CARTA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI DO SANTO PADRE FRANCISCO SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL
Capítulo II
UM ESTRANHO NO CAMINHO
[nn. 56-86]
Visão geral do Capítulo
Introdução do Capítulo [n.56]
1. A perspectiva de fundo [nn.57-62]
2. O abandonado [nn.63-68]
3. Uma história que se repete [nn.69-71]
4. As personagens [nn.72-76]
5. Recomeçar [nn.77-79]
6. O próximo sem fronteiras [nn.80-83]
7. A provocação do forasteiro [84-86]
Leitura da Carta Encíclica FRATELLI TUTTI do Santo Padre FRANCISCO sobre a Fraternidade e Amizade Social.
Capítulo II: Um estranho no caminho.
n. 56. Introdução do Capítulo.
nn. 57-62. Título 1: A perspectiva de fundo.
nn. 63-68. Título 2: O abandonado.
CARTA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI DO SANTO PADRE FRANCISCO SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL
Capítulo II
UM ESTRANHO NO CAMINHO
56. Tudo o que mencionei no capítulo anterior é mais do que uma asséptica descrição da realidade, pois «as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração».[53] Com a intenção de procurar uma luz no meio do que estamos a viver e antes de propor algumas linhas de ação, quero dedicar um capítulo a uma parábola narrada por Jesus Cristo há dois mil anos. Com efeito, apesar desta encíclica se dirigir a todas as pessoas de boa vontade, independentemente das suas convicções religiosas, a parábola em questão é expressa de tal maneira que qualquer um de nós pode deixar-se interpelar por ela:
«Levantou-se, então, um doutor da Lei e perguntou [a Jesus], para O experimentar: “Mestre, que hei de fazer para possuir a vida eterna?” Disse-lhe Jesus: “Que está escrito na Lei? Como lês?” O outro respondeu: “Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”. Disse-lhe Jesus: “Respondeste bem; faz isso e viverás”. Mas ele, querendo justificar a pergunta feita, disse a Jesus: “E quem é o meu próximo?” Tomando a palavra, Jesus respondeu: “Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: ‘Trata bem dele e, o que gastares a mais, pagar-to-ei quando voltar’. Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?” Respondeu: “O que usou de misericórdia para com ele”. Jesus retorquiu: “Vai e faz tu também o mesmo”» (Lc 10, 25-37).
A perspetiva de fundo
57. Esta parábola recolhe uma perspetiva de séculos. Pouco depois da narração da criação do mundo e do ser humano, a Bíblia propõe o desafio das relações entre nós. Caim elimina o seu irmão Abel, e ressoa a pergunta de Deus: «Onde está Abel, teu irmão?» A resposta é a mesma que damos nós muitas vezes: «Sou, porventura, guarda do meu irmão?» (Gn 4, 9). Com a sua pergunta, Deus coloca em questão todo o tipo de determinismo ou fatalismo que pretenda justificar como única resposta possível a indiferença. E, ao invés, habilita-nos a criar uma cultura diferente, que nos conduza a superar as inimizades e cuidar uns dos outros.
58. O livro de Job invoca o facto de ter um mesmo Criador como base para sustentar alguns direitos em comum: «Pois Aquele que me criou no ventre, também o criou a ele; um só nos formou a ambos no seio materno» (31, 15). Muitos séculos depois, Santo Ireneu de Lião expressará o mesmo conceito recorrendo à imagem da melodia: «Assim, quem ama a verdade não deve deixar-se enganar pela diferença entre cada um dos sons, nem imaginar que um músico seja o artífice e o criador deste som, e outro o artífice e o criador do outro (…), mas há de pensar que um único músico os produziu a ambos».[54]
59. Nas tradições judaicas, o dever de amar o outro e cuidar dele parecia limitar-se às relações entre os membros duma mesma nação. O antigo preceito «amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19, 18) geralmente entendia-se como referido aos compatriotas. Todavia, especialmente no judaísmo que se desenvolveu fora da terra de Israel, as fronteiras foram-se ampliando. Aparece o convite a não fazer aos outros o que não queres que te façam a ti (cf. Tob 4, 15). E a propósito dizia, no século I (a.C.), o sábio Hillel: «Isto é a Lei e os Profetas. Todo o resto é comentário».[55] O desejo de imitar o comportamento divino levou a superar aquela tendência de limitar o amor aos mais próximos: «A compaixão do homem tem por objeto o próximo, mas a misericórdia divina estende-se a todo o ser vivo» (Sir 18, 13).
60. O preceito de Hillel recebeu uma formulação positiva no Novo Testamento: «O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas» (Mt 7, 12). Este apelo é universal, tende a abraçar a todos, apenas pela sua condição humana, porque o Altíssimo, o Pai do Céu, «faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus» (Mt 5, 45). Em consequência, exige-se: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso» (Lc 6, 36).
61. Como motivo para alargar o coração a fim de não excluir o estrangeiro, invoca-se a memória que o povo judeu conserva de ter vivido como estrangeiro no Egito. E tal motivo aparece já nos textos mais antigos da Bíblia: «Não usarás de violência contra o estrangeiro residente nem o oprimirás, porque foste estrangeiro residente na terra do Egito» (Ex 22, 20). «Não oprimirás um estrangeiro residente; vós conheceis a vida do estrangeiro residente, porque fostes estrangeiros residentes na terra do Egito» (Ex 23, 9). «Se um estrangeiro vier residir contigo na tua terra, não o oprimirás. O estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos vossos compatriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes estrangeiros na terra do Egito» (Lv 19, 33-34). «Quando vindimares a tua vinha, não rebusques o que ficou; deixa-o para o estrangeiro, o órfão e a viúva. Lembra-te que foste escravo na terra do Egito» (Dt 24, 21-22).
