Posto isso, vemos a emergência de nós católicos refletirmos
sobre a população LGBT, constituída por gays, lésbicas, bissexuais, travestis e
transexuais, não se imiscuindo da visibilidade e emergência deste agrupamento
social tão mal compreendido e assimilado na sociedade atual. A Igreja reconhece
ser a pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus, não sendo a
orientação sexual o critério para se estabelecer a validade ou não da sua
relação para com o transcendente, pois qualquer pessoa neste mundo é criatura
de Deus e destinatário da sua graça, sendo por isso filho e herdeiro da vida
eterna. Deus não ama menos uma pessoa por ela ser gay ou lésbica.
O paradigma inaugurado pelo Concílio Vaticano II permite a
cada cristão-católico encontrar meios de acolhida e ajuda a estes nossos irmãos
e irmãs, não no intuito de convertê-los e curá-los, mas no sentido de ajudá-los
a integrar-se ao convívio social e eclesial e, na imprescindibilidade de
devolver-lhe a dignidade humana, tantas vezes ferida e machucada pelo
preconceito e pela intolerância à diversidade sexual. A CNBB em seu documento
nº 100 sobre a conversão pastoral da paróquia, estabelece que em nossas
comunidades cristãs saibamos acolher e integrar as pessoas que vivem em outras
configurações familiares diferentes à família tradicional. Os bispos
brasileiros alertam: “A Igreja, família de Cristo, precisa acolher com amor todos
os seus filhos. [...]. Na renovação paroquial, a questão familiar exige
conversão pastoral para não perder nada da Boa-Nova anunciada pela Igreja e, ao
mesmo tempo, não deixar de atender, pastoralmente, às novas situações da vida
familiar. Acolher, orientar e incluir nas comunidades aqueles que vivem numa
outra configuração familiar são desafios inadiáveis”[1].
Dom Frei Severino Clasen, em sua Carta Pastoral publicada neste último 15 de
agosto, alertou que o trabalho de evangelização da juventude precisa,
imprescindivelmente, considerar a juventude homoafetiva[2].Na
diocese de Nova Iguaçu no Rio de Janeiro, se criou a pastoral da diversidade,
no intuito de auxiliar a população LGBT no exercício da fé religiosa.Aos poucos
vamos percebendo que a Igreja e a sociedade civil vão tomando consciência que,
a condição homossexual não é fruto da opção deliberada da pessoa e, portanto,
não tendo ela alternativa senão se comportar de modo homossexual.
O pontificado do Papa Francisco inovou na relação de acolhida
para com as pessoas homossexuais. Disse ele, em 2013, voltando do Brasil a Roma
por ocasião da Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro: “Se uma pessoa é
gay, procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar? [...] Não se
devem marginalizar estas pessoas”[3].
O papa retoma o ensino do Concílio Vaticano II utilizando-se dos conceitos de
liberdade e autonomia da consciência aplicada à realidade das pessoas
homossexuais. No documento de Aparecida, resultado da conferência de bispos de
toda a América Latina, realizada em 2007 com a participação do Papa Bento XVI e
do então Arcebispo de Buenos Aires, Cardeal Bergoglio, convoca toda a Igreja a
ir às “periferias existenciais” para o encontro com todos os que sofrem
diversas formas de injustiças, carências e conflitos: “Com especial atenção e em
continuidade com as Conferências anteriores, fixamos nosso olhar nos rostos dos
novos excluídos: os migrantes, as vítimas da violência, os deslocados e
refugiados, as vítimas do tráfico de pessoas e sequestros, os desaparecidos, os
enfermos de HIV e de enfermidades endêmicas, os tóxicos-dependentes, idosos,
meninos e meninas que são vítimas da prostituição, pornografia e violência ou
do trabalho infantil, mulheres maltratadas, vítimas da exclusão e do tráfico
para a exploração sexual, pessoas com capacidades diferentes, grandes grupos de
desempregados/as, os excluídos pelo analfabetismo tecnológico, as pessoas que
vivem na rua das grandes cidades, os indígenas e afro-americanos, agricultores
sem terra e os mineiros. A Igreja, com sua Pastoral Social, deve dar acolhida e
acompanhar essas pessoas excluídas nas respectivas esferas” (DAp. 402).
O Papa Francisco critica uma Igreja autorreferencial e entrincheirada
em “estruturas caducas que perderam a capacidade de acolhimento”[4],
porque o anúncio do amor salvífico de Deus precede a obrigação moral e
religiosa. Na sua exortação apostólica Evangelii Gaudium ensina que
devemos evitar desproporções na pregação cristãs, sobretudo quando pregamos
mais a lei do que a graça de Deus, mais a Igreja do que Jesus Cristo, mais o
Papa do que a Palavra de Deus (cf. EG 38). Nossa pregação moral não é uma ética
estoica, não é uma mera filosofia prática e nem um catálogo de pecados e erros,
porque o Evangelho é, antes de tudo, resposta a Deus que nos ama e salva,
reconhecendo-nos como irmãos e irmãs na procura e no bem de todos (cf. EG 39).
A misericórdia deve ser aplicada e vivida por todos os cristãos, inclusive
pelos pastores da Igreja, rejeitando com isso todo idealismo estéril sem
paciência e misericórdia: “fujam dos padres rígidos! Eles mordem”[5],
dizia o papagraciosamente com seu bom humor.
