18 janeiro, 2021

A esperança de Mônica e o silêncio constrangido de Jair

Após onze meses funestos, início da vacinação acende luz no túnel da pandemia. Presidente cala-se. Paradoxo: SUS pode imunizar 5 milhões por dia, mas sabotagem do governo torna processo incerto e lento. E mais: caos total no Enem da Covid.

Após onze meses de um acúmulo de más notícias, ontem o Brasil pôde se permitir um suspiro de alívio ao ver a primeira pessoa sendo vacinada contra a covid-19 no país: a enfermeira Mônica Calazans, de 54 anos, negra, obesa, diabética e hipertensa, que trabalha desde maio na UTI no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo. Ela foi voluntária nos testes de fase 3 com esse imunizante, mas havia ficado no grupo que recebeu o placebo em vez da vacina. 



A reportagem é de por Raquel Torres, publicado no site Outras Palavras em 18/01/2021.

FALTA MUITO, MAS COMEÇOU

Após onze meses de um acúmulo de más notícias, ontem o Brasil pôde se permitir um suspiro de alívio ao ver a primeira pessoa sendo vacinada contra a covid-19 no país: a enfermeira Mônica Calazans, de 54 anos, negra, obesa, diabética e hipertensa, que trabalha desde maio na UTI no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo. Ela foi voluntária nos testes de fase 3 com esse imunizante, mas havia ficado no grupo que recebeu o placebo em vez da vacina.

A cena aconteceu no Hospital das Clínicas da USP às 15h30, apenas alguns minutos depois de a CoronaVac ser aprovada em caráter emergencial pela Anvisa. Como já era esperado, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), conseguiu mesmo se antecipar ao governo federal e garantir sua presença nas primeiras fotografias da imunização no país.

Da coluna de Thiago Amparo, na Folha: “A vacina, há de se frisar, não é produto do espetáculo político no qual Doria e Bolsonaro nos arremessaram; a vacina é produto do Brasil que deu certo e nos fez chorar hoje: é produto do maior sistema público universal de saúde do mundo. É resultado do suor de muitas e muitos: de cientistas em institutos públicos, de servidores públicos, de diretores de agência de saúde com mandato fixo por lei, de profissionais do SUS que trabalham em condições desumanas, de jornalistas que deram nome e rosto para os 200 mil brasileiros que perdemos. A foto de Mônica Calazans (…) encarna em seu punho em riste e choro emocionado a linha de frente da ciência e do serviço público a quem devemos o dia de hoje”.

Ainda ontem a primeira indígena recebeu a CoronaVac: Vanuzia Costa Santos, de 50 anos, moradora da aldeia multiétnica Filhos dessa Terra, em Guarulhos. Ao todo, cem pessoas foram vacinadas no Hospital das Clínicas.

TODOS OS OLHARES

A reunião de deliberação da Anvisa durou cerca de cinco horas e teve mais de 340 mil visualizações no canal da agência do Youtube – um verdadeiro hit, considerando que seus demais vídeos raramente chegaram a mil espectadores. No fim, a Anvisa aprovou por unanimidade o uso emergencial tanto da CoronaVac como da vacina de Oxford/AstraZeneca. O evento acabou frustrando um pouco quem não estava acostumado a esse tipo de apresentação e esperava algo mais acessível ao ao público geral: como todas as outras reuniões do tipo, foi bastante técnica e cheia de detalhes sobre cada análise.

As autorizações foram concedidas com uma série de condicionantes. O Instituto Butantan não apresentou todos os dados previstos sobre a presença de anticorpos nos voluntários vacinados, o que havia sido exigido pela Anvisa ainda no dia 9. Segundo o gerente-geral de medicamentos do órgão, Gustavo Mendes, foi informado apenas se houve ou não a produção de anticorpos, mas não em que quantidade. Se o Butantan não enviar os dados faltantes até o dia 28 de fevereiro, pode perder a autorização emergencial. Esse é um dos pontos do termo de compromisso que a Agência estabeleceu como necessário para a aprovação. O documento foi assinado à noite e publicado em edição extra do Diário Oficial da União.

Além disso, os dados apresentados sobre a eficácia em idosos foram insuficientes para permitir “conclusões mais robustas”, porque só cinco idosos fizeram parte do ensaio com a CoronaVac.

