21 janeiro, 2020

Textos sobre Samba Enredo 2020 da Estação Primeira de Mangueira - A Verdade Vos Fará Livre

Nas postagens abaixo dois textos e o vídeo do Samba Enredo
2020 da Estação Primeira de Mangueira - A Verdade Vos Fará Livre

Um do meu amigo irmão o teólogo Celso Pinto Carias e o outro
do Padre Geraldo Natalino

Celso Pinto Carias
“Por favor, voltemos ao que é fundamental. Não deixemos que
o cristianismo seja tão desfigurado. E viva a Mangueira, parabéns ao
Carnavalesco Leandro Vieira pela sensibilidade carinhosa com o Caminho de Jesus
Cristo.”

Padre Geraldo Natalino
“acolho a notícia do samba enredo da Mangueira para o
carnaval de 2020 como uma provocação às igrejas cristãs amordaçadas neste
momento dramático e trágico na história do Brasil”



Vejam o vídeo, leiam os dois textos e uma boa reflexão


 





Texto do Teólogo Celso
Pinto Carias sobre o Samba Enredo 2020 da Estação Primeira de Mangueira - A
Verdade Vos Fará Livre
  
JESUS CRISTO: UM DESCONHECIDO

Celso Pinto Carias (Doutor em Teologia pela Puc-Rio)
Autor do livro “Teologia para Todos”, Editora Vozes.

Mais uma vez se abre uma POLÊMICA religiosa. Mais uma vez se
trata de uma polêmica sem sentido, superficial, desviante, pois o foco não é
propriamente a questão religiosa, a possível defesa de um ser divino que não
precisa de defesa. DEUS NÃO PRECISA DE ADVOGADO.

Costumo dizer para os meus alunos e alunas que a religião,
qualquer religião, a sua e a minha, pode ser utilizada para um projeto de poder
dominador. E uma razão de fundo é a uma fé que se pensa apenas como “toma lá dá
cá” e não uma fé que configura o sentido fundamental da vida. Uma fé que não se
constitui como um projeto de vida, seja qual for a situação da sua vida. Por
isso, também costumo dizer que Jesus Cristo é um ilustre desconhecido, pois não
assumem o Seu projeto de vida.

Aí, uma escola de Samba, Mangueira, 2020, faz uma samba no
qual Jesus Cristo é a figura central, que diz de forma artística o que boa
parte da teologia cristã disse no passado e continua a dizer hoje, e chamam
isso de blasfêmia. Determinantemente: não conhecem Jesus Cristo.

“Ele tinha condição divina,... Mas esvaziou-se a si mesmo, e
assumiu a condição de servo” (Fl 2,6a-7a). É dogma da fé cristã, FÉ CRISTÃ, ou
seja, não apenas católica, protestante, ortodoxa, anglicana, que Jesus é
verdadeiramente Deus e verdadeiramente humano (Concílio de Calcedônea, 451). Ou
seja, Nele encontramos resposta para duas perguntas fundamentais: quem é Deus e
quem é ser humano. Ser cristão e cristã é estar disposto a fazer o mesmo
CAMINHO HUMANO DE JESUS CRISTO: “Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo
Jesus” (Fl 2,5).

Assim sendo, os Evangelhos nos dão o itinerário do Caminho.
“Ele que passou fazendo o bem” (At 10,38). Ele fez milagres? Sim, milagres de
cura como sinal do grande bem que é a vida humana. Não deve ter curado 1% dos
doentes de Jerusalém. Procure, se você tem o Novo Testamento, se Jesus marca
dia, hora ou local para fazer milagres. Ele não foi um milagreiro, mas a
aproximação de Deus até o extremo da humanidade para dizer para nós: “Dei-vos o
exemplo para que, como eu voz fiz, também vós o façais” (Jo 13,15). Ou seja, a
missão central de Jesus Cristo foi a de apresentar o Projeto do Reino de Deus
que se consuma na ressurreição final, mas que começa aqui e agora. Projeto de
paz, justiça, fraternidade, solidariedade e perdão.

Portanto, em vez de ficarmos tentando ser FISCAIS de Jesus
Cristo, façamos o que Ele fez. O critério fundamental de adesão a ele está em
Mateus 25: tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber, estava
nu e me vestistes, era peregrino e me acolhestes. Aprendamos com as “Bem
aventuranças”: “Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem,...” (Lc
6,20-23). Aprendamos a misericórdia com Ele: “Sede misericordiosos, como vosso
Pai é misericordioso” (Lc 6,36). E aprendamos com todos e todas que fizeram de
suas vidas o que Jesus de Nazaré fez com a dele: Oscar Romero (hoje santo
católico), Martin Luther King (pastor batista norte-americano), Madre Tereza de
Calcutá (também santa católica), entre tantos e tantas.

Por favor, voltemos ao que é fundamental. Não deixemos que o
cristianismo seja tão desfigurado. E viva a Mangueira, parabéns ao Carnavalesco
Leandro Vieira pela sensibilidade carinhosa com o Caminho de Jesus Cristo.


