Todas as modalidades do tráfico de pessoas existem na tríplice fronteira do Brasil, Guiana e Venezuela. Em missão no estado de Roraima, a Comissão da CNBB de Enfrentamento ao Tráfico Humano, testemunhou a luta para combater as violações dos direitos humanos.
A reportagem é publicada por CNBB, 02-07-2024, é de Cláudia Pereira.
Foto: Pessoas aguardando a entrega de refeições no posto de atendimento em Boa Vista (RR) onde são distribuídas mais de 1.500 refeições por dia. Foto| Cláudia Pereira.
Na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana as violações dos direitos humanos são latentes, sobretudo para os migrantes e os povos indígenas. “Crianças foram raptadas do colo de mãe, tiradas à força de suas mães e utilizadas para exploração. Tivemos casos de crianças usadas como locação”. Esses são relatos que causaram impactos no primeiro dia da missão de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Reunidos na diocese de Roraima entre os dias 17 e 23 junho, a Comissão Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CEETH-CNBB), em parceria com organizações religiosas e civis, a comitiva visitou espaços importantes para escutar sobre o crime do Tráfico de Pessoas e as modalidades.
A visita realizada na semana do migrante, momento em que a igreja católica dedica para a reflexão sobre a situação dos migrantes, o olhar atento revelou um cenário que gerou um misto de sentimentos: Indignação e Esperança. Essas duas palavras estiveram presentes todos os dias da Missão e foram expressas inúmeras vezes. O Tráfico Humano é a terceira atividade ilegal mais rentável do mundo, segundo relatório emitido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), estima que mais 50 milhões de pessoas no mundo, são vítimas da escravidão contemporânea. “As pessoas naturalizam muitas práticas, realidades que geram endividamento, cárcere, exploração e ações que privam a liberdade de alguém. Isso implica no que conceituamos como tráfico de pessoas”. Afirma a professora e socióloga Márcia Maria de Oliveira da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Márcia é doutora em Sociedade e Fronteiras, acompanha a frente de pesquisa que estuda a economia garimpeira, um dos setores econômicos do estado de Roraima. A atividade do garimpo, sobretudo o ilegal, revela modalidades do crime de tráfico de pessoas que violentam os povos indígenas.
O estado tem como nome de origem o significado indígena de “Morro Verde”, que faz todo sentido ao se contemplar a paisagem entre Boa Vista e Pacaraima. A vegetação aberta denominada de lavrado, com montanhas, muita água e um verde intenso nesta época do ano. O estado possui a quinta maior população de povos originários do país, são 13 etnias em 32 territórios. A praça do centro cívico da capital, encontra-se um monumento que ostenta um garimpeiro, representando um setor econômico do estado que causa danos ambientais e viola os direitos humanos. O Rio Branco corta a cidade formando um balé em alta velocidade com seus afluentes, onde se vê beleza e perigo em todos os sentidos. A cidade com suas ruas, calçadas e praças largas bem arborizadas, transmite uma calma absoluta, mas esconde uma realidade que é visível aos olhares e ouvidos atentos.
Fluxo migratório e o tráfico de pessoas no Estado
Dias antes de acontecer a missão da Comissão de Enfrentamento ao Tráfico de Humano da CNBB, em Boa Vista, circulava a notícia nos meios de comunicação e redes de mensagens, a notícia que três meninas de 16 anos haviam sido aliciadas e levadas para a Guiana. “O tráfico de pessoas ainda acontece aqui no estado de Roraima. As meninas brasileiras que têm um valor no mercado do sexo na Venezuela, Guiana e para a exploração sexual no garimpo”. Afirmou a diretora do Programa de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Roraima, Socorro Santos, que apontou falhas nas funções dos órgãos de investigação. No caso das três meninas desaparecidas, a investigação estava na polícia civil, uma vez que a denúncia cabe à investigação da polícia federal. “Esse momento em oportuno junto para nos ajudar a lutar pela efetivação das políticas que nos faltam nesta pauta aqui no estado. Aqui, as meninas e meninos, independente de nacionalidades ou raça, estão sendo traficados em todas as modalidades, e digo mais, existe extração de órgãos em nosso estado”. Socorro chama atenção para o tráfico de pessoas interno, e denunciou que tem crescido o tráfico de órgãos e recentemente recebeu relatos de meninas resgatadas que denunciaram casos ocorridos no estado.
