28 maio, 2020

Carta aberta à Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil

"A fé cristã, com todos os problemas históricos que não se pode negar, sempre teve o carisma da unidade, do diálogo, da paz e da solidariedade. Então, uma humilde sugestão para a nossa realidade brasileira, que pode ser exemplo para o mundo: a CNBB, através de sua presidência, poderia ser a mediadora de um grande debate virtual para garantir a democracia", escreve Celso Pinto Carias, doutor em Teologia pela PUC-Rio, assessor das CEBs do Brasil e do Setor CEBs da Comissão Pastoral Episcopal para o Laicato da CNBB e, nas palavras do autor, "um mendigo de Deus".

Eis a carta.

“Como sou pouco e sei pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando por inteiro”
(Ariano Suassuna)

No dia seguinte a exibição da reunião ministerial liberada pelo ministro do Supremo Celso de Melo, um padre muito meu amigo fez um pedido inusitado: fazer uma nota pedindo que a CNBB se pronunciasse a respeito. Respondi dizendo que não estava muito inspirado, pois me sentia navegando em um barco à vela, sem vento, sem bússola e em uma noite sem estrelas. E certamente, a CNBB não faria tal nota. Mas este padre é um santo homem, e aí resolvi escrever esta carta aberta. Não sei se vai ao encontro do amigo. Mas vou tentar.

Mais algumas coisas, além da santidade do padre, motivaram-me. Lembrei-me de um filme que eu e família assistimos na semana passada: “A menina que roubava livros”. Em uma cena na qual um judeu está sendo levado pelos nazistas, conhecido dos moradores da localidade de longa data, e um personagem vai ao encontro da polícia dizer que o judeu era um bom homem. É empurrado e bate com a cabeça no chão. Em casa a menina pergunta: “Por que eles fizeram isto com o senhor?” Resposta: “Minha ação tentou mostrar a humanidade deles, e neste momento eles odeiam isso”. A outra foi o término da homilia de domingo passado (24/05) do padre que acompanha a Comunidade que participo (Batismo do Senhor) em Duque de Caxias, RJ (Estamos fazendo orações simultâneas duas vezes por dia pelo Whatsapp e domingo comungamos da Palavra, claro em nossas casas. O padre faz uma breve homilia). No final ele disse: “Jesus é a nossa humanidade junto de Deus”. E ainda encontrei a frase do Suassuna no facebook de um amigo.

Ora, em que uma cartinha “mixuruca” poderia alterar neste quadro um tanto quanto desolador? Não sei. Mas sei que não quero sentir minha humanidade se esvaindo, e como seguidor de Jesus Cristo gostaria, pela mediação Dele, sentir minha humanidade junto de Deus. E aí, resolvi dizer algumas palavras.

Na Conferência de Aparecida, em 2007, os bispos da América Latina e do Caribe já observaram que estamos diante de uma grave crise. Crise que vem se aprofundando, e em vários níveis: social, político, econômico e cultural. E agora, diante de tal crise, aparece a pandemia pelo coronavírus. E se a covid-19, doença provocada pelo vírus, parasse de matar agora, já teria causado uma das mais violentas tragédias dos últimos tempos. Muitos podem perguntar: “E daí? Vamos rezar pelo fim da crise e da pandemia e pronto”. Porém, não posso me conformar com isso. A oração é antes mais nada um ato de comunhão com Deus, e não um balcão de negócios.

Não posso me conformar que uma primeira iniciativa, logo no início do isolamento, de algumas dioceses, tenha sido organizar como o dízimo seria pago. Evidentemente sei da necessidade da manutenção. Sei também, principalmente, que graças a Deus, muitas iniciativas de solidariedade surgiram e continuam a acontecer. Mas a situação é muito grave. Grave porque há uma crise que ultrapassa uma doença virótica altamente perigosa. E por favor, quem diz não é um modesto teólogo da Baixada Fluminense, mas a grande maioria dos infectologistas e centros de pesquisa do mundo, das mais diversas concepções ideológicas.

Muita dificuldade para entender como setores que se afirma cristãos, com um legado cultural que fez surgir de Agostinho a Teilhard de Chardin, homens e mulheres inspirados pelo Caminho de Jesus, com enorme capacidade de diálogo com a realidade da vida, possa reduzir a análise do que está acontecendo pelo víeis moral e com concepções ideológicas de baixíssimo valor intelectual. Não é possível, repito, não é possível, que depois de tantas figuras emblemáticas na realidade cultural, ainda haja cristãos e cristãs que se colocam do lado da mais absurda ignorância.