Texto do Padre
Geraldo Natalino sobre o Samba Enredo 2020 da Estação Primeira de Mangueira - A
Verdade Vos Fará Livre

“Sou mestre em teologia sistemático-pastoral pela PUC-RJ e
doutor em ciência da religião pela PUC-SP. Como religioso católico, padre há 25
anos na diocese do Rio de Janeiro, 
acolho a notícia do samba enredo da Mangueira para o carnaval de 2020
como uma provocação às igrejas cristãs amordaçadas neste momento dramático e
trágico na história do Brasil. Provocar (“provocare”) é “chamar para a briga”,
incitar, desafiar… Desse modo, o enredo da Mangueira de 2020 “A VERDADE VOS
FARÁ LIVRES” pode constituir um desafio aos que se dizem cristãos!

Certa feita, num livro antigo de Leonardo Boff, conheci o
termo “profecia externa”. Para o teólogo, a expressão se referia a
possibilidade de a sociedade, de diversificada forma, exercer a profecia, isso
é, falar em nome de Deus na defesa da vida. Dizendo de outro modo, pessoas e
grupos, como, por exemplo, movimentos sociais, em princípio, não religiosos,
podem, as vezes com mais coragem do que os que se dizem seguidores ou
seguidoras de Jesus, viver e lutar por um mundo de amor, justiça, igualdade,
democracia e paz.

Nesse horizonte, recebo o enredo da Mangueira como “profecia
externa”. O último pleito eleitoral revelou setores cristãos (católicos e
evangélicos) despudoradamente aliados à grupos políticos promotores da
violência e da matança dos pobres e indefesos. De forma explícita e velada
grupos cristãos se apresentaram como coniventes dos esquadrões da morte. E
todos esses grupos tem hoje nas mãos o sangue dos Wajãpi e responderão no juízo
final por suas vidas brutalmente ceifadas. Muitos cristãos, sobretudo da
hierarquia religiosa, jamais seriam capazes de assassinar, mas isso não os
impede de amolar a faca para que outros o façam.

Em resumo, a capacidade de o cristianismo ser aliado dos
vitimizados da história foi mais uma vez, terrivelmente, posta em cheque. De
que lado estão os cristãos: do lado das vítimas ou dos carrascos? A Bíblia está
repleta da denúncia acerca de profetas que se venderam e se calaram diante das
atrocidades da história . O próprio Jesus aventou a possibilidade de, em face
do silenciamento dos profetas, as pedras se pronunciarem na defesa da vida (“as
pedras gritarão”). Então, é na contramão da apresentação, por parte de muitos
cristãos, de um Jesus Cristo “açucarado”, conivente e insensível ante a dor dos
pobres e segregados de toda sorte (indígenas, negros, mulheres, gays, terreiros
etc..), que a Estacão Primeira de Mangueira, a meu juízo, profeticamente, pode
estar mais próxima do Jesus dos Evangelhos do que muitos que não tiram a Bíblia
debaixo dos braços e sabem citar de cor quaisquer capítulos ou versículos. Terá
a narrativa da Mangueira mais pertinência e relevância que a dos doutos (e
quase sempre arrolhados e encastelados) biblistas?

A propósito, o termo “Evangelho” quer dizer notícia feliz,
interessante, oportuna e significante… De certo, é razoável pensar que o que
interessa às vítimas seja diametralmente oposto ao que interessa aos verdugos;
a notícia oportuna à senzala não é a mesma desejada pela casa grande.
Considerando que Jesus não é propriedade privada de nenhuma igreja e que o
Espirito Santo é livre e, por isso, fala onde quer e como quer, é possível
pensar num Deus falando na Sapucaí, infelizmente, as vezes de forma mais
potente do que nas igrejas.

Ler o Evangelho é também um ato político, uma interpretação
que nasce de um “lugar de fala”, nos termos de Djamila Ribeiro. E não existe
leitura – inclusive, bíblica – neutra! Praza Deus, o discurso da Mangueira,
como diz Conceição Evaristo, consiga, na potência evangélica do samba, acordar
a casa grande de seus sonos injustos! A Verdade que liberta o oprimido, ao
mesmo tempo, desnuda e denuncia as mentiras do opressor!

Desejo, pois, que as igrejas cristãs se convertam do olhar
colonialista , preconceituoso e racista para com o carnaval e tantas outras
expressões culturais e religiosas afro-brasileiras. É hora de passarmos de uma
política vincadamente policialesca para uma política do diálogo e da troca
positiva. Ademais, o samba também evangeliza, inclusive aos que se dizem
cristãos! Se as “pedras” podem profetizar, por que o samba não pode? Vale
repetir: o Espírito Santo é livre e sopra onde quer! As vezes fala onde menos
se espera… Deus é desconcertante! Da minha parte, como pesquisador das
religiosidades das populações subalternizadas, estou, pessoal e visceralmente,
ansioso e esperançoso para ver/ouvir a exegese bíblica do Samba, a versão, a
hermenêutica decolonial de Leandro Vieira – o Evangelho de Jesus segundo a
Estacão Primeira de Mangueira!”
*Padre Geraldo Natalino – mestre em teologia e doutor em
ciência da religião – é conhecido popularmente no Complexo de Manguinhos como
Padre “Gegê”.

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