A eficácia nesse grupo também não pôde ser atestada no caso da vacina de Oxford/Astrazeneca. Em relação a esse imunizante, Mendes mencionou ainda a confusão com os braços do estudo que acabou produzindo eficácias distintas, e disse ainda que restam dúvidas quanto à estabilidade do produto no longo prazo (o prazo de validade sugerido é de seis meses) e quanto à sua pureza. Também houve questões relativas a mudanças no processo de fabricação com o aumento da escala de produção.

Em tempo: uma das piores coisas da reunião foi o presidente da Anvisa, o contra-almirante Antônio Barra Torres, explicando que os diretores não usariam máscaras porque estavam respeitando as regras de distanciamento. Como a reunião foi em local fechado e o vírus se transmite pelo ar, a justificativa não tem sentido e ainda dá um péssimo exemplo. Por outro lado, uma das melhores foi ver tanto o corpo técnico da Anvisa como a diretoria reafiramando que não há tratamento precoce contra a covid-19.

A QUANTIDADE INICIAL

O Instituto Butantan começou a produzir a CoronaVac e já tem 11 milhões de doses – mas o pedido de autorização não foi referente a esse montante, e sim a outras seis milhões de doses que importadas da China no ano passado. Portanto, só estas estão liberadas. Já o aval para a vacina de Oxford/AstraZeneca se refere às duas milhões de doses que o governo tenta trazer da Índia – por enquanto, não conseguiu, de modo que elas ainda não estão em solo brasileiro e não há previsão para chegaram. A Fiocruz estima produzir 100 milhões de doses até julho a partir do ingrediente ativo que será importado da China, mas o pedido à Anvisa é mesmo restrito ao carregamento indiano.

Para novas doses, será preciso entrar com novos pedidos. Porém, segundo O Globo, espera-se que as próximas avaliações corram mais rápido.

GUERRA ACIRRADA

As reações de Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello ao início da vacinação em São Paulo foram bem sintomáticas. No caso do presidente, houve uma não-reação: até onde sabemos, ele não deu um pio sobre o dia de ontem. Já o ministro da Saúde ficou… irritado. João Doria mal tinha acabado de posar para as câmeras e o general Pazuello já estava diante de jornalistas, criticando o governador de São Paulo e até mesmo tentando atrair para o governo federal os esforços em torno da CoronaVac: “O Ministério da Saúde vem trabalhando junto com o Butantan no desenvolvimento da vacina desde o início. Você sabia que tudo o que foi comprado pelo Butantan foi com recursos do SUS? Não foi com um centavo de São Paulo“, disse ele, tentando – sem sucesso – soprar para longe todo o histórico de ódio do presidente Jair Bolsonaro contra a “vachina”.

O general também condenou a (mais do que previsível) “propaganda própria” do governador paulista. Disse que tem as vacinas de AstraZeneca e do Butantan em mãos e que poderia “em um ato simbólico ou em uma jogada de marketing, iniciar a primeira dose em uma pessoa”, mas não faria isso “em respeito a todos os governadores, prefeitos e todos os brasileiros”. Na verdade, o Ministério da Saúde não tinha dose nenhuma “em mãos”. As da AstraZeneca continuam na Índia, e as da CoronaVac ainda estavam no Butantan.

Por fim, Pauzello afirmou que a aplicação das primeiras vacinas em SP foi ilegal, por conta do acordo de exclusividade entre o Butantan e o SUS. Na verdade, vários governadores parecem ter se incomodado com o gesto de Doria. A reportagem da Folha diz que as opiniões ficaram divididas no grupo de WhatsApp dos gestores, com muitas críticas ao fato de a vacinação não começar em todo o país ao mesmo tempo.

O RATEIO

A previsão otimista do ministro Eduardo Pazuello é a de que o país pode chegar a vacinar um milhão de pessoas por dia, o que seria um grande feito. Já a pneumologista e pesquisadora da Fiocruz Margareth Dalcolmo paga mais: para ela, o SUS tem condições de alcançar até cinco milhões por dia. Mas para isso é preciso ter profissionais, locais de vacinação, horários diferenciados, ordem para evitar aglomeração. E, o mais importante: as doses dos imunizantes.

Ontem à tarde, a Polícia Federal estacionou viaturas na porta do Butantan para estocar as doses da CoronaVac até o aeroporto de Guarulhos, de onde irão para um galpão do Ministério da Saúde. A ideia é que comecem a ser distribuídas a “pontos focais” dos estados hoje – aliás, às pressas, Pazuello convidou os governadores para um “ato simbólico de recebimento das vacinas” hoje de manhã. A campanha nacional deve começar na quarta-feira às 10h.