O fluxo migratório no estado é permanente, os migrantes que atravessam o país na busca de uma vida melhor, são suscetíveis ao aliciamento de tráfico de pessoas. Um dos locais visitados pela Comissão foi o Posto de Interiorização e Triagem (PITRIG). Localizado próximo à rodoviária internacional de Boa Vista. O posto atende em maioria migrantes venezuelanos que buscam refúgio, documentos e regularização de permanência no Brasil. “Aqui é um lugar que recebemos os migrantes para regularizar documentos, permanência e abrigá-los para que a cidade possa ficar livre”, dizia o soldado ao receber a comitiva, logo na entrada. Não é permitido filmar ou fotografar no local sem antes uma solicitação prévia. “Caso você queira fazer fotos teremos que verificar antes de você sair”. Alertou o soldado.
O espaço é coberto por várias tendas distribuídas com funções específicas para os trabalhos realizados em ação conjunta que envolve a Agência ONU para Refugiados, (ACNUR), Organização Internacional de Migração (OIM), Exército Brasileiro e outras organizações que integram o atendimento. O local possui setores de serviços, porém poucas pessoas para atender. No dia da visita a temperatura média de Boa Vista era de aproximadamente 30º C, sob as tendas a sensação térmica era insuportável, ar-condicionado disponível somente nas salas de atendimento. Enquanto caminhávamos nos espaços, os olhares curiosos das crianças e de alguns adultos pareciam implorar por algo. Uma estrutura improvisada que se tornou permanente, assim como os oito abrigos para migrantes na cidade. A estrutura organizada dos abrigos é semelhante a um camping com barracas perfiladas, em média cada abrigo acolhe entre duas e três mil pessoas. As casinhas de plásticos sob o sol, são denominadas de Unidade de Habitação para Refugiados (RHU). É difícil imaginar as condições de viver por longo período nestas condições.
Difícil de imaginar, no entanto evidente, porém ao observar com atenção, é o tráfico de pessoas. Os migrantes são suscetíveis pelas condições precárias ao chegar na fronteira e são alvos dos aliciadores para o trabalho escravo contemporâneo, exploração sexual e outras modalidades. Em uma roda de conversa e brincadeiras para crianças, a agente de pastoral distraía um grupo pequeno de crianças com idades entre 7 e 12 anos, enquanto os pais acompanhavam orientações e informações sobre seus direitos como migrantes. Alguns deles falaram que trabalhavam durante a semana, questionados sobre o que mais gostavam de fazer: brincar ou trabalhar? A maioria afirmou que era melhor trabalhar.
Os relatos informam que crianças são exploradas para ser cuidadoras de carros nas proximidades de centros gastronômicos da cidade e são exploradas para a mendicância.
Durante os cinco dias de missão, os momentos de escuta tiraram da invisibilidade através dos relatos que o tráfico de pessoas existe no estado de Roraima. A fronteira de Bonfim com a Guiana, a 125 km de Boa Vista, é extremamente vulnerável sem oferecer a menor segurança de fluxo migratório. A região que possui predominância dos povos indígenas Wapichana, são afetados pelo tráfico do garimpo que contamina o território com uso indevido de mercúrio. Os relatos de pessoas traficadas para o garimpo, comércio chinês e exploração sexual é uma realidade quase que naturalizada. Para enfrentar, religiosos realizam um trabalho de prevenção, com muita dedicação, apesar da limitação de recursos.
“Aqui em Bonfim o tráfico de pessoas é uma realidade. Meninas são traficadas para exploração sexual no garimpo, homens e mulheres principalmente migrantes são aliciados para o trabalho escravo. Muitas vezes durante o atendimento que realizava como servidora pública presenciei meninas muito jovens e bonitas indo para o garimpo. Diziam que iam trabalhar como cozinheiras, percebi que sempre havia pessoas que os levavam. Temos o caso da Raissa que ficou conhecida nacionalmente, que foi vítima de tráfico de pessoas, infelizmente não voltou viva. Foi brutalmente assassinada grávida de sete meses e todos os indícios levavam crer que ela foi mais uma vítima. O tráfico de pessoas existe.” Disse uma testemunha durante a roda de conversa na cidade de Bonfim, cidade fronteira da Guiana.