A renovação realizada pelo Papa Francisco se faz com abertura
pastoral e novos enfoques doutrinais, através de gestos ousados desencadeando
novos processos de evangelização. No início de 2015 recebeu em sua casa a
visita do transexual espanhol Diego Neria e de sua companheira Macarena,
deixando-se fotografar com ambos. Nos
Estados Unidos recebeu na nunciatura apostólica o seu antigo aluno e amigo gay
Yayo Grassi e seu companheiro. Recebeu também o chileno Juan Carlos Cruz,
vítima de abuso sexual por um padre, com quem conversou em particular
longamente, e na ocasião lhe disse: “Juan Carlos, que você é gay não importa.
Deus te fez assim e te ama assim, e eu não me importo. O papa te ama assim.
Você precisa estar feliz como você é”, segundo relato do próprio Juan Carlos[6].
Mais recentemente, em 2020, no documentário “Francesco” o Papa Francisco defendeu
as uniões civis entre homossexuais: “As pessoas homossexuais têm direito de
estar em uma família. Elas são filhas de Deus e têm direito a uma família.
Ninguém deverá ser descartado ou ser infeliz. [...] O que precisamos criar é
uma lei de união civil. Dessa forma eles são legalmente contemplados”[7].
Aqui nos cabe uma pergunta: Estaria o papa menosprezando a
doutrina da Igreja? Na verdade, o Papa Francisco nada alterou doutrinalmente na
Igreja católica, mas mudou, ou pelo menos busca mudar, a abordagem da Igreja
frente aos grandes problemas da humanidade. Em meio a toda a complexidade da
vida humana o papa não hesita em convocar a caridade fraterna como a primeira
lei dos cristãos, como ensinou na Exortação Apostólica Amoris laetitia,
sobre o amor na família: “Em toda e qualquer circunstância, perante quem tenha
dificuldade em viver plenamente a lei de Deus, deve ressoar o convite a
percorrer a via caritatis. A caridade fraterna é a primeira lei dos
cristãos” (AL 306). Aplicando os gestos e exemplos do papa para com os LGBT´s
certamente vários problemas dessa população seriam resolvidos.
Ainda na Exortação Apostólica Amoris laetitia refletindo
sobre a família e seus desafios o Papa Francisco referenda o relatório
conclusivo dos padres sinodais, quando pede o acolhimento e o respeito pelas
pessoas homossexuais, evitando discriminação e qualquer forma de agressão e
violência: “Com os Padres sinodais, examinei a situação das famílias que vivem
a experiência de ter no seu seio pessoas com tendência homossexual, experiência
não fácil nem para os pais nem para os filhos. Por isso desejo, antes de tudo,
reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve
ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar
‘todo sinal de discriminação injusta’ e particularmente toda forma de agressão
e violência. Às famílias, por sua vez, deve-se assegurar um respeitoso
acompanhamento, para que quantos manifestam a tendência homossexual possam
dispor dos auxílios necessários para compreender e realizar plenamente a
vontade de Deus na sua vida” (AL 250).
Mais recentemente, em 2019, a Congregação para a Educação
Católica, publicou um documento sobre as questões de gênero e orientação
sexual. O documento Homem e mulher os criou: para uma via de diálogo sobre a
questão do gender na educação[8],
reafirma o ensino tradicional da Igreja sobre antropologia e sexualidade, e ao
mesmo tempo abre algumas possibilidades que podem ser promissoras. O referido
documento distingui entre ideologia e as diversas pesquisas sobre gênero,
realizadas pelas ciências humanas, com grande seriedade no que tange ao modo em
que se vive a sexualidade entre homens e mulheres nas suas diversas culturas.
Portanto, é necessário extinguir certa histeria que existe em determinados
grupos quando se refere em gênero.Além do mais, alerta contra o bullying,
exortando que na educação de crianças e jovens, deve-se respeitar suas
diferenças e peculiaridades. O presente documento não responde às expectativas
daqueles que esperavam da Igreja uma firme condenação dos estudos de gênero,
mas se abre ao diálogo e ao debate aberto, afinal está se discutindo ciência, e
não ideologias histéricas amplamente divulgadas por redes sociais nada cristãs.
Por fim, a Igreja precisa cada vez mais tomar consciência da população
LGBT, e saber acolher em suas comunidades cristãs seus dons e carismas. Cada
cristão deve ser o bom samaritano que, ao se encontrar compessoas em estado de
vulnerabilidade, como é o caso de muitos homossexuais padecentes,derramar óleo
e vinho em suas feridas e cuidar para que sejam inteiramente resgatadas e incluídas
em nosso convívio social. A Igreja, enquanto instituição pertence à sociedade
civil, deve apoiar e ajudar no discernimento ético e proposição de políticas públicas
através de conselhos paritários, no intuito de acompanhar e promover esta
parcela da população que clama por seus direitos.
Maringá-PR., 30 de agosto de 2021.
[1] CNBB, Comunidade de comunidades: uma nova paróquia (documento 100), nº 217-218.
[2]Dom Severino Clasen, Carta Pastoral Acolher e Cuidar, nº 226.
[3] PAPA FRANCISCO, Encontro do Santo Padre com os jornalistas durante o voo de regresso do Brasil, 28/06/2013.
[4] PAPA FRANCISCO, Solenidade de Pentecostes – homilia na Santa Missa com os movimentos eclesiais, 19/05/2013.
[5] PAPA FRANCISCO, Discurso do Papa Francisco aos participantes no congresso promovido pela Congregação para o Clero, por ocasião do cinquentenário dos decretos conciliares Optatam Totius e Presbiterorum Ordinis, Roma, 20/11/2015.
[6] El país, 19/05/2018, disponível www.elpais.com.
[8] CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, Homem e mulher os criou: para uma via de diálogo sobre a questão do gender na educação, Vaticano, 2019.
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