Mas tudo indica que São Paulo vai continuar seu calendário próprio. A previsão é recomeçar a aplicar vacinas hoje às 7h no Hospital das Clínicas da USP. Além disso, 30 caminhões devem para distribuir doses, seringas e agulhas a hospitais do interior.

E mais: apesar de o governo federal querer centralizar a partilha, Doria afirmou que “não confia” no Ministério da Saúde e vai enviar por sua conta 50 mil doses a Manaus…

PEDIDO NEGADO

O pedido do laboratório União Química para a aprovação emergencial da Sputnik V no Brasil, enviado no dia 15, foi negado de cara pela Anvisa já no dia seguinte. A notícia era esperada: esse imunizante não teve testes de fase 3 no Brasil, o que é uma condição da agência para aceitar as solicitações.

ENEM NOTA ZERO

Contra todas as melhores recomendações de especialistas, a vontade dos estudantes e as evidências de que tinha tudo para dar errado, o cronograma do Enem foi mantido e a primeira prova presencial foi realizada ontem. A abstenção foi recorde: nada menos que 51,5% dos estudantes faltaram. Cinco mil pessoas pediram para fazer a prova em outra data por estarem com sintomas de covid-19 ou outras doenças contagiosas. Imaginem quantos não deviam estar infectados e assintomáticos.

Mas o ministro da Educação, Milton Ribeiro, achou ótimo: “Qualificamos como sucesso porque, no meio de uma crise, numa pandemia, nós conseguirmos mobilizar milhões de pessoas de maneira segura, para mim, foi um sucesso. Estamos em situação de calamidade. Ainda por cima temos uma questão política de mídia contra, falando e criticando a realização do exame. Nesse ponto, acredito que foi um sucesso. Para os alunos que puderam fazer a prova, foi um sucesso”.

Além do medo dos alunos, outro fator parece estar por trás das faltas. Segundo o Estadão, aconteceu de candidatos serem barrados na entrada dos locais de prova porque suas salas estavam superlotadas. Pois é. Na semana passada, já tinha sido denunciado que vários locais tinham planos de ter salas com 80% de ocupação, muito mais do que os 50% preconizados pelo MEC. Ao que parece, na manhã da prova, chegou às portarias a informação de que a lotação deveria ser mesmo de no máximo 50%. Então, em vários casos, a “solução” foi essa: pedir que os alunos dessem meia volta e depois solicitassem a reaplicação em outra data. “Entrei em pânico, comecei a chorar. Quando saí na rua, tinha um monte de estudante chorando, apavorado. Eu também estava muito mal e ninguém estava entendendo nada do que estava acontecendo”, conta Anna Carolina Lau, na reportagem.

Mas não foi assim em todos os locais. Aconteceu também de os estudantes não serem barrados e fazerem a prova nas salas cheias, mesmo. “Foram chegando mais alunos até que a sala encheu e tiveram de colocar mais carteiras. Tinha gente do meu lado, à frente e atrás. Faltaram ainda 8 pessoas. Foi um absurdo. Eu queria sair o mais rápido possível, não estava aguentando ficar na sala com muita gente”, narra outra estudante, Ellen Rezende.

É CLARO QUE SABIA

Entre os dias 3 e 4 de janeiro, o Ministério da Saúde fez reuniões com autoridades do Amazonas e se detectou que o sistema de saúde do estado estava à beira do colapso. No dia 8, a pasta ficou sabendo que faltaria oxigênio por um e-mail da White Martins, empresa que fabrica o produto. Essas informações constam de um ofício enviado ao STF pela Advocacia-Geral da União. Nos dias 11, 12 e 13, portanto às vésperas de a crise estourar para valer, o ministro Eduardo Pazuello estava em Manaus…

Agora o procurador-geral Augusto Aras abriu um inquérito para investigar “eventual omissão” do governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC) e da prefeitura de Manaus. Mas, em relação às responsabilidades do governo federal, pegou mais leve: Aras apenas deu um prazo de 15 dias para que o general explique por que não fez nada.

NÃO MENOS IMPORTANTE

No ano passado o Brasil teve 8,4 mil casos de sarampo, registrando surtos em 21 estados (não custa lembrar que há menos de cinco anos toda a região das Américas tinha sido declarada livre dessa doença). O maior surto foi no Pará, que concentrou mais de cinco mil casos. O vírus ainda circula nesse estado, além do Rio de Janeiro, São Paulo e Amapá. Nos outros, segundo o Ministério da Saúde, a circulação viral foi interrompida.

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