é da lógica da economicidade. Porque essa é uma outra questão: hoje a gente tem um problema de falta de professor. A área em que há mais falta de professor é a das ciências da natureza, em geral a química e a física. Então, um sistema que tenha problema de falta de professor na área das ciências da natureza pode optar por fazer na maioria das escolas o itinerário das linguagens no qual tem mais professor. Então, não se resolve o problema da falta de professor, sacrifica-se a formação do jovem para resolver cinicamente, para tapar o problema da falta de professores. Aí entra também o problema da carreira do magistério que, igualmente, não é atraente para o professor. Aí isso deixa de ser uma preocupação. Nem a reforma do Fernando Henrique chegou a tanto, até porque isso aqui é muito pior do que a reforma do governoFHC. Agora piorou porque reduziu. Agora você pode ampliar a carga horária largamente na formação técnico profissional, com a inversão completa dos valores: um ensino médio que enfatiza a formação técnico-profissional em detrimento da formação geral. Exatamente o contrário, radicalmente o oposto do que se buscou na discussão da LDB, do que se conseguiu com a concepção do ensino médio integrado.
O texto fala em sistema de créditos no ensino médio e também em convalidar o que foi aprendido no ensino médio para o ensino superior. Essas mudanças atendem à mesma lógica do aligeiramento da formação?
É a mesma lógica da racionalidade. Esse aproveitamento de créditos do ensino médio no ensino superior é uma idiossincrasia, uma incoerência nunca vista antes na legislação educacional, que é o nível superior validar como equivalente um aprendizado obtido no nível anterior. Vamos supor que eu cheguei ao ensino superior: ‘ah, mas isso que você estudou aqui é equivalente ao que nós vamos estudar agora como nível superior, então não precisa fazer’. Então, tem uma incoerência interna na organização do conhecimento, de forma a desconsiderar os motivos da existência de etapas em níveis de ensino. Isso só pode ser explicado, no meu ponto de vista, em razão de uma economicidade, de um racionamento de conhecimento.
Além de estar diminuindo a formação básica no ensino médio, você também diminui no ensino superior, porque convalida o que foi aprendido antes. Tem outro artigo da MP que diz que o ensino médio poderá ser organizado em módulos e adotar o sistema de créditos ou disciplinas com terminalidade específica, observada a Base Nacional Comum, a fim de estimular prosseguimento de estudos. Quer dizer, você pega uma etapa de formação que é de formação básica, uma etapa na qual o sujeito ainda está em formação, e fatia. Legaliza formas fragmentárias da construção curricular para estudantes que estão numa faixa etária cuja autonomia ainda não necessariamente corresponde a sua possibilidade de escolhas e definições. Você pode dizer assim: ‘ah, mas isso em relação ao adulto pode ser uma coisa interessante’. Bom, há que se discutir, pode ser interessante para o adulto, para o adulto que já tem maturidade, já tem períodos escolares vivenciados anteriormente, mas aqui isso está generalizado.
A MP apresenta também soluções criativas de possibilidades de reconhecimentos de saberes, como por meio de demonstração prática, experiência de trabalho, etc.. Quais podem ser as consequências disso?
Esse outro aspecto do reconhecimento de formação não escolar, digamos, é algo anunciado já desde a LDB, mas não no nível em que se coloca agora. O que se apresenta agora é que os sistemas poderão reconhecer mediante regulamentação própria, então não tem parâmetro nacional como já se teve, por exemplo, a Rede Certifique na educação profissional. Criticar essa equivalência não é a mesma coisa que dizer que um é melhor ou superior que o outro, mas é dizer que os saberes são diferentes e a própria validade e pertinência do conhecimento prático, da experiência cotidiana, precisa ser confrontada pela relação com o conhecimento sistematizado. A MP torna equivalentes atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino, cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais, estudos relacionados a instituições de ensino nacionais e estrangeiros, educação à distância, e educação presencial mediada por tecnologias, além da experiência prática e de atividades de trabalho. Em última instância, levada às últimas consequências, considerando a restrita carga horária das 1.200 horas da Base Nacional Comum, e considerando ainda que esse aproveitamento pode se dar, inclusive, em relação à Base — porque o texto não diz diferente —, a gente pode supor que um estudante poderia concluir o ensino médio sem nunca tê-lo cursado como etapa da educação básica efetivamente.
Esse esforço da MP em garantir a formação no ensino médio ao custo da perda de qualidade pode ser interpretado como uma forma de zerar o número de jovens que ainda estão fora dessa etapa de ensino?
Exatamente. Porque você torna a possibilidade de certificação, de conclusão de estudos muito ágil, fácil e rápida. Então, pode-se conseguir elevar os números de conclusão de ensino médio muito rapidamente. Você pode ter escola mínima, com instalações mínimas, para uma formação igualmente mínima. É a minimização em todos os sentidos. Sabe o que é liofilização? Tirar água, drenar. O processo é esse, você está ressecando o ensino médio, está liofilizando, tirando o conteúdo dele e vai deixar uma massa de sobra. Uma outra coisa brutal é acabar com a exigência das licenciaturas para os professores, que também responde à falta de professores. A gente falou que o sistema pode optar pelo itinerário para o qual ele tem mais professores e deixa de ter que resolver o problema com falta de professores em outras áreas. Mas no artigo 61, inciso 4, a MP diz que nem a licenciatura se torna necessária para a educação profissional.
Isso já é possível hoje para a educação profissional?
Não, ao contrário, a LDB exigiu que todos os professores tivessem licenciatura. Isso foi possível na 5.692/71. Veja como é um retorno. Como não se tinha professores para todas as áreas técnicas, a 5.692, quando tornou a profissionalização compulsória, abriu o precedente de poder contratar como professor aquele que não tivesse licenciatura, mas que fosse especializado na área, com notório saber. Depois colocou-se a necessidade da formação pedagógica, que era um esquema para quem tinha só formação técnica de nível médio, e iria ser professor, e um outro esquema para quem tinha o nível superior em uma área, mas não tinha licenciatura. Durante muito tempo o sistema funcionou assim, até que na verdade os próprios esquemas acabaram e as instituições validaram que, desde que fizessem concurso e respondessem pelas exigências, poderia se não ter a licenciatura.
Essa ideia de que temos hoje um currículo exagerado com 13 disciplinas obrigatórias e que se aprende na escola muita coisa inútil, é recorrente. Após o anúncio da reforma pelo governo, esse foi o tom de alguns analistas na imprensa. Nesse sentido, não é um risco essa reforma ser atrativa para a sociedade?
Claro. Esse discurso pega o que já é criticado, que é a fragmentação por dentro do currículo. Por que a gente defende a integração? Ao invés de ter um tempo de matemática, outro de português, você vai tendo organizações em que as disciplinas dialogam umas com as outras. E ainda que você tenha 13 campos científicos, você tem um trabalho articulado entre eles, não são 13 aulas separadas em que uma não tem nada a ver com a outra, com mais 13 provas, com mais 13 exercícios para a casa. Então, é sempre o problema das reformas: eles pegam o fenômeno, a superfície, não vão até a raiz. E aí trazem a solução fácil. Isso aqui é um pacote de facilidades e por isso pode passar. É atrativo para o jovens e essa é a maior ironia, porque ele não pode se pensar como alguém maior, que amplie os seus direitos, os seus horizontes, ele tem que se pensar no mínimo, no instrumental. Isso é tipicamente a pós-modernidade, o efêmero, o rápido. De sólido não tem nada.
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