Bem antes da pandemia, quando algumas revelações começaram a aparecer quanto ao governo atual, um bispo me disse: “Tudo bem, o importante é que tiramos a esquerda”. Depois da queda do Muro de Berlim, o que é esquerda e direita? Diria o meu mestre na arte de refletir teologia: “O dualismo antropológico platônico continua forte, gordo e corado”. O bem e o mal, anjos e demônios, fé e vida, e por aí vai. Um maniqueísmo que parece não cessar nunca. É difícil compreender que Deus criou a vida por inteiro? Que não há competição entre corpo e alma? Que é uma unidade?

Não se trata de defender governo “A” ou atacar governo “B”. Não se trata de “torcer” para dar certo ou errado, como se estivéssemos em um torneio de política. A realidade política, social e econômica é bem mais complexa que uma partida de futebol. “Ah, tá bom, a reunião foi ridícula, mas é melhor defender a família, Deus, etc. do que aqueles ladrões e aborteiros esquerdistas”. Custo a acreditar que pessoas com formação filosófica e teológica façam análises tão rasteiras.

Pergunto-me, apenas pergunto, se por trás de desculpas tão grosseiras não estaria uma perspectiva de manutenção de privilégios. Rotula-se determinados conceitos como demoníacos e aí nenhum debate prospera. Cultiva-se ódio, prega-se violência, apoiam-se em fundamentalismos bíblicos que estão superados faz décadas, para iludir um povo muito religioso e que sempre sofreu sob o impacto da injustiça. Recordam que havia teologia para justificar a escravidão? Alguém é capaz de negar?

Irmãos e irmãs. A situação é dramática. Sabe-se que já havia uma crise econômica que espreitava o planeta. A pandemia certamente será uma grande justificativa para aprofundar ainda mais dores e sofrimentos ao povo. E todos nós que trabalhamos com o simbólico não podemos ser instrumentalizados pelo poder da acumulação, mas devemos estar a serviço do outro e da outra. Devemos lavar os pés uns dos outros. Ou achamos que o serviço foi só um teatro de Jesus de Nazaré? “Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus” (Fl 2,5).

Assim sendo, somos interpelados, em profunda comunhão com o Pai, por meio de Jesus Cristo, em unidade com o Espírito Santo, a agir como homens e mulheres que acreditam no Amor de Deus. Nestes dias o Evangelho de João tem nos alertado que poderemos sofrer tribulações. Mas vamos nos omitir?

Durante a pandemia devemos escutar a voz de quem estuda com profundidade tal situação. Podem errar? Naturalmente. Mas na dúvida não ultrapasse. Por que pressa em abrir as igrejas? Parecemos àqueles setores que acreditam ser a economia mais importante que a vida. E o Papa Francisco já alertou: “Esta economia mata” (EG). A pandemia nos alerta para reconstruir o caminho espiritual de nossa fé que pode estar centrada em prédios e não na Comunidade propriamente. Que pode estar centrada em vaidades pessoais na lógica do sucesso midiático. Voltemos a sinodalidade da origem de nossa fé. Mais do que nunca é preciso caminhar juntos.

A fé cristã, com todos os problemas históricos que não se pode negar, sempre teve o carisma da unidade, do diálogo, da paz e da solidariedade. Então, uma humilde sugestão para a nossa realidade brasileira, que pode ser exemplo para o mundo: a CNBB, através de sua presidência, poderia ser a mediadora de um grande debate virtual para garantir a democracia. A Igreja sozinha não consegue. Sozinho ninguém consegue. Mas podemos tentar unir todos os setores sociais que acreditam que os direitos humanos são valores fundamentais desenvolvidos pelo mundo moderno, e não uma ONG para defender bandidos.

Pelo amor de Deus. Não existe intervenção militar democrática. Sabemos que a democracia não é perfeita. Aliás, a democracia representativa já deu sinais claros de esgotamento. Precisamos caminhar para uma democracia participativa. Mas como diria Winston Churchil: “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras”. Não deixemos que a institucionalidade cristã, mas uma vez, precise no futuro explicar por que se deixou envolver com o que tem de pior na sociedade. Que um futuro papa não tenha que repetir o grandioso gesto de São João Paulo II em pedir perdão por erros que foram cometidos nos passado.

Sejamos capazes de nutrir aquela esperança apocalíptica dos primeiros tempos: “Eis a tenda de Deus com os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo, e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais. Sim! As coisas antigas se foram!” (Ap 21, 3-4).
Nota do autor

Pela Graça de Deus sou doutor em Teologia pela PUC-Rio. Consegui até publicar livros. Hoje, além de professor na PUC, sou assessor das CEBs do Brasil e do Setor CEBs da Comissão Pastoral Episcopal para o Laicato da CNBB. Mas gosto de me apresentar como “mendigo de Deus”, expressão que encontrei em livro de teologia para designar o trabalho teológico: um pedinte diante de Deus. Que Ele tenha misericórdia do nosso Brasil, sobretudo dos excluídos morrendo de covid-19 e familiares recebendo o atestado de óbito como Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) sem ter o luto respeitado.

Fonte: IHU

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