O tráfico de pessoas não se restringe apenas à região de fronteira com a Guiana Inglesa, os rios e afluentes da região estão muito próximos do Suriname, que é outro espaço intenso do garimpo. A professora Márcia Maria de Oliveira conta que historicamente essa rota sempre foi reconhecida como lugar de exploração sexual, mas o dinamismo do tráfico muda com frequência o fluxo. “No geral as mulheres vão com a promessa por exemplo de ser cozinheira, é claro que a gente sabe que cozinheira é um código do garimpo. Esse código significa que a pessoa está sendo explorada sexualmente. É uma forma de aliviar essa situação para a família encarar, sem problematizar e denunciar”. Situa a professora e pesquisadora.
Para além das armadilhas em que os migrantes são atraídos, outra situação preocupante é a dos povos indígenas. “Os garimpos continuam aumentando com mais força, dragas e outros meios. Esse garimpo, não pode mais chamar apenas de garimpo, é um narcogarimpo que atua com tráfico de armas, drogas e de pessoas”. Dizia dom Evaristo Spengler, bispo de Roraima. “O estado não tem assumido ainda o seu papel no enfrentamento ao tráfico de pessoas”. Denunciou o bispo que acredita que a missão é capaz de aproximar os órgãos e a sociedade civil para propor políticas públicas e também aproximar as ações nas fronteiras para trabalhar em conjunto pelo enfrentamento ao tráfico de pessoas e na defesa da vida.
“Precisamos fortalecer esse trabalho, a situação aqui em Roraima é muito mais complexa, temos duas fronteiras: Guiana onde há um corredor de migração que chegam pessoas de modo especial da América central, temos a fronteira com a Venezuela que tem um fluxo de migração muito grande, já desde o ano 2017. Esta situação coloca as pessoas em situações frágeis”. Reforçou dom Evaristo para a impotência da missão.
Na divisa de Pacaraima, localizada a cerca de 215 km de Boa Vista, durante a visita aos abrigos e organismos da igreja que apoiam os migrantes com suporte de órgãos públicos e organização humanitária internacional, o som que ressoa na fronteira é mais espanhol que o português. Os rostos também são diferentes, com características indígenas na grande maioria. A presença dos Indígenas Venezuelanos da etnia Warao é marcante na região, que sobrevive da venda de artesanatos. Em uma ação de conscientização em espaço público, um homem Venezuelano falou que foi vítima de trabalho escravo. “Trabalhei em fazenda de nome Nossa Senhora Aparecida por quase três meses sem carteira assinada. E ao cobrar meus direitos e salários como migrante, o proprietário avisou que não teria direito algum. Fui ameaçado e até o momento não recebi pelos meses trabalhados”.
A força da igreja em defesa da vida na tríplice fronteira de Roraima
Com o sentimento de esperança e indignação evidente em todos que acompanharam a Missão da CEETH, pode ser afirmado que a luta contra o tráfico de pessoas em Roraima é realizada pela Igreja Católica e organismos comprometidos com a defesa da vida. Trabalhos realizados em parcerias com as pastorais, universidade federal, organismos internacionais humanitários e sociedade civil é que está na linha de frente diariamente. Em Pacaraima, ao lado do abrigo Janokoida, que acolhe os povos indígenas que chegam da Venezuela, fugindo de conflitos e fome, fica a Casa São José. Crianças são maioria nesses espaços de acolhida. Ao entrar na Casa São José ficamos de frente para uma fila de mulheres grávidas ou com crianças no colo à espera do atendimento acolhedor que as irmãs de São José de Chambery realizam com apoio da igreja e voluntários.
Criada no ano de 2020, a casa acolhe mulheres vítimas de diversas violações e em especial às vítimas de exploração do tráfico de pessoas. “Aqui se chega a atender centenas de pessoas entre mulheres e crianças, embora o fluxo da migração esteja menor atualmente a passagem destas mulheres na casa é de no máximo seis meses”. Disse o voluntário ao apresentar os cômodos da casa que possui espaços para crianças, alojamento para dormir e espaço para oficina profissionalizante de manicure, corte de cabelo e maquiagem. Tudo que as irmãs organizaram para a casa até o momento, é resultado de muita luta, sofrimentos inclusive perseguições. O que não descarta que os desafios e enfrentamentos ainda são uma realidade atual.
Do outro lado da fronteira, em Santa Elena, na Venezuela, a igreja se aproxima da pauta com um olhar sem fronteiras e desde 2022 vem construindo esse caminho. De acordo com a Cáritas do Vicariato do Caroní, aproximadamente 70% dos migrantes venezuelanos no Brasil são mulheres, e a organização tem acompanhado de perto as questões relacionadas ao fluxo migratório por meio de atividades de intercâmbio entre Venezuela e Brasil.
