De acordo com a PEC, o Orçamento para gastos públicos será condicionado pelo crescimento da inflação
No último mês, Cristina (o nome é fictício, mas a cidadã é de carne e osso) recebeu uma carta do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário. Ela tem direito ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), no valor de um salário mínimo.
A razão é um filho, de 22 anos, que desenvolveu microcefalia durante a gestação e tem dificuldades motoras e cognitivas, devido a patologias no cérebro, como a displasia cortical e uma anomalia que impede a migração neuronal.
De acordo com a correspondência, Cristina terá de passar por um novo processo de averiguação de seu benefício. Seis anos após conseguir o auxílio, ela tem de apresentar novamente todos os documentos necessários para provar que seu filho não fala, não anda e usa fraldas. E precisa do BPC, destinado a idosos e pessoas com deficiência e sem condições de trabalhar.
Assim como Cristina, outros 4,2 milhões de brasileiros que recebem o benefício terão de passar até novembro pela revisão determinada pelo governo Temer. Mais do que uma simples verificação, espera-se economizar pelo menos 800 milhões de reais com benefícios a serem descontinuados.
A medida é apenas um dos passos de uma ação maior destinada a reduzir o tamanho do Estado brasileiro. Pilar dessa política a sustentar o governo é a Proposta de Emenda Constitucional 241/2016, também chamada de PEC do Teto de Gastos.
Tratada como prioridade máxima pelo Palácio do Planalto, a PEC tem como objetivo colocar um limite para as despesas primárias dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para cada exercício, pelos próximos 20 anos. Na prática, significa que o governo só poderá gastar até um determinado valor em itens relevantes como pessoal, saúde, educação, transferência de renda e Previdência, entre outros.
É a proposta que garante governabilidade a Temer no Congresso. Juntamente com a reforma da Previdência, que pretende mudar as regras para a concessão de aposentadorias, o ajuste das contas públicas é tido como uma das principais razões da aliança entre PMDB e PSDB no governo.
Por conta disso, o tema tem sido tratado com urgência pelos interlocutores do presidente. Inicialmente, a ideia era colocar a PEC em votação até o fim de outubro. Mas, passadas as eleições municipais, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), marcou a votação para o próximo dia 10 de outubro.
O interesse do PSDB pela aprovação da pauta explicita o caráter da proposta, perfeitamente afinada com a política de austeridade. De acordo com o texto da PEC, o Orçamento para os gastos públicos de cada ano será definido pelo crescimento da inflação do ano anterior. Portanto, deixa de ser vinculado à Receita ou ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB).
Isso quer dizer que, mais do que impedir o governo de gastar valores superiores ao que arrecada, a proposta impede aumento de gastos em áreas sensíveis mesmo que o País se torne mais rico. Tal é a principal regra e, segundo o texto, só poderia ser revista por iniciativa exclusiva do presidente da República após dez anos, em 2026.
O prazo final do ajuste se completaria somente em 2036, após mais de dois mandatos presidenciais completos. Conclusão: o Novo Regime Fiscal retira da sociedade e do Parlamento a prerrogativa de moldar o tamanho do Orçamento, definido agora pela inflação.
Ao colocar um limite para os gastos da União pelas próximas duas décadas, independentemente dos governos que possam vir a ser eleitos ou de uma melhora da situação econômica, a proposta basicamente institucionaliza um ajuste fiscal permanente.
“O objetivo é reduzir o tamanho do Estado, é uma austeridade contratada por 20 anos”, explica o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Pedro Linhares Rossi. Cálculos feitos com base na regra proposta pelo Planalto corroboram os seus argumentos. O professor da Unicamp analisou os gastos com despesas primárias para os próximos anos num cenário de crescimento do PIB de 2,5% ao ano, a partir de 2018. Os números mostram que, com a PEC 241, os gastos do PIB com esse tipo de despesa cairiam dos atuais 19% do PIB para cerca de 12% em 2036.
Rossi explica que isso tornaria o Estado muito menor que a economia brasileira, o que impediria uma intervenção governamental em uma situação de crise financeira. “A PEC vai retirar do Estado aa possibilidade de fazer frente a crises. Não há uma cláusula de escape nessa PEC, coisa rara nos regimes fiscais no mundo todo. Ou seja, se acontecer mais uma crise internacional, o que nós vamos fazer? Nada”, conclui.
Cabeça por trás da proposta, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Justificativa: a raiz do problema fiscal do Brasil é, segundo ele, o crescimento elevado do gasto público, que seria incompatível com o crescimento da Receita.
“No período 2008-2015, essa despesa cresceu 51% acima da inflação, enquanto a Receita evoluiu apenas 14,5%”, diz o texto que integra a PEC, assinado por Meirelles e Dyogo Henrique de Oliveira, atual ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão.
A tese de descontrole das contas públicas tem gerado muitos questionamentos. Segundo o Departamento Intersindical de Estudos Econômicos (Dieese), a observação dos dados referentes a receitas e despesas contradiz essa afirmação.
“As despesas primárias, como se disse, tiveram um comportamento compatível com o aumento das receitas até 2012”, diz a Nota Técnica 161, elaborada pela instituição em setembro, sobre os impactos da PEC 241. Para o Dieese, o descompasso dos gastos começa de forma mais profunda com o ajuste fiscal implementado pelo ex-ministro Joaquim Levy, ainda sob o comando de Dilma Rousseff, justamente quando a União cortou gastos e o Estado deixou de contribuir com a economia.
A consequência foi que a receita despencou e os gastos continuaram no mesmo patamar. “O problema fiscal está associado à estagnação econômica de 2014, seguida pela crise, e ao ajuste recessivo adotado em 2015.” Foi nessa época que “as receitas se deprimiram, comprometendo o equilíbrio fiscal”, diz o texto.
Em outras palavras, segundo o Dieese, o aprofundamento da recessão fiscal no País é, em parte, responsabilidade do próprio ajuste, que agora se apresenta como solução para a economia ao aviar a mesma receita: corte de gastos.
O próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) chegou a uma conclusão parecida recentemente. Em maio, três economistas da instituição publicaram um artigo dizendo quepolíticas neoliberais podem gerar efeitos nocivos para a economia de países em desenvolvimento. Por exemplo, aumentar a desigualdade.
Ao falar em neoliberalismo, o FMI refere-se às medidas de austeridade. “Os benefícios de algumas políticas que são uma parte importante da agenda neoliberal parecem ter sido um pouco exagerados. Em vez de gerar crescimento, algumas políticas neoliberais aumentaram a desigualdade, colocando em risco uma expansão duradoura”, confessa o Fundo.
Fonte: Carta Capital
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