No Novo Testamento, ressoa intensamente o apelo ao amor fraterno: «Toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gl 5, 14). «Quem ama o seu irmão permanece na luz e não corre perigo de tropeçar. Mas quem tem ódio ao seu irmão está nas trevas» (1 Jo 2, 10-11). «Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte» (1 Jo 3, 14). «Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê» (1 Jo 4, 20).
62. Mesmo esta proposta de amor podia ser mal compreendida. Foi por alguma razão que, perante a tentação das primeiras comunidades cristãs criarem grupos fechados e isolados, São Paulo exortava os seus discípulos a ter caridade uns para com os outros «e para com todos» (1 Ts 3, 12) e, na comunidade de João, pedia-se que fossem bem recebidos os irmãos, «mesmo sendo estrangeiros» (3 Jo 5). Esse contexto ajuda a entender o valor da parábola do bom samaritano: ao amor não lhe interessa se o irmão ferido vem daqui ou dacolá. Com efeito, é o «amor que rompe as cadeias que nos isolam e separam, lançando pontes; amor que nos permite construir uma grande família onde todos nos podemos sentir em casa (…). Amor que sabe de compaixão e dignidade».[56]
O abandonado
63. Conta Jesus que havia um homem ferido, estendido por terra no caminho, que fora assaltado. Passaram vários ao seu lado, mas… foram-se, não pararam. Eram pessoas com funções importantes na sociedade, que não tinham no coração o amor pelo bem comum. Não foram capazes de perder uns minutos para cuidar do ferido ou, pelo menos, procurar ajuda. Um parou, ofereceu-lhe proximidade, curou-o com as próprias mãos, pôs também dinheiro do seu bolso e ocupou-se dele. Sobretudo deu-lhe algo que, neste mundo apressado, regateamos tanto: deu-lhe o seu tempo. Tinha certamente os seus planos para aproveitar aquele dia a bem das suas necessidades, compromissos ou desejos. Mas conseguiu deixar tudo de lado à vista do ferido e, sem o conhecer, considerou-o digno de lhe dedicar o seu tempo.
64. Com quem te identificas? É uma pergunta sem rodeios, direta e determinante: a qual deles te assemelhas? Precisamos de reconhecer a tentação que nos cerca de se desinteressar dos outros, especialmente dos mais frágeis. Digamos que crescemos em muitos aspetos, mas somos analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades desenvolvidas. Habituamo-nos a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima.
65. Assaltam uma pessoa na rua, e muitos fogem como se não tivessem visto nada. Sucede muitas vezes que pessoas atropelam alguém com o seu carro e fogem. Pensam só em evitar problemas; não importa se um ser humano morre por sua culpa. Mas estes são sinais dum estilo de vida generalizado, que se manifesta de várias maneiras, porventura mais subtis. Além disso, como estamos todos muito concentrados nas nossas necessidades, ver alguém que está mal incomoda-nos, perturba-nos, porque não queremos perder tempo por culpa dos problemas alheios. São sintomas duma sociedade enferma, pois procura construir-se de costas para o sofrimento.
66. É melhor não cair nesta miséria. Fixemos o modelo do bom samaritano. É um texto que nos convida a fazer ressurgir a nossa vocação de cidadãos do próprio país e do mundo inteiro, construtores dum novo vínculo social. Embora esteja inscrito como lei fundamental do nosso ser, é um apelo sempre novo: que a sociedade se oriente para a prossecução do bem comum e, a partir deste objetivo, reconstrua incessantemente a sua ordem política e social, o tecido das suas relações, o seu projeto humano. Com os seus gestos, o bom samaritano fez ver que «a existência de cada um de nós está ligada à dos outros: a vida não é tempo que passa, mas tempo de encontro».[57]
67. Esta parábola é um ícone iluminador, capaz de manifestar a opção fundamental que precisamos de tomar para reconstruir este mundo que nos está a peito. Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano. Qualquer outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que passam ao largo, sem se compadecer com o sofrimento do ferido na estrada. A parábola mostra-nos as iniciativas com que se pode refazer uma comunidade a partir de homens e mulheres que assumem como própria a fragilidade dos outros, não deixam constituir-se uma sociedade de exclusão, mas fazem-se próximos, levantam e reabilitam o caído, para que o bem seja comum. Ao mesmo tempo, a parábola adverte-nos sobre certas atitudes de pessoas que só olham para si mesmas e não atendem às exigências ineludíveis da realidade humana.
68. A narração – digamo-lo claramente – não desenvolve uma doutrina feita de ideais abstratos, nem se limita à funcionalidade duma moral ético-social. Mas revela-nos uma caraterística essencial do ser humano, frequentemente esquecida: fomos criados para a plenitude, que só se alcança no amor. Viver indiferentes à dor não é uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído «nas margens da vida». Isto deve indignar-nos de tal maneira que nos faça descer da nossa serenidade alterando-nos com o sofrimento humano. Isto é dignidade.
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[53] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 1.
[54] Adversus haereses 2, 25, 2: PG 7/1, 708-709.
[55] Talmud Bavli (Talmud de Babilónia), Shabbat, 31 a.
[56] Francisco, Discurso no encontro com os assistidos nas obras sociocaritativas da Igreja (Tallinn - Estónia 25 de setembro de 2018): L´Osservatore Romano (27/IX/2018), 8.
[57] Idem, Vídeo-mensagem ao encontro internacional TED2017 em Vancouver (26 de abril de 2017): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 04/V/2017), 16.
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