“Nós enquanto igreja fortalecemos o trabalho da Diocese de Roraima no enfrentamento ao tráfico de pessoas, porém ressaltamos a importância do papel do poder público federal, estadual e municipal. É necessário que haja um compromisso com essa causa e que essas instâncias atuem de forma integrada para combater essa chaga humana”. Enfatizou dom Adilson Busin, presidente da CEETH e bispo de Tubarão (SC).
A realidade das pessoas em condições de vulnerabilidade, nos espaços de acolhidas superlotados, poucas pessoas para atendimento e algumas situações despreparadas para atender situações delicadas e de conflitos, é um dos olhares nesse itinerário da Missão. Em Boa Vista, nas regiões próximas ao terminal rodoviário, o local se torna uma espécie de território sem lei. Em pouco tempo presentes no local, se ouviu relatos sobre assassinatos dentro dos abrigos, sequestro de crianças, abuso sexual e atividades que envolve o tráfico de drogas.
Passava de 12h00, meio-dia quando a comitiva chegou ao acampamento que distribui refeições pelo projeto da cozinha do Sumauma. A cena impacta. Centenas de pessoas perfiladas entre grades de proteção, na tentativa de organizar a entrega dos alimentos. As filas se estendem para além da tenda, sob o sol e finaliza dentro de um galpão com o tamanho proporcional de uma quadra de futebol, onde as pessoas se sentam para fazer suas refeições. Todos os dias são distribuídas mais de 1.500 refeições. O espaço é organizado pelo exército brasileiro, organizações da igreja e serviços da agência humanitária internacional. A cena é semelhante com a entrada de migrantes na fronteira de Pacaraima. Todos os dias centenas e centenas de mulheres, homens e crianças se aglomeram sob sol e chuva em busca de um novo viver. “Neste sentido podemos afirmar que a cidade de Boa Vista é a cidade com maior porcentual de população de rua do Brasil”. Frisou uma agente de pastoral.
“Existe uma omissão do poder público no enfrentamento desta causa, nós quanto à comissão denunciamos em coletiva de imprensa sobre essa ausência do poder público. Como igreja fortalecida e envolvida com as causas dos mais pobres, a diocese de Roraima segue firme e forte neste enfrentamento e defendendo a vida”. Disse a religiosa e assessora da CEETH, Irmã Eurides Alves de Oliveira.
As atividades da Missão foram encerradas com um Colóquio na Universidade Federal de Roraima sobre Tráfico Humano. A participação superou a expectativa da organização, estiveram presentes mais de 150 pessoas, quase não havia espaço para acomodar as pessoas que participaram atentamente daquele colóquio que está em sua terceira edição. 80% dos presentes, claro eram de migrantes e refugiados que expuseram questionamentos e denúncias sobre o tráfico de pessoas em Roraima.
“O colóquio foi um ponto muito forte, um espaço com o protagonismo popular, esse momento revelou que é inevitável a necessidade de organizar em rede. Se observou inclusive que as respostas desconexas em relação às perguntas e cobranças feitas pela população foram marcantes. Isso confirma através das escutas que tivemos, que não existe integração de alguns órgãos do poder público. O estado faz seu papel, porém falta garantir as necessidades humanas”. Ressaltou Alessandra Miranda, secretária executiva da Comissão Especial de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da CNBB.
Apesar do sentimento de indignação em todo percurso desta Missão, a Esperança é soberana através da presença articulada da igreja católica de Roraima e sobretudo da alegria dos povos migrantes e brasileiros que é a mais pura demonstração de resistência.
Além da CEETH, outras Instituições/Organizações religiosas e civis se integraram a Missão, entre elas: Comissão Pastoral da Terra (CPT), Associação Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude ASBRAD, Rede CLAMOR Brasil, REPAM Brasil, Serviço Pastoral do Migrante (SPM), SEFRAS/Ação Social Franciscana, Cáritas, Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Rede Um Grito Pela Vida da Conferência dos Religiosos/as do Brasil (CRB). A Missão contou com a articulação de dom Evaristo Spengler, bispo de Roraima e integrante da Comissão, dom Plínio José Luiz da Silva, bispo diocesano de Picos (PI) e dom Adilson Pedro Busin, bispo da diocese de Tubarão (SC) e atual presidente da Comissão Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano da CNBB.
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Fonte: IHU
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