Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e Amizade Social
Capítulo II - continuação
Leitura da Carta Encíclica FRATELLI TUTTI do Santo Padre FRANCISCO sobre a Fraternidade e Amizade Social.
Capítulo II: Um estranho no caminho.
nn.69-72. Título 3: Uma história que se repete.
nn.72-76. Título 4: As personagens
CARTA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI DO SANTO PADRE FRANCISCO SOBRE A FRATERNIDADE E A AMIZADE SOCIAL
Capítulo II
UM ESTRANHO NO CAMINHO
Uma história que se repete
69. A narração é simples e linear, mas contém toda a dinâmica da luta interior que se verifica na elaboração da nossa identidade, que se verifica em toda a existência projetada na realização da fraternidade humana. Enquanto caminhamos, inevitavelmente embatemos no homem ferido. Hoje, há cada vez mais feridos. A inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da estrada define todos os projetos económicos, políticos, sociais e religiosos. Dia a dia enfrentamos a opção de ser bons samaritanos ou viandantes indiferentes que passam ao largo. E se estendermos o olhar à totalidade da nossa história e ao mundo no seu conjunto, reconheceremos que todos somos, ou fomos, como estas personagens: todos temos algo do ferido, do salteador, daqueles que passam ao largo e do bom samaritano.
70. Digno de nota é o facto de as diferenças entre as personagens na parábola ficarem completamente transformadas ao confrontar-se com a dolorosa aparição do caído, do humilhado. Já não há distinção entre habitante da Judeia e habitante da Samaria, não há sacerdote nem comerciante; existem simplesmente dois tipos de pessoas: aquelas que cuidam do sofrimento e aquelas que passam ao largo; aquelas que se debruçam sobre o caído e o reconhecem necessitado de ajuda e aquelas que olham distraídas e aceleram o passo. De facto, caem as nossas múltiplas máscaras, os nossos rótulos e os nossos disfarces: é a hora da verdade. Debruçar-nos-emos para tocar e cuidar das feridas dos outros? Abaixar-nos-emos para levar às costas o outro? Este é o desafio atual, de que não devemos ter medo. Nos momentos de crise, a opção torna-se premente: poderíamos dizer que, neste momento, quem não é salteador e quem não passa ao largo, ou está ferido ou carrega aos ombros algum ferido.
71. A história do bom samaritano repete-se: torna-se cada vez mais evidente que a incúria social e política faz de muitos lugares do mundo estradas desoladas, onde as disputas internas e internacionais e o saque de oportunidades deixam tantos marginalizados, atirados para a margem da estrada. Na sua parábola, Jesus não propõe vias alternativas, como, por exemplo, no caso daquele homem ferido ou de quem o ajudou terem dado espaço nos seus corações ao ódio ou à sede de vingança, que sucederia? Jesus não Se detém nisso. Confia na parte melhor do espírito humano e, com a parábola, anima-o a aderir ao amor, reintegrar o ferido e construir uma sociedade digna de tal nome.
As personagens
72. A parábola começa com os salteadores. O ponto de partida escolhido por Jesus é um assalto já consumado. Não nos faz deter na lamentação do facto, nem dirige o nosso olhar para os salteadores. São coisas do nosso conhecimento. Vimos avançar no mundo as sombras densas do abandono, da violência usada para mesquinhos interesses de poder, acúmulo e repartição. A questão poderia ser: deixaremos ali estirado por terra o homem maltratado para correr cada qual a esconder-se da violência ou a perseguir os ladrões? Será o ferido a justificação das nossas divisões irreconciliáveis, das nossas cruéis indiferenças, dos nossos confrontos internos?
73. De imediato a parábola faz-nos pousar o olhar claramente naqueles que passam ao largo. Esta perigosa indiferença que leva a não parar, inocente ou não, fruto do desprezo ou duma triste distração, faz das duas personagens – o sacerdote e o levita – um reflexo não menos triste daquela distância menosprezadora que te isola da realidade. Há muitas maneiras de passar ao largo, que são complementares: uma é ensimesmar-se, desinteressar-se dos outros, ficar indiferente; outra seria olhar só para fora. Relativamente a esta última maneira de passar ao largo, nalguns países ou em certos setores deles, verifica-se um desprezo dos pobres e da sua cultura, bem como um viver com o olhar voltado para fora, como se um projeto de país importado procurasse ocupar o seu lugar. Assim se pode justificar a indiferença de alguns, pois aqueles que poderiam tocar os seus corações com as suas reivindicações simplesmente não existem; estão fora do seu horizonte de interesses.
74. Nas pessoas que passam ao largo, há um detalhe que não podemos ignorar: eram pessoas religiosas. Mais ainda, dedicavam-se a dar culto a Deus: um sacerdote e um levita. Isto é uma forte chamada de atenção: indica que o facto de crer em Deus e O adorar não é garantia de viver como agrada a Deus. Uma pessoa de fé pode não ser fiel a tudo o que essa mesma fé exige dela e, no entanto, sentir-se perto de Deus e julgar-se com mais dignidade do que os outros. Mas há maneiras de viver a fé que facilitam a abertura do coração aos irmãos, e esta será a garantia duma autêntica abertura a Deus. São João Crisóstomo expressou, com muita clareza, este desafio que se apresenta aos cristãos: «Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez».[58] O paradoxo é que, às vezes, quantos dizem que não acreditam podem viver melhor a vontade de Deus do que os crentes.
75. Habitualmente os «salteadores do caminho» têm, como aliados secretos, aqueles que «passam pelo caminho olhando para o outro lado». O círculo encerra-se entre aqueles que usam e enganam a sociedade para chupá-la, e aqueles que julgam manter a pureza na sua função crítica, mas ao mesmo tempo vivem desse sistema e seus recursos. Verifica-se uma triste hipocrisia, quando a impunidade do delito, o uso das instituições para interesses pessoais ou corporativos e outros males que não conseguimos banir, se associam a uma desqualificação permanente de tudo, à constante sementeira de suspeitas que gera desconfiança e perplexidade. Ao engano de que «tudo está mal» corresponde o dito «ninguém o pode consertar. Sendo assim, que posso fazer eu?» Deste modo, alimenta-se o desencanto e a falta de esperança; e isto não estimula um espírito de solidariedade e generosidade. Fazer um povo precipitar no desânimo é o epílogo dum perfeito círculo vicioso: assim procede a ditadura invisível dos verdadeiros interesses ocultos, que se apoderaram dos recursos e da capacidade de ter opinião e pensamento próprios.
76. Olhemos enfim o ferido. Às vezes sentimo-nos como ele, gravemente feridos e atirados para a margem da estrada. Sentimo-nos também abandonados pelas nossas instituições desguarnecidas e carentes, ou voltadas para servir os interesses de poucos, fora e dentro. Com efeito, «na sociedade globalizada, existe um estilo elegante de olhar para o outro lado, que se pratica de maneira recorrente: sob as aparências do politicamente correto ou das modas ideológicas, olhamos para aquele que sofre mas não o tocamos, transmitimo-lo ao vivo e até proferimos um discurso aparentemente tolerante e cheio de eufemismos».[59]
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[58] Homiliae in Matthaeum, 50, 3-4: PG 58, 508.
[59] Francisco, Mensagem por ocasião do Encontro dos Movimentos Populares, em Modesto, Estados Unidos d’América (10 de fevereiro de 2017): AAS 109 (2017), 291.
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